Anotações, Comentários e
Resumos baseado em capítulos do livro de Gerd Theissen e Annette Merz, professores da Universidade de
Heidelberg
“O
Jesus Histórico”
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Parte I – Prefácio e
Histórico das Pesquisas
I – Prefácio
Os
autores Gerd Theissen e Anette Merz iniciam a apresentação do seu livro destacando o fato de que se faz
necessário ter em mente a distinção entre o Jesus possível de ser reconhecido
pela História e o Cristo da fé, “revelado” nos textos cristãos – formulados, como se
sabe, com uma preocupação mais teológico-doutrinária e com interesses de fé e
interpretação de suas comunidades de origem que com a descrição de memórias e
fatos biográficos precisos ocorridos décadas antes da formulação dos primeiros
escritos que dariam origem aos evangelhos conhecidos, os atos dos apóstolos e - certamente os mais antigos dos textos - as cartas paulinas.
Logo
de início, os autores destacam o problema de harmonização entre as informações
passíveis de serem extraídas das fontes (sejam textuais e/ou arqueológicas) acerca de
Jesus e de sua época com a imagem tradicional do Cristo repassado pelas igrejas
– imagem, aliás, que diverge a depender de que vertente se constituiu a visão
teológica de cada igreja, seja a católica (romana, ortodoxa), protestante histórica
(luterana, calvinista, episcopal, etc.) ou evangélica (em especial, as de cunho
midiático fundamentalista atuais), sem falar dos que pretendem se debruçar
sobre Jesus sem vincular-se a qualquer vertente religiosa tradicional –
incluindo-se pesquisadores com vários de outras religiões, mesmo não cristãs, etc.
Por vezes, as
tentativas de estudo do Jesus histórico nem sempre pareceu bem recebida por
parte dos guardiães da teologia tradicional ou era recebida com reservas:
“Em época recente, o estudo do Jesus histórico muitas vezes se vinculou
com a mensagem de que não era teologicamente importante dedicar-lhe um exame
detalhado. Decisivo era o Cristo anunciado e bastava assegurar-se de que ele
não estava em contradição com o que sabemos sobre o Jesus histórico – o que era
bem pouco” (p. 13).
Os
autores reconhecem que a tensão entre o estudo sério, científico, e a imagem
tradicional de Jesus a qual a maioria das pessoas se habituaram deixam uma
parcela importante da população em um estado de perplexidade, especialmente
quando se põe em perspectiva certas construções dos textos evangélicos que são
patentemente elaborações poéticas ou teológicas que possuem pouco ou nenhum
respaldo histórico (por exemplo, as narrações conflitantes em Mateus e Lucas
sobre o nascimento de Jesus e os diferentes e por vezes contraditórios relatos
sobre as suas aparições post-mortem, que, ainda assim e pelas consequências que tiveram nos primeiros cristãos, parecem repercutir um evento histórico real, ocorrido diversas vezes).
Frequentemente, a
busca por informações sobre o Jesus histórico por parte do público acaba
levando a uma eclosão de trabalhos fora da pesquisa séria que, aproveitando-se
da popularidade e mercado que floresce em torno do interesse variado sobre Jesus, levam
a novas elaborações de imagens sobre sua figura, que refletem muito mais os anseios e
modelos dos autores e seu contexto social que a uma visão coerente do homem que
vivem e atuou há dois mil anos atrás:
“Hoje muitas pessoas ficam perdidas quando tentam esclarecer com
argumentos o que sabemos sobre o Jesus histórico, o que apenas conjeturamos e o
que não podemos saber. Trabalhos (literários) que pretendem expor o verdadeiro
Jesus por trás dos supostos falseamentos da Igreja preenchem essa lacuna do
mercado de conhecimento, em forma de livros edificantes que, a partir dos
anseios religiosos e valores éticos de nosso tempo, acabam por criar um novo
Jesus. De ambos os lados, o trabalho paciente da pesquisa está sendo
desconsiderado. Mas numa sociedade esclarecida e numa Igreja aberta, que deseja
prestar contas de seus próprios fundamentos, este trabalho se impõe” (p.
13).
A
seguir os autores esclarecem o objetivo de seu trabalho: “apresentar a pesquisa científica sobre o Jesus histórico – não somente
seus resultados, mas também o processo
de aquisição desse conhecimento”, alertando ainda uma vez que “o
processo científico exige uma postura de paciência dos leitores ávidos de
esclarecimento imediato” (p. 13).
