segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A religião matou Jesus e ameaça Francisco



Do Blog Caminho para Casa, de Mauro Lopes:


O teólogo espanhol José Maria Castillo escreve artigo (publicado na manhã deste domingo no site Religión Digital) no qual desnuda a oposição entre a religião e o ensinamento de Jesus:
 “(…) se lemos e analisamos os evangelhos com atenção e detidamente, o que neles encontramos é algo que não apenas nos surpreende, mas nos desconcerta. Trata-se do desconcerto que nos produz o fato de que o conjunto de relatos sobre a vida e ensinamentos de Jesus deixa patente que a religião, como conjunto de leis e rituais, templos, altares e sacerdotes, não aguenta o Evangelho (Boa Nova) e, por isso mesmo, é incompatível com o Evangelho.”
Ele denuncia: os que mataram Jesus são os mesmos que odeiam o Papa Francisco. “A estes, a religião é ótima.”
Leia a íntegra a seguir (a tradução é de minha autoria – Mauro Lopes):
Daniel Bonell, A Crucificação 2 (2000/2005)
É curioso (e chama a atenção) o fato de que a palavra religião (thrêskeia), em seu significado óbvio de “serviço sagrado a Deus”, não é mencionada no Novo Testamento. A palavra “religião” aparece na carta de São Tiago (Ti 1,26-27), mas para dizer que “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisso: socorrer os órfãos e as viúvas em suas tribulações”.
Como já se disse muito bem, o cristianismo, fundamentalmente, não exige um comportamento cultual especial  (W. Radl: Dic. Exeg. NT, vol. I, 1898). Para o NT, a “religião” como culto sagrado, liturgia, ritual ou conjunto de observâncias ou dogmas, não existe nem tem presença ou razão de ser. É um assunto do qual não se fala. Não se menciona uma só vez em todo o NT.
Porém não é isto o mais forte. O mais decisivo, neste assunto tão fundamental, é que, se lemos e analisamos os evangelhos com atenção e detidamente, o que neles encontramos é algo que não apenas nos surpreende, mas nos desconcerta. Trata-se do desconcerto que nos produz o fato de que o conjunto de relatos sobre a vida e ensinamentos de Jesus deixa patente que a religião, como conjunto de leis e rituais, templos, altares e sacerdotes, não aguenta o Evangelho (Boa Nova) e, por isso mesmo, é incompatível com o Evangelho.
Se algo é claro –e repetido tantas vezes nos evangelhos- é que os homens da religião não aguentaram o Evangelho de Jesus. E não o suportaram porque os homens da religião viram, no Evangelho de Jesus, um perigo e uma ameaça de vida ou morte.
Foi o que se viu no Conselho Supremo (Sinédrio) quando os dirigentes religiosos viram que o projeto de Jesus centra-se na defesa da vida, como ficou evidente quando Jesus devolveu a vida a Lázaro (não que o tenha “ressuscitado” para a “outra vida”, mas  o fez recuperar “esta vida”).  O projeto dos homens da religião, por seu turno, é defender e manter seu templo, seus ritos e normas, suas dignidades e privilégios, seus poderes sobre o povo (Jo 11, 47-53).
Isto explica por que Jesus pôs sempre em primeiro lugar a cura dos doentes, a presença com os pobres, os pequenos, os pecadores e a todo tipo de gente depreciada e rechaçada pelos dirigentes religiosos. Esta foi a prioridade de Jesus, quebrando as normas da religião, enfrentando seus sacerdotes e atuando com violência contra aqueles que utilizavam o templo como negócio até convertê-lo num covil de bandidos.
Como é lógico, a sequência prolongada de enfrentamentos acabou como era previsível e inevitável naquela sociedade: a religião matou Jesus. É possível dizer com mais clareza que a a religião é incompatível com o Evangelho?
Porém, se isso é assim, como se explica que, neste momento e durante tantos séculos, a religião tenha estado mais presente que o Evangelho na Igreja e na sociedade?
A resposta é: a religião confere poder, importância, fama, enquanto o Evangelho é vivido a partir da fragilidade, do que é marginalizado e excluído. Por isso, a religião faz você viver em segurança, enquanto o Evangelho (vivido de verdade) obriga-nos a viver na insegurança.
Tudo isto foi se transformando na vida da Igreja. E por isso, nela, debilitou-se o Evangelho e se foi potencializando a religião. Já no século II, o clero separou-se e se sobrepôs aos leigos. No século IV, com a suposta conversão de Constantino, a Igreja passou a receber privilégios. A partir de Teodósio, em 381, além de privilégios, também passou a receber dinheiro. Os ricos começaram a entrar em peso na Igreja, em geral para cumprir com funções de liderança como bispos e escritores cristãos (Padres da Igreja e teólogos). A Igreja organizou-se e geriu-se a partir dos ricos e poderosos (Peter Brown, “Por el ojo de una aguja”, pg. 1034).
Assim é que a Europa ficou marcada pela religião cristã, mas muito longe do Evangelho de Jesus.
Por mais estranho que pareça, agora mesmo estamos uma situação inesperada, uma oportunidade. A religião está aos pedaços e afunda. É verdade que há casos em que a política, o nacionalismo, a riqueza pretendem suprir o vazio da ausência da religião (cf. Juan A. Estrada).
Porém, mais forte e determinante é o anseio, o desejo de recuperar os valores evangélicos: que haja vida, humanidade, felicidade para todos. Nem a política, nem a tecnologia, nem a religião respondem a este anseio mundial, a este grito da terra, que a cada dia se faz mais forte e mais insistente. É a voz do Papa Francisco, o grande líder mundial que surgiu inesperadamente, tão mais presente quanto mais odiada por tantos clérigos (e seus acólitos), que, como os fariseus antigos, não suportam o Evangelhos. A estes, a religião é ótima.

