O fundamento do rito depende de uma relação comunitária solidária, que quebre relações de exploração, violência e exclusão. Não é requerido sacrifícios ou penitências, e sim processos críticos do modo de vida de uma sociedade.
O falso jejum e a guerra entre deuses, por Bruno Reikdal Lima
Ontem, 2 de abril, o ocupante da cadeira da presidência da República anunciou em entrevista que junto de pastores pretende promover um jejum nacional como meio de enfrentamento da pandemia. Mais uma vez, o uso de rituais religiosos do grupo majoritário de apoio do bolsonarismo serve para esconder um poço de imoralidade com um bezerro sagrado. Constrói-se um ídolo e, em torno dele, uma aura de pureza pintada de verde e amarelo que justifica e legitima os sacrifícios exigidos pela verdadeira divindade cultuada: o deus Mercado. Nesse quadro, é fundamental uma discussão ocorrida nos anos de 1980 no Departamento Ecumênico de Investigações, sediado em San José, Costa Rica, no qual teólogos e cientistas sociais utilizaram a expressão “guerra entre deuses” para revelar o processo de crítica da religião do capital (ou do “capitalismo como religião”, na expressão de Walter Benjamin). O falso jejum requer a retomada de uma discussão teológica. E como afirmou certa vez Slavoj Zizek, ” não só toda política se baseia numa visão ‘teológica’ da realidade, como toda teologia é inerentemente política”.
No caso, o jejum “convocado” aparece como falso a partir de uma tomada de posição, que o acusa por não cumprir o papel comunitário do ritual religioso: prática de reflexão e arrependimento do povo e suas lideranças dos caminhos tomados. Assim era proposto o jejum na tradição semita: não como meio de fazer com que Deus se compadecesse e movesse sua mão, de modo que o jejum como sofrimento fosse o caminho sádico para que a divindade aceitasse cuidar de suas criaturas, mas como ritual de transformação das relações sociais até então dispostas.
Um povo estruturado em relações de violência e dominação praticava o jejum comunitário para reeducar suas formas sociais. Assim foram com juízes, reis do povo de Israel e de Judá, e também com reinos estrangeiros (como Nínive na história de Jonas, por exemplo, para quem está familiarizado com a tradição). O arrependimento pelo que foi feito até então era o passo pressuposto para o jejum. E a liderança que o convocava assumia, de ponto de partida, que estava errado até então em sua forma de governança.
Junto a isso, o conteúdo do jejum justo tinha que ser validado pela prática de justiça no interior da comunidade. Por isso no livro do profeta Isaías, por exemplo, encontramos a denúncia por parte de Deus contra as lideranças locais e a população do reino, afirmando que eles “agem como se fossem piedosos! Vêm ao templo todos os dias e parecem ter prazer em aprender a meu respeito. Agem como nação justa que jamais abandonaria as leis de seu Deus. Pedem que eu atue em favor deles e fingem querer estar perto de mim. Dizem: ‘jejuamos diante de você! Por que não presta atenção em nós? Nos humilhamos severamente e você nem repara’. Eu respondo: ‘vou lhes dizer por quê! É porque jejuam para sua própria satisfação, enquanto isso oprimem seus empregados! De que adianta jejuar se continuam a violentar e discutir?‘”.
Na denúncia por meio do profeta, para que o jejum fosse verdadeiro seria necessário que as relações de violência e exploração fossem transformadas. Sem esse passo de arrependimento e mudança nas formas sociais, de nada adiantaria o rito. De tal modo que o autor do texto anuncia que o jejum desejado ou o verdadeiro jejum depende de que as lideranças e a população “soltem os que foram presos injustamente, aliviem a carga de trabalho de seus empregados, libertem os oprimidos, removam as correntes que prendem as pessoas, repartam seu alimento com os famintos, ofereçam abrigo aos que não tem casa, deem roupas aos que precisam e não se escondam dos que carecem de ajuda”. Essas práticas políticas, econômicas e sociais dariam, aí sim, conteúdo ao jejum, de modo que como sacralidade seria aceitável.