Apontam,
então, pontos importantes sobre a epistemologia e entendimento do processo
científico em geral e que se aplicam, de maneira particular, à pesquisa sobre o
Jesus histórico:
I
– A ciência não diz “foi assim”, mas “poderia ter
sido assim, com base nas fontes” (canônicas, não-canônicas,
históricas, arqueológicas, etc.). Em acréscimo a esta observação, e ajudando a
manter o equilíbrio frente à reconstrução possível a partir da análise das
fontes, os autores destacam que:
“A ciência nunca diz “é assim”, mas “assim se nos apresentam as coisas
no estado atual da pesquisa – e isto
significa: “no estado atual de nossos
acertos e erros” (p. 13).
II
– A ciência não se acomoda em um quadro explicativo considerado definitivo
sobre seu objeto de estudo e não diz “este é o nosso resultado” como produto de
nosso tempo e de pessoas que apenas decidiram refletir sobre as fontes, mas sim
que “este é o nosso resultado com base em
determinados métodos”. Métodos
diferente, que, esperamos, venham a surgir e sejam mais abrangentes e mais aperfeiçoados
que os de hoje, certamente nos farão perceber novos detalhes e novas
manifestações da realidade passada que os atuais, em sua maneira de orientar
nossa percepção, ainda não permitem não porque estejam errados, mas porque a
forma de orientar uma pesquisa, seu método, leva a trilhar certos caminhos de
busca e interpretação ao invés de outros. Por isso, os autores esclarecem que:
“O caminho que se percorre para alcançar um objetivo é tão importante
para a ciência quanto o próprio objetivo – às vezes, até mais importante. Pois
o caminho pode ser correto, ainda que a meta se apresente como parada
intermediária que deve ser abandonada” (p. 14).
III
– A ciência sabe que seus resultados, como expressão da reconstrução contínua
do passado através das fontes (e sempre surgem novas fontes, novos achados,
novas ideias para o estudo), são mais transitórios que os problemas a que
procura responder. Na verdade, as respostas sempre se renovam frente aos mesmos
grandes problemas e se isso é válido nas ciências em geral (veja-se o caso da
física entre o legado de Newton e o de Einstein), o é ainda mais para a
pesquisa sobre o Jesus histórico. As mesmas grandes perguntas sobre o homem de
Nazaré terão respostas sempre mais aprofundadas e mais abrangentes com o
decorrer do tempo e o aperfeiçoamento da pesquisa e das mentalidades que se
debruçarem sobre elas.
Por tudo isso,
dizem os autores:
“A ciência é um empreendimento complicado porque não pode simplesmente
“narrar” a realidade, mas refletir sobre fontes, estados da pesquisa e
problemas” (p. 14).
Os
autores terminam sua introdução reconhecendo que eles mesmos, enquanto
pesquisadores, não deixam de ter uma imagem de Jesus e esta é a que surge do
estudo contextual deste personagem a partir do estudo e entendimento de sua
cultura judaica e da história social e política de seu tempo. E isto leva à
percepção igualmente de “pré-compreensões” e “interesses” que mantém a
atualidade e importância de Jesus para os dias de hoje:
“Estamos convencidos de que por meio do Jesus histórico se pode ter um
acesso simpático ao judaísmo, de que uma reflexão sobre sua mensagem aguça a
consciência social e de que o encontro com ele altera nossas questões sobre
Deus” (p. 15).
§ 1
A História da Pesquisa
Sobre a Vida de Jesus
Introdução.
Os
autores reconhecem que, para haver uma pesquisa séria sobre o Jesus histórico,
que tão profundamente acabou por marcar a humanidade apesar do pesado reboco de
licença mítica e poética que se estabeleceu sobre ele, faz-se necessário uma
boa dose de autonomia intelectual para se afastar da imagem que nos foi legada
por séculos de tradição. Esta imagem teológica apresentava um ser que traria em
si, ao mesmo tempo, as instâncias paradoxais do Deus encarnado, do rígido juiz
escatológico e de amoroso salvador.
Por tudo isso,
essa pesquisa sempre foi carregada de tensão e dramaticidade: era efetuado, especialmente
no primeiro século da pesquisa científica séria, em meio a uma cultura modelada
e imersa na imagem tradicional do Cristo sobre-humano com este tríplice aspecto,
por pessoas que foram educadas neste ambiente e contexto e que, por isso mesmo,
tinham de esforçar-se ainda mais que outros pesquisadores para manter a
neutralidade axiológica necessária para perceber, nesta figura, menos o Cristo o
Jesus, tornando-o objeto de uma crítica histórica coerente, que se enriqueceu e
desenvolveu nos últimos duzentos e cinquenta anoso, passando por etapas que se
tornaram bem definidas, sendo os primeiros esforços os mais difícieis.