Desembargador Lédio Rosa, em evento na UFRJ, acusa o avanço do fascismo em partes do atual judiciário e a imprensa,


Do Contexto Livre 

 Em discurso emocionado na UFRJ, no dia 27 de outubro de 2017, durante Ato Unificado de movimentos sociais em defesa da soberania nacional, o desembargador Lédio Rosa, acusa o sistema de justiça (judiciário, mp e polícia) e a imprensa de praticarem fascismo contra cidadãos brasileiros.

domingo, 29 de outubro de 2017

O rastro da onda ultra-reacionária: derrocada dos direitos e moralismo compensatório, por Flávia Biroli


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"Precisamos discutir se o modo de construção das resistências e das lutas nos últimos 30 anos terá potência política neste momento em que o neoliberalismo se torna antiliberal e confronta mesmo agendas mínimas de direitos humanos e sociais."
GGN. - Há dois anos, em outubro de 2015, publiquei nesta coluna um texto sobre a onda ultraconservadora e os riscos para a democracia, procurando caracterizá-la a partir do Congresso Nacional. Utilizei a metáfora da onda para registrar que se acumulavam e ganhavam vulto reações à agenda de direitos humanos e de direitos sociais. Não era possível, ainda, avaliar quais setores da sociedade dariam volume a essa onda e o que ela carregaria com ela. Hoje sabemos um pouco mais do que a mantém em movimento: é feita da dinâmica acelerada de retirada de direitos e da aposta no moralismo compensatório como forma de canalizar politicamente frustrações e de desviar a atenção do desmonte em curso.
Naquele momento, Eduardo Cunha, hoje preso no Complexo Médico-Penal de Pinhais (PR), presidia a Câmara dos Deputados e dava à tramitação de projetos para promover retrocessos nos direitos das mulheres e da população LGBT um ritmo quase vertiginoso, que anunciava o estilo do seu protagonismo na deposição de Dilma Rousseff. Digo “quase” vertiginoso porque sabemos, agora, o que viria nos dois anos que nos trouxeram a este outubro. O golpe de 2016, que permitiu a ampliação do controle de setores reacionários sobre a política nacional, se prolongaria no ambiente político que tornou possível a retirada de direitos trabalhistas, recuos na definição e fiscalização do trabalho escravo e a inclusão de uma intervenção militar como alternativa no cenário político. Colaborou para a versão nacional de um problema que não se esgota no Brasil: a conformação de um ambiente social antiliberal, que coloca em xeque o pluralismo e os direitos individuais. Os ataques à arte e ao pensamento crítico mostram que está em curso a promoção de códigos morais conservadores por diversos grupos sociais, que apostam na potencial reação de algumas camadas da população a transformações sociais profundas nos padrões conjugais, afetivos e da sexualidade.
Qual democracia estava em risco quando, há dois anos, escrevi aqui sobre a onda ultraconservadora? Uma democracia insuficiente, é certo. Mas os últimos 30 anos haviam trazido as disputas pela construção democrática para novos patamares. A Constituinte de que resultou a Constituição Federal de 1988 foi palco de embates em que grupos conservadores e protagonistas da ditadura de 1964 puderam mostrar sua força na conformação da nova institucionalidade. Apesar disso, a atuação política de movimentos sociais, atores e organizações de caráter progressista resultou na incorporação da agenda de direitos humanos e de uma perspectiva distributiva na abordagem da pobreza e das desigualdades. Não se trata de exaltar o processo democrático brasileiro, mas de explicitar o papel político dos avanços constitucionais para que, nos embates difíceis que se deram nos anos 1990, uma agenda progressista ganhasse legitimidade e fosse se transformando em novos debates, legislação infraconstitucional, políticas públicas e diretrizes para políticas de Estado.
