Do ICL Notícias:
Nikolas Ferreira: a manipulação política do repertório bíblico
A alegria vem pela manhã
Na avenida Paulista, na manifestação do dia 7 de setembro, Nikolas Ferreira ilustrou de forma exemplar a manipulação do repertório bíblico, a verdadeira base da estratégia dos defensores da Teologia do Domínio.
Como sempre, transcrevo a fala do deputado.
“Vocês não estão sozinhos. E que o choro pode durar uma noite, mas a alegria, ela vem pela manhã”.
(Pausa dramática para um breve passeio no trio elétrico. Na multidão, pessoas levantam as mãos para o céu, como se ouvissem uma pregação ou escutassem um louvor.)
“Bem-aventurados os que têm sede de justiça. Bem-aventurados os que choram, porque toda a lágrima um dia será secada pelo nosso Senhor. Eu não tenho dúvidas de que Deus continua com os olhos abertos para nossa Nação”.
Nessa fala, duas passagens muito conhecidas são deliberadamente deturpadas.
Vejamos.
Em primeiro lugar, o Salmo 30 ocupa o centro da cena. Como se sabe, a autoria é atribuída a Davi. O Salmo foi composto para a dedicação do templo, fato que só ocorreu após sua morte, durante o reinado de seu filho, Salomão. [1] A passagem maltratada pelo político assim se lê:
“Cantem louvores ao Senhor,
vocês que são os seus santos,
e deem graças ao seu santo nome.
Porque a sua ira dura só um momento,
mas o seu favor dura a vida inteira.
O choro pode durar uma noite,
mas a alegria vem pela manhã”. [2]
Na vida do fiel, o choro expressa o sofrimento de que ninguém escapa. Contudo, a manhã promete o alívio que será concedido pelo Senhor. Em última instância, trata-se de manter a serenidade em meio às tribulações, pois a fé, em si mesma, é sustento suficiente. Em nenhuma circunstância é razoável a interpretação sugerida por Nikolas Ferreira, que associa o Salmo ao contexto político brasileiro e, ainda mais concretamente, serve como instrumento para atacar o Ministro Alexandre de Moraes. Aqui, nessa hermenêutica oportunista, a “alegria”, alvorada radiosa, só será possível com o impechament do Ministro. A inadequação salta aos olhos.
(Seria uma caricatura se as consequências não fossem a proposta de ordem social teonomista.)
Não é tudo.
Você prestou atenção na forma como Nikolas Ferreira mencionou o Salmo? Reveja o vídeo. Pois é! Isso mesmo que você notou:
“(…) mas a alegria, ela vem pela manhã”
Como acabamos de ver, o trecho é um pouco diferente:
“(…) mas a alegria vem pela manhã”
Ora, por que o deputado adicionou uma curiosa vírgula e, sobretudo, o pronome pessoal “ela”? A resposta é surpreendente, mas muito reveladora. O deputado, dublê de pastor, adotou a lição presente no louvor “Todavia me alegrarei”, grande sucesso de Samuel Messias.
Você conhece o louvor?
Destaco a estrofe que remete ao Salmo 30:
“O choro dura uma noite, mas a alegria
Ela vem pela manhã
Eu creio, eu creio”
O fervoroso deputado parece conhecer o texto bíblico de outiva e não por meio dos olhos… Isto é, menos pela leitura meditada do que pela fruição coletiva do louvor. Contudo, há um tanto de cálculo nesse tropeço tão elementar. Para que se entenda o alvo, basta que se evoque um esclarecimento de grande alcance:
“De início, observo que nas últimas décadas ocorreu algo como um ecumenismo de base no que aqui foi chamado de setores evangélicos. Um pensamento comum, uma cosmovisão única, foi se formando a partir das músicas, cânticos, canções, que circulam livremente entre as igrejas, sem as amarras doutrinárias”. [3]
A hinologia evangélica foi fundamental para a difusão de trechos das Escrituras, assim como da formulação, nada sistemática mas por isso mesmo muito influente, de interpretações deturpadas dessas passagens — quase que exclusivamente com intenção política. A lenta propagação dos fundamentos da Teologia do Domínio dificilmente teria tido idêntico êxito sem sua assimilação, por vezes insciente, propiciada pela multiplicação de louvores, que dominam o cotidiano de milhões de fiéis. A observação do pastor Sérgio Dusilek ilumina a dimensão do problema:
“A influência militar não se deu somente no trânsito dos favores, da reciprocidade entre importantes figuras evangélicas e as principais figuras da república. Esta influência foi gestada e transmitida pela hinologia evangélica, especialmente por certo tipo de música que se popularizou como Gospel. Os chamados cânticos de guerra emularam gerações de jovens às muitas batalhas imaginárias, seguindo a um Jesus, ora apresentado como capitão, ora como general”. [4]
O próprio louvor “Todavia me alegrarei” opera uma colagem de duas instâncias da Bíblia. Além do Salmo 30, Samuel Messias também recorreu ao livro do profeta Habacuque. Recordemos sua oração (cito apenas os trechos mencionados no louvor):
“Ainda que a figueira não floresça,
nem haja fruto na videira;
ainda que a colheita da oliveira
decepcione,
e os campos não produzam mantimento
ainda que as ovelhas
desapareçam do aprisco
nos currais não haja mais gado,
mesmo assim eu me alegro no Senhor,
e exulto no Deus da minha salvação.