De
início houve o estudo crítico das fontes clássicas (Evangelhos, Atos dos Apóstolos e
Epistolas). O resultado do uso da crítica literária em comparação com
fontes históricas e religiões comuns ao Império Romano foi que ficou claro que
não foram uns poucos ‘versos satânicos’ que se infiltraram nas fontes,
distorcendo a visão do Jesus histórico, mas que muitos versos sobre Jesus demonstravam
uma reconstrução de sua vida envolta “numa
aura a-histórica de mito e poesia” (p. 20). Aliás, outros homens
extraordinários da mesma época, como Apolônio de Tiana, Hanina Bem Dosa e mesmo
filósofos e oradores de antes e de então (Sócrates, Amônio Saccas, Plotino)
acabaram mais ou menos por ter um destino de encobrimento mítico similar,
efetuado por parte de seguidores e admiradores.
Logo
junto à crítica das fontes viria unir-se o problema do relativismo histórico. O
modo de entender o mundo e as pessoas constituintes de uma cultura que possuem
características próprias, clima intelectual diferenciado e influenciadas por
seu tempo e lugar se tornam estranhas aos estudiosos de uma cultura diferente,
de um espaço diverso e de um tempo posterior, exigindo um esforço de
hermenêutica e compreensão nem sempre passível de ser completo e bem sucedido,
exatamente porque o olhar posterior possui suas próprias influências e
orientações culturais diferenciadas, o que poderia levar ao erro de se
considerar o personagem histórico como estando deslocado ou desligado de seu próprio
contexto. Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração que, por mais
singular que seja um indivíduo, seu legado e suas ideias precisariam se adaptar
ao contexto cultural em que nasceu e cresceu, sob o risco de não ser sequer
minimamente compreendido pelos seus contemporâneos.
Por
fim, em ligação com o relativismo histórico, outro problema perturbaria
igualmente os estudiosos do primeiro século e meio de estudos: o da estranheza hermenêutica. Jesus viveu em
uma época de dominação romana e corrupção dos costumes sagrados de seu povo
pela associação dos sacerdotes do Templo com o dominador estrangeiro. A
ansiedade por libertação, a revolta da dominação e a constatação da degradação
moral dos líderes religiosos tradicionais dariam ensejo a divisões e
formação de facções políticas e
religiosas que buscavam renovar a situação da nação, projetadas na mitificação
de um esperado Messias. Ao redor disso, a inflamação religiosa do povo e a
expectativa por uma intervenção divina no estado de coisas caóticas (e que se
tornariam ainda piores posteriormente), acenderia o misticismo popular onde
curandeiros e homens santos ou pregadores apareciam frequentemente, sempre
acolhidos por parte da população e perseguidos por parte dos dominadores e dos
sacerdotes e alto-funcionários do Templo.
Assim, por
parte de alguns pesquisadores,
“Mesmo se possuíssemos informações historicamente confiáveis e
encontrássemos nelas uma pessoa inconfundível, esse Jesus – que muitos na
infância sentiam tão próximo quanto um bom amigo – isolou-se em seu mundo
passado, cheio de exorcismos e estranhos temores pelo fim do mundo” (p.
20).
Tais
observações foram debatidas e divulgadas por pesquisadores dos séculos XVIII,
XIX e início do XX, alguns mesmo por teólogos renomados. Contudo, apesar de tal
distanciamento e mesmo dessacralização promovida pela crítica das fontes, pelo relativismo
histórico e pela estranheza hermenêutica, Jesus continua a atrair as atenções,
a despertar interesses, a servir de referencial e, por isso continua atual:
“(...) nossa cultura apega-se até
hoje a essa figura. Mesmo onde já não se considera tal pessoa como ‘Senhor’,
busca-se no Rabino de Nazaré o grande irmão, o grande aliado. Onde se defende
uma forma socialista de sociedade, Jesus se torna o precursor do socialismo,
ele que criticou os ricos e rejeitou Mamon. (...) Onde surge uma decisão
existencial, Jesus se torna o pregador de um chamado à decisão que incita o
indivíduo a abandonar o esquecimento da vida. Onde há interesse pelo humanismo
que se emancipou da tutela eclesiástica, Jesus se torna desafiador das
instituições religiosas (...)” (p. 20).