Parece-me razoável afirmar que a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder com as eleições de 2003 foi engrossada pelas insatisfações com a persistência das desigualdades e com os limites da política neoliberal adotada por Fernando Henrique Cardoso, mas também pelo fortalecimento de agendas que podiam ser mobilizadas pelo PT e por Lula como capital político a partir de sua própria história. Direitos sociais, combate à pobreza e às desigualdades e, de modo mais amplo, a defesa da construção de um país mais justo foram temas que passaram a balizar os debates nacionais a partir de 1988, impondo malabarismos terminológicos àqueles identificados com a conservação do status quo e, até certo ponto, com as forças de mercado, como se pôde ver pela impopularidade da temática das privatizações nos debates eleitorais. Sim, numa perspectiva das estratégias para eleições e da construção de alianças para governar, o PT se adaptou à velha política e moderou seu projeto; de outra perspectiva, no entanto, pode-se afirmar que a sociedade é que se adaptou em alguma medida à trajetória histórica do PT. Esses dois processos existiram concomitantemente, mas ressalto aqui as transformações nas expectativas de diferentes setores da população e a “normalização” da agenda de direitos humanos e sociais, incorporada às políticas de Estado após 1988.
O ambiente internacional dos anos 1990 nada deveu em ambiguidade ao nacional. Enquanto o Consenso de Washington impunha recuos nos investimentos sociais e na regulação das relações de mercado pelos estados nacionais, fóruns internacionais de debates com forte participação de diferentes setores da sociedade civil organizada e acordos multilaterais abriam a possibilidade de constranger mais diretamente esses mesmos estados a reconhecer a diversidade entre as pessoas e promover o respeito à igual dignidade por meio de leis e de políticas para o combate à violência contra segmentos específicos da população. Penso nos encontros promovidos pela Organização das Nações Unidas no período, como a Conferência de Direitos Humanos de Viena, de 1993, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Conferência do Cairo), de 1994, e a Conferência Mundial sobre a Mulher (Conferência de Pequim), de 1995. Novas compreensões dos direitos em disputa e dos grupos que demandavam reconhecimento como sujeitos políticos legítimos se estabeleceram. Foi esse o ambiente em que movimentos LGBT e feministas ampliaram seus recursos materiais e simbólicos para atuar nos espaços nacionais. Embora faça sentido pensar que essa ampliação teve custos, levando a ajustes nas suas agendas, houve nesse processo ganhos de legitimidade que deslocaram o eixo dos debates em torno de direitos e políticas.
Embora seja sempre um risco resumir processos políticos em breves cronologias, vejo no início dos anos 2000 um aprofundamento das ambiguidades já presentes nos anos 1990. Com o fortalecimento da lógica de mercado e o enfraquecimento da autonomia política dos Estados nacionais, ampliaram-se os custos da resistência e da construção de alternativas sociais para o desenvolvimento nos contextos nacionais. Ao mesmo tempo, agendas referenciadas pelos direitos humanos, associadas em diferentes graus a perspectivas distributivas e de proteção social, compuseram a dimensão progressista da política em países latino-americanos nos quais, como no caso brasileiro, partidos e lideranças com trajetória de esquerda chegaram ao poder.
Minha hipótese é um tanto óbvia, mas não repercute na maior parte das análises por trilharem caminhos pelas explicações econômicas ou pela dimensão dos direitos humanos e da chamada “política de identidades”. É a seguinte: a agenda dos direitos humanos e de grupos específicos que levaram novos problemas e demandas ao debate público e ao âmbito estatal, como os movimentos LGBT, feministas, negros e indígenas, não incidiu em um universo paralelo ao da política partidária e das diretrizes econômicas. Em alguns casos isso é bastante evidente, como o da demarcação de terras indígenas e o da incorporação de uma perspectiva racial e de gênero à política de proteção social. Em outras frentes, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o combate à violência contra as mulheres e o direito ao aborto, há mais mediações. Um dos pontos de contato nesses casos é a definição da “família funcional” em um contexto de reestruturação produtiva. Vale lembrar, ainda, que avanços contrasseculares, nos quais se promove essa concepção ao mesmo tempo convencional e ajustada da família, também têm relação direta com o poder de grupos religiosos que operam como empresas e mobilizam o apoio dos fieis como capital para obter vantagens políticas e financeiras.