O fundamento do rito depende de uma relação comunitária solidária, que quebre relações de exploração, violência e exclusão. Não é requerido sacrifícios ou penitências, e sim processos críticos do modo de vida de uma sociedade. Na seção anterior da profecia à qual nos referimos, o autor de Isaías indica a tragédia que ocorria no meio do povo decorrente da prática sacrificial idólatra: matar filhos e filhas para agradar um falso Deus: “de quem vocês zombam fazendo caretas e mostrando a língua? Vocês são filhos de pecadores e mentirosos! Adoram seus ídolos com ardente paixão debaixo dos carvalhos e de outras árvores. Sacrificam os seus filhos nos vales entre as rochas e os desfiladeiros“. O assassinato do filho era a exigência de deuses adorados por parcelas do povo, que em troca prometiam prosperidade e riquezas. Fosse Baal, Mamon ou Moloque, eram deuses que requeriam o assassinato de crianças para garantia da boa vida de quem as sacrificava. É contra essa prática, por exemplo, que a narrativa de Abraão abrindo mão de assassinar seu filho Isaque é constituída, fundando uma nova estrutura sagrada na tradição semita.
A profecia, ainda, menciona o comprometimento idolátrico e assassino do povo com Moloque, para quem eram dirigidos sacrifícios. Curioso como Marx, nos Grundrisse, lembra que o dinheiro cumpria o papel de “carrasco de todas as coisas, o Moloque ao qual tudo tem que ser sacrificado”. Mais que isso, o “dinheiro aparece de fato como o Moloque ao qual é sacrificada a riqueza real”. Já n’O Capital, em uma nota referente à acumulação e a propriedade capitalista, Marx cita Laing, que dizia que “em nenhuma parte os direitos das pessoas foram sacrificados tão aberta e descaradamente como no caso das condições habitacionais da classe trabalhadora. Toda grande cidade é um local de sacrifícios humanos, um altar sobre o qual milhares são anualmente imolados ao Moloque da avareza“. Bem, temos, nesse quadro social e teológico-político geral, a distinção entre dois deuses: um que requer transformação das relações sociais e um que requer sacrifícios. Trata-se, de como iniciamos esse texto, da guerra entre deuses.
O rito e o sacrifício ligados ao que chamamos no início de falso jejum aparecem como talis para quem se coloca junto à divindade que não requer a prática religiosa propriamente, mas o arrependimento e a transformação das relações sociais. Seria jejum com conteúdo e verdadeiro uma reorientação radical das relações de uma comunidade. Já para quem serve à divindade que requer sacrifícios de vidas, é falso o jejum que exige a mudança da forma social e verdadeira a convocação para se reforçar a necessidade dos sacrifícios com novos rituais. Claramente o religioso que escreve esse texto toma posição clara desde o início: o Deus a ser servido é o que requer arrependimento e superação das relações de exploração e violência. Além disso, trata de retomar a profecia de Isaías contra o “falso jejum”. Todavia, tem de enfrentar as relações religiosas e posicionamentos políticos que desejam o jejum convocado com todo o conteúdo material que o compõe, na defesa de uma ordem social e de uma governança específica.
Nos termos da “guerra entre deuses” desenvolvida pelo Departamento Ecumênico de Investigações nos anos de 1980, seria a batalha entre o deus Mercado e o Deus da vida. Cada ritual e passo religioso dado em direção a um ou outro altera ou determina a organização social que se pretende. Nesse sentido, a crítica da religião marxista, que converte a crítica do céu em crítica da terra, crítica teológica em crítica política, ganha novo espaço e campo de disputa no momento que vivemos. As armas ideológicas estão em funcionamento pleno, e por vezes sem passarem pela devida crítica. A qual das divindades a prática do jejum serve? Quais interesses cumpre? Qual o papel verdadeiro e efetivo que cumpre na comunidade que precisa se defender de uma pandemia?
A acusação dessa reflexão é a idolatria sacrificialista de quem a propôs e de quem atende à convocação sem crítica. Hoje, se há ritual religioso necessário e jejum verdadeiro, é a mudança na orientação das relações sociais e o arrependimento das lideranças e elites que, além de oprimirem pobres, trabalhadores e trabalhadoras, atuam para o assassinato de gerações deteriorando as condições de produção, reprodução e desenvolvimento da vida da comunidades, assim como realizam sacrifícios de vidas para atender um Mercado falido que consome diariamente a riqueza real na promessa de prosperidade (inviável) futura.
Referências utilizadas para o texto:
ASSMANN, Hugo. Idolatria de Mercado: ensaios sobre economia e teologia. Editora Vozes: Petrópolis, 1989.
DEI. La lucha de los dioses: los ídolos de la opresión y la busqueda del Diós Liberador. Departamento Ecuménico de Investigaciones: San José, 1980.
MARX, Karl. Grundrisse. Editora Boitempo: São Paulo, 2011.
____. O Capital: crítica da economia política burguesa. Livro I: o processo de acumulação do capital. 2 ed. Boitempo: São Paulo, 2017.
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. Boitempo: São Paulo, 2012.
Bíblia Sagrada: livro de Isaías, capítulos 55, 57 e 58.
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