Por isso, qualquer que seja o tempo, a
história da pesquisa sobre Jesus – que hoje está mais diferenciada e mais
desenvolvida – é uma expressão de um movimento de distanciamento e
reaproximação contínuos com este ser singular. E nestas idas e vindas um quadro
mais estável, mais realista e mais humano do mestre da Galileia se faz mas
claro e mais instigante, emergindo aos poucos sob séculos de maquiagens
teológicas e deturpações mais ou menos conscientes feitas sobre a mensagem
original de Jesus de Nazaré.
1. Cinco Fases da Pesquisa sobre a Vida de
Jesus
1.1. – Primeira fase: os “impulsos” críticos
para a questão do Jesus histórico
1.1
.1 - Hermann
Samuel Reimarus (1694-1768)
Reimarus foi professor de línguas
orientais em Hamburgo. Foi influenciado pelos intelectuais britânicos e
dedicou-se a desenvolver as bases para o desenvolvimento de uma religião da
razão, dando seguimento às propostas do deísmo inglês. Propôs pela primeira vez
um método histórico-crítico para a pesquisa de Jesus, destacando dois pontos
metodológicos ainda válidos:
1.- Reimarus propõe um estudo em que se
possa distinguir a pregação original de Jesus daquilo que é dito pelos
seguidores, ou seja, as palavras originárias distintivas de Jesus devem ser
diferenciadas, quando possível, do que é dito pela fé dos
discípulos/apóstolos/seguidores posteriores: “Considero uma grande causa separar totalmente o que os apóstolos
apresentam em seus escritos daquilo que Jesus de fato disse e ensinou em vida”
(citado por Theissen e Merz, “O Jesus Histórico”, p. 21).
2.- A partir desta distinção, Reimarus
propõe a compreensão histórico-contextual do ministério de Jesus a partir do
pano de fundo de sua época, situação política e contexto religioso e social. “A pregação de Jesus só pode ser compreendida
a partir do contexto da religião judaica de seu tempo.” (p. 21).
Pessoalmente, aceito o que Reimarus
destaca como sendo o núcleo da pregação pública de Jesus: a chegada iminente do
Reino de Deus. O chamado constante do personagem galileu à chegada do Reino de
Deus – de resto, uma ideia que os essênios e os expectantes messiânicos e
proto-zelotas já divulgavam, embora interpretando-o de uma maneira mais
materialista e nacionalista – mostra que Jesus usava do discurso em voga para
passar, por meio deles, sua própria interpretação do que seria este Reino (boa
parte das parábolas de Jesus demonstram isso). O consequente chamado à
“conversão” que, talvez, quisesse dizer transformação íntima e/ou de percepção
- já que as imagens bucólicas da maior parte das parábolas parecem apontar para
um reino construído que trará bons frutos a partir da ação responsável e sem
malícia dos novos súditos deste Reino. É até possível que Jesus não entendesse o reino (de Deus/dos Céus) como um evento que há de vir, mas como algo já existente, presente, mas não percebido pelo estado espiritual atual das pessoas. Se olharmos os ditos constantes do evangelho de
Tomé, um dos documentos mais importantes encontrado em Nag Hammadi em 1945,
esta interpretação ganha maior solidez. É provável, contudo, que o entendimento
mais direto deste reino mais espiritualizado fosse transmitido por Jesus mais
particularmente aos discípulos mais próximos mas que não tenha sido bem compreendido pelos seguidores e posteriores e pela maior parte das seguintes comunidades cristãs. Seja como for, a mudança no século IV do domínio de um movimento que era originalmente dos oprimidos e que passa para a esfera dos opressores, a partir de Constantino, teria de modificar e diluir drasticamente a profundidade revolucionária da mensagem original de Jesus.
Discorrendo sobre este importante achado (o Evangelho de Tomé - existem várias traduções em português. Eu uso a edição de Marvin Meyer, editora Imago), Gerd Theissen e Annette Merz destacam a semelhança algo budista da compreensão de Jesus do que seria o Reino dos céus:
"Escatologia presente: o reino (Reino do Pai/Reino dos céus) é uma grandeza supra-histórica, origem e destino do homem que encontrou a si mesmo. Porque o autoconhecimento é o conhecimento do Eu divino próprio e de sua pertença ao âmbito da luz divina. Por isso, o Reino dos céus está dentro como fora do ser humano, e igualmente presente em todos os tempos (cf. Evangelho de Tomé 3.49.50.113)" (p. 60).