O fato de que no Brasil dos anos 2000 a agenda dos movimentos progressistas tenha sido empurrada para as margens pelo próprio partido historicamente identificado com ela, numa dinâmica do te-reconheço-mas-por-favor-se-comporte, não significa: (1) que os movimentos e organizações seriam passivos nesse processo, reduzindo as expectativas de incidir sobre o processo político quando as brechas existissem; (2) que seria possível controlar o grau de tolerância dos setores conservadores, contendo os primeiros e oferecendo satisfações de outra ordem aos segundos. O ambiente político em que demandas, apostas estratégicas e insatisfações se estabelecem e são potencializadas ou enfraquecidas é multifacetado. Interesses econômicos, interesses de autopreservação e ampliação do poder de agentes políticos, assim como a busca de fazer valer novos interesses a partir de lutas históricas e com forte apelo simbólico, ganham pesos distintos e podem em alguns momentos predominar, mas não são neutralizados uns pelos outros.
Parte dessa história pode ser contada se prestarmos atenção às reações aos Planos Nacionais de Direitos Humanos, sobretudo ao PNDH-3, publicado em 2009. Nele, as demandas dos movimentos emergem, como disse Sérgio Adorno em artigo publicado na revista Novos Estudos em março de 2010, em linguagem distinta daquela com a qual o Partido dos Trabalhadores operava predominantemente no espaço institucional e nas campanhas políticas mais recentes. Essa linguagem ecoava sua história e a presença dos movimentos sociais que constituíram sua base. Talvez houvesse naquele momento a compreensão de que finalmente seria possível enfrentar mais abertamente e a partir do ambiente estatal limites históricos da democracia brasileira, como a violenta restrição dos grandes proprietários de terra à reforma agrária, a combinação entre concentração da propriedade de mídia e ausência de controle social sobre os meios de comunicação, a violência contra mulheres e contra a população LGBT e a recusa a conceder a esses segmentos direitos de cidadania já garantidos a outros. Um dos eixos mais polêmicos foi, como se sabe, a recomendação de que fosse instaurada uma Comissão Nacional da Verdade para apurar a responsabilidade dos agentes do Estado pelos crimes ocorridos durante a ditadura de 1964. Ficou claro, naquele momento, que setores das empresas de mídia e do establishment político conservador estavam dispostos a amplificar a posição dos militares em defesa da ditadura e da própria corporação, assim como amplificaram as posições dos ruralistas e, em menor medida, a de cristãos conservadores. Estes últimos têm seus próprios meios, veículos e públicos, e souberam desde então explorar crescentemente a ideia de que haveria um plano esquerdista “contra a família”.
Nossas narrativas sobre a crise e a onda ultraconservadora corresponderão a essa complexidade quando forem capazes de combinar diferentes sequências de acontecimentos, diferentes dimensões das disputas. O processo recente nos indicou essa necessidade também em eventos simbólicos. Entre as manifestações favoráveis à deposição de Rousseff, no Parlamento, nas redes sociais e nas ruas, emergiram concepções convencionais da família, visões pró-mercado e contrárias a políticas sociais, um moralismo de ordem religiosa e secular que se opõe a direitos individuais e recusa e pluralidade e, mais pontualmente, a defesa da militarização e do retorno a uma ditadura.
Desde então, ficou ainda mais evidente que há mais do que convergência entre as ações dos neoliberais pela desregulação dos direitos sociais e trabalhistas e as ações dos reacionários “morais”. Ícones do neoliberalismo no contexto nacional se aproximam de setores evangélicos conservadores, numa performance que pode ter muitos efeitos nos anos que virão: o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, visita lideranças evangélicas em sua tentativa de firmar-se como pré-candidato às eleições de 2018; os garotos do Movimento Brasil Livre confirmam em conversa de WhatsApp relatada pela revista Piauí (“O grupo da mão invisível”, publicado em 3 de outubro de 2017) a estratégia de aliança entre o que chamam de “setores modernos da economia”, ruralistas e grupos evangélicos para as eleições de 2018. Na mesma conversa, dão ainda uma canja sobre seu alinhamento aos setores reacionários utilizando o termo “desarmamentista”, comum no debate estadunidense, para desvalorizar um possível adversário no mesmo campo ideológico em que se movem.