O Senhor Deus é a minha fortaleza”. [5]
“Todavia me alegrarei” adapta a passagem, com ligeiras alterações:
“Ainda que a figueira não floresça
Nem haja fruto na vide
Ainda que falhe o produto da oliveira
E os campos não produzam mantimento
Ainda que o rebanho seja exterminado da malhada
E nos currais não haja gado
Todavia eu me alegrarei no Senhor
Exultarei o Deus da minha Salvação
Porque o Senhor Deus
Ele é a minha força”.
Se o proponente da Teologia do Domínio, Nikolas Ferreira, desejasse citar o livro de Habacuque, você acha que ele teria como referência realmente à mão o texto da Bíblia ou a letra do louvor?
As bem-aventuranças
Na sequência da fala do deputado teonomista, a deturpação do repertório bíblico não se constrange nem mesmo diante das bem-aventuranças. O contexto é dos mais conhecidos e celebrados dos Evangelhos: o “Sermão do Monte”:
“Ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte. Ele se assentou e os seus discípulos se aproximaram dele. Então ele passou a ensiná-los”. [6]
Seguem-se no Evangelho de Mateus as sete bem-aventuranças; agora, assinalo somente as duas instâncias deturpadas por Nikolas Ferreira:
“ — Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
(…)
— Bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça,
porque serão saciados”. [7]
Não somente o deputado altera a ordem das bem-aventuranças, mas também manipula seu sentido, a fim de lhes atribuir uma deriva política rasa e vulgar, concluindo com uma ameaça velada — “Deus continua com os olhos abertos para nossa Nação”. Tradução automática: nos momentos de delírio dos presentes na avenida Paulista, o impeachment do Ministro Alexandre de Moraes equivale ao início do Paraíso prometido e à suprema Consolação dos justos que já choraram demais.
E não apenas.
A manipulação das bem-aventuranças foi uma das estratégias centrais na imposição de uma ordem teonomista na República de Gilead, na distopia fundamentalista de Margaret Atwood, “O conto da aia”.
Duvida?
“Na hora do almoço eram as Beatitudes. Bem-aventurado isso bem-aventurado aquilo. Elas punham para tocar uma gravação em disco, a voz era de um homem. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os misericordiosos. Bem-aventurados os mansos. Bem-aventurados os que se calam. Eu sabia que este último eles tinham inventado, sabia que estava errado, e que tinham excluído partes também, mas não havia nenhuma maneira de verificar”. [8]
No Brasil de 2024 ainda podemos verificar e portanto denunciar as inúmeras deturpações do repertório bíblico feitas por defensores da Teologia do Domínio.
(Pelo menos por enquanto.)
[1] “Então o rei e todo o Israel com ele ofereceram sacrifícios ao Senhor. Salomão ofereceu em sacrifício pacífico ao Senhor vinte e dois mil bois e cento e vinte mil ovelhas. Assim, o rei e todos os filhos de Israel consagraram a Casa do Senhor”. 1Rs, 8: 62–63. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017, p. 589.
[2] Salmo 30: 4-5. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Op. cit., p. 935.
[3] Paulo Donizeti Siepierski. “Prefácio”. In: Sérgio Dusilek & Tayná Louise de Maria (orgs.). A noiva sob o véu. Novos olhares sobre a participação das igrejas evangélicas nas eleições de 2022. Rio de Janeiro: Menocchio, 2024, p. 7.
[4] Sérgio Dusilek. “Os batistas da convenção batista brasileira e as eleições de 2022: um caminho de difícil retorno”. In: In: Sérgio Dusilek & Tayná Louise de Maria (orgs.). A noiva sob o véu. Op. cit., p. 25.
[5] HC 3: 17–19. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Op. cit., p. 1605.
[6] MT 5: 1-2. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Op. cit., p. 1705.
[7] MT 5: 4 e 6. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Op. cit., p. 1706.
[8] Margaret Atwood. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 109.