De qualquer modo, o modo de ensino e o
comportamento de Jesus, bastante socialista em sua defesa dos oprimidos, dos pobres, dos excluídos e da denúncia da hipocrisia das elites políticas e religiosas, não deixariam de causar escândalo aos
poderosos de sua época, como, de fato, não deixou e o levou à morte sob dois
julgamentos raivosos: um religioso, dos membros do Sinédrio, e outro político,
por parte do procurador romano Pilatos.
1.1.2 – David Friedrich Strauss (1808-1874)
D.F. Strauss foi um filósofo e teólogo,
seguidor de Hegel e F. C. Baur, escreveu um livro que causou profundo impacto:
a Vida de Jesus, em 2 volumes
(1835-1836) que lhe valeu uma proscrição social mas que, ao mesmo tempo,
permitiu levar-se em conta características dos evangelhos que antes eram pouco
percebidos ou, melhor dizendo, pouco debatidas:
“Imagine uma jovem comunidade que adora (...) seu fundador, uma
comunidade fecundada com novas ideias... uma comunidade formada, na maioria, de
homens sem instrução, que não tinham condições de adquirir e expressar essas
ideias na forma abstrata da razão e da conceituação, mas sim na forma concreta
da fantasia, como imagens e história. Sob essas condições o resultado só podia
ter sido este, uma sequencia de narrativas sagradas que trouxe à consciência
uma série de ideias novas provocadas por Jesus, assim como ideias velhas foram
também transferidas para ele, apresentadas como momentos individuais de sua
vida. A mais simples estrutura histórica da vida de Jesus foi cercada com as
mais variadas e significativas guirlandas de reflexões e fantasias piedosas, na
medida em que todas as ideias que a primeira cristandade teve sobre seu roubado
mestre foram transformadas em fatos inseridos (décadas depois) em sua vida” (Strauss, citado em
Theissen e Merz, p. 32).
Resumindo, Strauss destaca que o que
chegou até nossos dias na forma de narrativas e evangelhos sobre Jesus está
imerso em um caldo onde memórias históricas estão misturadas com construções
míticas, surgida nas tradições e cultos de comunidades cristãs.
Nas palavras de Theissen e Merz, “Strauss vê o mito, ‘a saga que é poética
sem intenção’, operando em todas as partes dos evangelhos em que as leis da
natureza são invalidadas, as tradições se contradizem ou os motivos difundidos
na história das religiões, especialmente do Antigo Testamento, são transferidos
a Jesus” (p. 22).
As comunidades cristãs iniciais,
formada por gente de diferentes classes, mas muito mais por gente simples, em
especial durante o período da revolta dos judeus (66 a 74 d.C.), entendiam que
uma vida extraordinária de um ser incrivelmente carismático - como Jesus o foi -
só poderia ser reflexo direto do divino e, portanto, em suas tradições esse
aspecto mítico foi paulatinamente se impondo sobre o aspecto humano e sábio de
Jesus, que se tornou o foco arquetípico (no sentido junguiano) do herói. Este
estado mítico se destaca nos diferentes textos cristãos, canônicos e não
canônicos, e de maneira especial no Evangelho de João, bastante diferente dos outros
três evangelhos sinóticos clássicos do Novo Testamento. Strauss foi um dos
primeiros a reconhecer que este evangelho joanino é estruturado muito mais em
premissas teológicas e míticas que em dados históricos (embora estes ainda
possam ser encontrados no texto).
1.2
– Segunda
fase: o otimismo da pesquisa chamada liberal sobre a vida de Jesus
Durante a segunda metade do século
XIX, em especial nas décadas finais e inicio do século XX, a Alemanha viveu um
florescimento de liberalismo teológico que trouxe grandes insights e orientações ao
estudo do Jesus histórico. “Esperava-se”,
afirmam Theissen e Merz, “pela
reconstrução histórico-crítica da personalidade legitimadora de Jesus e de sua
história, renovar a fé cristã e com isso deixar para trás o dogma cristológico
da Igreja” (p. 23). Para estes autores:
“1. A base metodológica da
pesquisa liberal sobre Jesus é a exploração
crítico-literária das fontes mais antigas sobre Jesus. F. Chr. Baur
demonstrou a primazia dos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) sobre o Evangelho de João, e Heinrich Julius
Holzmann ajudou a teoria das duas fontes
(a base textual mais antiga e conhecida até então, ou seja Marcos e a coleção
reconstituída de ditos de Jesus, denominada Q – de Quelle, fonte em alemão), desenvolvida por Christian Gottlob Wilke e
Christian Hermann Weisse, a tornar-se um sucesso duradouro: Marcos e Q valiam
agora como as mais antigas e confiáveis fontes para o Jesus histórico, ou seja, uma fonte que até
então estivera fora dos interesses dos pesquisadores (Marcos), e uma que foi
primeiramente reconstituída pelos cientistas (Q). Uma emancipação da
tradicional imagem eclesiástica de Jesus pareceu possível sobre essa base.”