Desde meados de setembro deste ano, o ultraconservadorismo ultrapassou novos limiares no Brasil. Exposições de arte foram canceladas pela ação casada de grupos neoliberais da nova direita e setores religiosos conservadores católicos e evangélicos. Houve obra-de-arte apreendida e peça de teatro suspensa entre brados em defesa da infância e da família e, claro, contra o PT. No dia 5 de outubro, um general da reserva publicou no jornal O Estado de S. Paulo um artigo em que afirma que o Exército tem o dever de impedir que “a legalidade continue sendo corrompida pela ilegitimidade”. Ainda neste outubro, o Senado Federal aprovou um projeto de lei, já sancionado pela Presidência da República, que permite que crimes cometidos por militares contra civis não sejam mais levados ao Tribunal do Júri, sendo julgados pela Justiça Militar, retrocedendo na orientação do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-1, de 1996. Para confirmar que os dias são sombrios e que a reação se dá em várias frentes, pouco antes de finalizar este texto uma portaria do Ministério do Trabalho publicada em 16 de outubro restringia a definição de trabalho escravo para efeito de fiscalização e criava obstáculos para o acesso à “lista suja” daqueles que desrespeitam a legislação.
A ofensiva é ampla. É vertiginosa, desta vez, tanto pelo ritmo acelerado em que é colocada em prática quanto pela amplitude que alcança, desmontando rapidamente uma série de direitos e atingindo de diferentes maneiras múltiplos segmentos da sociedade, que se tornam mais vulneráveis à exploração e à violência.
Fiz aqui um percurso pelos últimos 30 anos porque me parece importante entender a que reagem, isto é, a que se dirige essa ofensiva. Mas também porque me parece que precisamos discutir se o modo de construção das resistências e das lutas nos últimos 30 anos terá potência política nesse momento em que o neoliberalismo se torna antiliberal e confronta mesmo agendas mínimas de direitos humanos e sociais.
Foi significativa a construção de lutas específicas em um contexto em que a agenda de direitos foi remodelada. Novas linguagens e novos atores coletivos ganharam identidade política, legitimidade e experiência, colhendo resultados simbólicos e efetivos. Para recorrer a apenas dois exemplos, as lutas das mulheres negras remodelaram a abordagem do combate à violência, as lutas da população LGBT modificaram o entendimento de como o direito à saúde incorpora a sexualidade e as identidades sexuais. No cenário atual, as reações se dão em várias frentes, aparecem conjugadas ou convergem na mobilização de setores da população com potencial de adesão ao reacionarismo social e moral. No ambiente político institucional, operam para desfazer o patamar em que nos situávamos desde a transição para o regime democrático, atuando para deslegitimar atores e deslocar a agenda dos direitos humanos e sociais da posição de centralidade que teve nas disputas nas décadas recentes.
Os atores reacionários repetem seus discursos contra o “esquerdismo”, o “comunismo”, os “radicalismos” feministas, LGBT, dos movimentos negros. Opõem-se a projetos de orientação socialista, igualitários e de reconhecimento das diferenças. Mas situam esses projetos bem aquém das expectativas dos próprios atores progressistas. O que combatem de fato é um patamar civilizatório e a igual dignidade em sociedades plurais e complexas. Por isso é urgente encontrar uma linguagem comum ao campo da esquerda, que oriente articulações e estratégias, que retome a afirmação dos direitos humanos e sociais como baliza das lutas, sem perder o que acumulamos nas décadas em que aprendemos o que significa construi-las com respeito às diferenças.
17 de outubro de 2017.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