(p. 23).
O paradigma desta fase de pesquisa,
especialmente na Alemanha, consistia em que, a partir de uma análise crítica
sobre o texto de Marcos, parecia ser possível traçar um esboço de desenvolvimento
biográfico da vida de Jesus, ainda que preocupações teológicas posteriores
tornassem turvas as linhas de desenvolvimento do seu pensamento.
Heinrich
Julius Holtzmann (1832-1910), o principal representante desta fase de
pesquisa, reconstrói, a partir do material de Marcos, o que ele pensa ser as
linhas gerais desta evolução: em Mc 8, na Galileia, há apontamentos para se
pensar que Jesus desenvolve lá seu pensamento, ligado a uma consciência
messiânica – seja como for como o
próprio Jesus pensasse, a mera possibilidade de que ele fosse o tão esperado
Messias iria repercutir nos seus seguidores e em uma parte da população, que o
veriam como o aguardado ungido “político”. Esta expectativa não seria nada
saudável em uma sociedade dominada e rigidamente segmentada, o que o faria confrontar-se, posteriormente,
com o peso do Sinédrio e de Roma. Ainda assim, é questionável até que ponto o
próprio Jesus se via como um Messias no sentido popular judaico do século I, ou
seja, como sacerdote-general. John Dominic Crossan e outros pesquisadores
recentes questionam a correspondência entre o auto pensamento de Jesus como
mestre de sabedoria e, quem sabe, como um tipo de reformador social (e, assim,
político, em um sentido menos beligerante), dentro do judaísmo, com os traços
do messianismo político que estava fermentando entre os judeus e que explodiria
em 66 d.C.
Marcos escreve décadas após os
acontecimentos e em meio à revolta dos judeus e muito de seu olhar de narrador
está interpretando atos passados, transmitidos em sua maior parte oralmente,
com o olhar político do presente (por volta do ano 70 d.C.) e com as esperanças
de uma comunidade que já não é tão contemporânea de Jesus nem formada em sua
maioria por testemunhas diretas. Por isso, em seu relato, se a Galileia foi
local onde se sugere pelo evangelista que Jesus desenvolve sua consciência
messiânica – e o todo o evangelho de Marcos é construído como um processo da
revelação de Jesus como O Cristo, ou seja, O Messias -, será em Cesaréia de
Felipe que o autor porá Jesus a se revelar como Messias aos discípulos.
“As ‘vidas de Jesus’ liberais resultam da junção da ideia apriorística de um desenvolvimento da
personalidade de Jesus refletido nas fontes com uma aguda análise
crítico-literária. Elas acreditam reencontrar o ideal da personalidade do seu
autor nas fontes sobre Jesus” (pp. 23-24).
1.3 O Colapso (do otimismo) da pesquisa
(liberal) sobre a vida de Jesus
O fim do otimismo da fase liberal sobre
uma reconstituição válida da vida de Jesus com base, sobretudo, na teoria das
duas fontes (o material extraordinário que começou a ser encontrado e divulgado
a partir das duas últimas décadas do século XIX só viria a ser integrado nas
pesquisas mais tarde, a partir da segunda década do século XX. As descobertas
de Nag Hammadi e outras ainda, textuais e arqueológicas, só o viriam a ser
analisadas e debatidas depois de passada a primeira metade do século) deveu-se
à consideração dos seguintes fatores:
A)
Os autores e pesquisadores da fase otimista
esqueciam que muito do que descreviam em suas “vidas de Jesus” eram projeções,
em Jesus, de suas próprias escolhas de traços de personalidade, considerados,
talvez inconscientemente, por eles como altos ideais éticos. Tal afirmação foi
elencada e fundamentada por Albert Schweitzer.