sábado, 28 de outubro de 2017

Do Le Monde Diplomatique: Os limites da Democracia Brasileira foram atingidos pelo golpe


Do Le Monde Diplomatique:

    Com o golpe da cleptocracia e a tal “agenda de reformas”, o impasse entre direitos e mercado está sendo de algum modo resolvido, mudando a Constituição para bem pior. Ou seja, estamos num momento em que está sendo mandado às favas aquele pacto democrático capenga que, bem ou mal, nos dava alegrias cidadãs. Por Cândido Grzybowski




 O golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita em 2014, revelou as contradições e os limites da Constituição de 1988 e do processo de democratização no Brasil. O golpe é, de certo modo, o desfecho de uma democracia que vinha perdendo intensidade ou, de outro modo, que não havia conseguido superar suas contradições de origem. Ao mesmo tempo, o golpe, ao inaugurar um novo período político, aguçou as contradições anteriores e criou novas, que passaram a corroer o que ainda resta de democracia.

Estamos diante de uma questão de disputa de hegemonia política – de coalizão de forças capaz de gerar poder político e imprimir direção – na sociedade brasileira. Como ponto de partida de minha análise, é fundamental identificar e qualificar o que estava e ainda está em disputa de forma capaz de aglutinar a sociedade em blocos. Considero que se trata de disputa de hegemonia por ter tal capacidade aglutinadora no seio da sociedade, nos imaginários sociais, na mídia, nas organizações e movimentos, nos partidos. Claro, as disputas políticas na sociedade são muitas e diversas, não podendo ser reduzidas a uma disputa de hegemonia do poder político em dado momento histórico. Considero estratégicas as muitas lutas e debates emergentes, mas por questão de espaço de análise neste artigo limito-me à luta por hegemonia política no contexto democrático, sabendo que ela é apenas um elemento indispensável, mas longe de responder a tudo.