B)
Não se poderia esquecer que o evangelho de
Marcos foi um evangelho construído e voltado para uma comunidade de cristãos
que viviam uma crise aguda dentro do judaísmo - em embates com judeus ortodoxos
- e fora, com a ameaça da rebelião contra Roma (que vai de 66 a 74). Ademais,
ele descreve mais aspirações e anseios teológicos posteriores projetados
retrospectivamente em Jesus, que uma apresentação imparcial de fatos. Sendo
assim, “o evangelho de Marcos seria
expressão da dogmática da comunidade. Nele, a fé pós-pascal (e alguma coisa
realmente deve ter ocorrido de extraordinário após a crucificação para
sedimentar tal fé em um meio tão adverso) na
messianidade de Jesus é projetada intrinsecamente na vida (pré-pascal e) não-messiânica de Jesus” (p. 24).
C)
“K. L.
Schmidt demonstrou o caráter fragmentário dos evangelhos ao argumentar que a
tradição sobre Jesus consiste em ‘pequenas unidades’ e que o quadro cronológico
e geográfico ‘da história de Jesus’ foi criado secundariamente pelo evangelista
Marcos” (p. 24).
O ceticismo
que surge da crítica aos liberais deu ensejo aos tradicionalistas e, mais
ainda, aos teólogos voltados a um entendimento místico ou mesmo mágico da
Bíblia um espaço de reação às pesquisas sobre o Jesus histórico. Entre eles, o
mais conhecido foi Rudolf Bultmann (1884-1976).
Para ele, embebido na teologia mística de Paulo, o que importava do
Jesus histórico era apenas o fato de que viveu e morreu, voltando na
ressurreição. Para ele e seus seguidores,
“o fator decisivo não era o que Jesus havia feito e dito, mas o que Deus feito
e dito na cruz e na ressurreição. A mensagem dessa ação de Deus, o ‘querigma’
neotestamentário, não tem por objeto o Jesus histórico, mas o ‘Cristo
querigmático’ “(p. 25). Se havia algum interesse em se saber algo sobre o
Jesus histórico para estes teólogos, em especial sobre o Jesus pré-pascal, era
se a exaltação na cruz-ressurreição teria alguma base na fase pré-pascal, ou
seja, só se firmaria se o que surgisse dos estudos deste Jesus confirmasse,
retrospectivamente, o Cristo da fé pós-pascal. Era o que constituiria uma nova
– e efêmera – fase de pesquisa, quase um ramo excêntrico, que buscava
sedimentar uma fé a partir de estudos no vácuo da pesquisa histórica. Não é
preciso dizer que tal abordagem “pecava” por tendenciosidade e invertia
negativamente a proposta da pesquisa. Era um bizarro retorno da teologia dogmática
ao universo da crítica.
1.4 A pesquisa judaica sobre Jesus
Segundo Gerd Theissen e Annette Merz,
“Enquanto a teologia cristã desvaloriza a
busca pelo Jesus histórico ao abandonar o liberalismo teológico, a pesquisa
judaica sobre Jesus, que se inicia concomitantemente, continua a tradição
liberal e enfatiza aspectos que na pesquisa científica foram pouco
considerados, a saber, o aspecto judaico da vida e do ensino de Jesus” (p. 27).
O
representante mais conhecido e mais contemporâneo desta vertente é, sem dúvida,
Geza Vermes. Seus excelentes trabalhos
sobre Jesus, baseados em pesquisas hermenêuticas, arqueológicas e históricas,
devem ser lidos por todos os interessados. Boa parte dos trabalhos de
pesquisadores não-judeus, como Charlesworth e Pagels, e mesmo Dominic Crossan,
são bastante harmônico com as pesquisas de Vermes.
1.5. -Fase atual: a “thid quest” pelo Jesus
histórico
Não
tardou a que a tentativa dos teólogos conservadores se fizessem frustradas com
os avanços das pesquisas arqueológicas e históricas, novos achados (os
documentos de Nag Hammadi) e o fato de que os teólogos estavam contaminando a
percepção dos documentos com sua ênfase em fundamentar a identidade cristã ao
distingui-la de suas origens no âmbito do judaísmo e, ao mesmo tempo, ao querer
destacá-la a prioristicamente do que se consideram de heresias cristãs
primitivas (a gnose e o entusiasmo carismático, em especial), dando preferência
às fontes ortodoxas e canônicas. Saindo da Alemanha, o mundo anglo-saxônico vai
contribuir para que o interesse histórico-social suplante o teológico dos seguidores
de Bultmann e, então, “a inserção de Jesus no judaísmo substitui o interesse de
separá-lo dele, a abertura também a fontes não-canônicas (em parte heréticas)
substitui a preferência por fontes canônicas” (p. 28) - por “fontes canônicas” não
se deve entender apenas os textos “oficiais” do Novo Testamento, mas também os
escritos dos “pais” e “doutores” da Igreja (Eusébio, Jerônimo, Irineu, etc.).
Desta
fase atual percebe-se um retrato melhor desenhado de Jesus a partir de seu
contexto histórico-social É possível, com um conhecimento do seu contexto judaico em um país dominado por
uma potência estrangeira, perceber o pano de fundo sobre o qual se destaca a
figura do pregador galileu. “Na aparição e destino de Jesus se refletem as
tensões características da sociedade judaica do primeiro século d.C.” (p. 28). Com isto se depreende que o movimento
original de Jesus se apresenta como uma corrente de renovação dentro do
judaísmo – uma entre outras que estavam a ocorrer no mesmo período, mas que
destas de diferencia por características sócio-político-ideológicas bem
próprias:
“Jesus e
seu movimento pertencem a uma extensa corrente de renovação dentro do judaísmo
que, diante da grande pressão por mudanças que emanava da poderosíssima cultura
helenística, tentavam preservar ou redefinir a identidade judaica. Em Jesus
essa identidade é definida de forma comparativamente ‘aberta’.
1 –
Enquanto outros movimentos de renovação e de protesto associam a expectativa de
uma vitória (militar e política, além de religiosa) de Israel sobre os gentios
com a esperança escatológica numa mudança profunda, na tradição de Jesus o
reinado de Deus fica aberto ao afluxo dos gentios. Contra tendências
separatistas, Jesus ativa a tradição judaica universalista da peregrinação dos
povos a Sião (Mt 8,10s).
2
–Enquanto outros movimentos de renovação intensificam normas especificamente
judaicas, encontramos em Jesus uma radicalização (ou destaque) na Torá em
normas éticas gerais e, ao mesmo tempo, um relaxamento de normas rituais
separatistas (o mandamento do sábado e as regras de pureza).
3 –
Enquanto muitos movimentos de renovação se ‘separam’ do povo, encontramos na
tradição de Jesus uma atenção consciente para aqueles (excluídos) que não
correspondem às normas tradicionais e ficam na periferia. Jesus ativa aqui a fé
em um Deus misericordioso e gracioso contra outras tendências.
4 –
enquanto outros movimentos de renovação expressam um protesto direto contra os
governantes estrangeiros com sua superioridade militar e são parte da
resistência contra os estrangeiros, o movimento de Jesus evita uma confrontação
direta: ele formula a identidade judaica de modo que evita fundamentalmente um
embate com as legiões.
“É
característicos do movimento de Jesus uma forte ação integradora, tanto para
fora como para dentro. O que possivelmente era objetivo de alguns reformadores
helenistas radicais da aristrocracia no começo de nossa era – um judaísmo que
se abre, que ativa suas tradições integrativas e universalista contra
tendências separatistas – é realizado em Jesus de outra forma: não contra o
povo simples, mas a partir de seu meio. Em geral, uma característica do
movimento de Jesus é encontrar elementos aristocráticos num ambiente
não-aristocrático” (p. 167).
Portanto,
a importância do impacto de Jesus – cujos vestígios podem ser encontrados em
registros de Flávio Josefo, Mara Bar Sarapion (de forma neutra e positiva) e em
Plínio, o Jovem e Tácito (de forma negativa) – já no primeiro século, se
traduziu pelo impacto revolucionário de sua mensagem, o que garantiu sua
propagação a partir de baixo, do povo, por todo o Império, apesar da sangrenta
perseguição das elites conservadoras.... Impacto este sensivelmente diluído
quando o movimento de Jesus passou da esfera dos oprimidos para o dos
opressores no século IV quando da oficialização e adaptação imperial do
cristianismo.
Fim da Primeira Parte. A esta pretendemos dar seguimento a outras reflexões, sempre baseadas, em especial, no livro de Gerd Thiessen e Annette Merz
O Jesus Histórico.
Bibliografia sugerida:
Aslan, Reza (2013). Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré. Zahar editora, Rio de Janeiro
Charlesworth, James H. (1992). Jesus dentro do Judaísmo. Editora Imago, São Paulo.
Meyer, Marvin. (2001) O Evangelho de Tomé. Editora Imago, São Paulo
Theissen, Gerd & Merz, Annette (2002). O Jesus histórico - Um manual. Editora Loyla. São Paulo