Em termos simples, qualifico a conquista da democracia nos anos 1980 como alternativa à ditadura na promoção do desenvolvimento capitalista no Brasil, e não como alternativa ao próprio capitalismo. Ou seja, gestou-se um poderoso movimento de cidadania que contribuiu decisivamente para o fim da ditadura e para instaurar uma regulação democrática do capitalismo e seu desenvolvimento entre nós. O mal maior a superar, naquele momento, era o capitalismo selvagem identificado com a própria ditadura militar e seu projeto de Brasil potência a pau e fogo. Com a democratização, a disputa de hegemonia se deslocou e passou a se configurar de outro modo: de um lado, o conjunto de sujeitos coletivos que busca a radicalização da democracia com mais e mais direitos de cidadania, com enfrentamento das exclusões sociais, injustiças, racismo, patriarcalismo e a enorme desigualdade social, com um Estado mais republicano e indutor de um desenvolvimento capitalista inclusivo, com geração de empregos e distribuição de renda; e, de outro, o conjunto dos sujeitos coletivos que pensam e desejam uma democracia mais formal e uma cidadania sobretudo eleitoral, com um Estado a serviço do desenvolvimento, mas não seu indutor, com menos interferência na economia e mais liberdade ao mercado, tudo visto como condições para o investimento capitalista e a acumulação privada, capaz de gerar empregos e, consequentemente, com o possível crescimento do bolo, aumentar o consumo e o bem-estar de todos.

Apesar de a questão da hegemonia estar apenas esboçada, identifico alguns momentos fortes de tal disputa desde o fim da ditadura militar no Brasil. No entanto, como não pretendo fazer a história da democratização, limito-me a chamar atenção para alguns elementos, sem pretensão de esgotar a análise. Partindo do momento que estamos vivendo, com o aguçamento das contradições nele presentes, vou “escavar” o que está por trás e o que já passou, para melhor avaliar o que precisamos fazer hoje para revitalizar e radicalizar a democracia, desta vez como alternativa ao capitalismo globalizado, forte em nosso seio, que nos está levando à barbárie.

Golpe da cleptocracia

Creio que não preciso aqui, em nosso Le Monde Diplomatique Brasil, explicar por que o governo Temer nasceu praticando um golpe na institucionalidade democrática, com a conivência do Judiciário. Basta dizer que o golpe contra o governo Dilma se situa no limite de uma ruptura perigosa no que defini anteriormente como a disputa hegemônica no processo de democratização. Do golpe à volta ao autoritarismo é um passo. Não é de ficar surpreendido com a legitimação de atores e vozes autoritárias neste momento que, aliás, apoiaram desde a primeira hora o golpe e a volta do autoritarismo militar, inclusive com bandeiras nas grandes mobilizações ocorridas em 2015 e começo de 2016.

Deixo de lado tal questão e vou direto ao que o golpe significa. Talvez a melhor definição para o governo Temer seja que estamos diante de uma cleptocracia escrachada – segundo o Houaiss, trata-se de regime político-social em que práticas corruptas são admitidas e consagradas. O presidente lidera a lista dos fortemente envolvidos em corrupção. Oito ministros acusados de corrupção o secundam. Sua base parlamentar é liderada e composta por um bando de corruptos. Os partidos da base do governo no Congresso Nacional têm em comum, como liga que os une, a prática da corrupção e a busca de medidas legais para se livrar de possíveis investigações e condenações. Não vale a pena seguir a lista de escândalos e da pequenez política dos cleptocratas, pois isso é de conhecimento público.

Como foi que corruptos de tal quilate armaram o golpe… e, o que é mais incrível, em nome do combate à corrupção dos governos petistas? Aí é que entra a disputa de hegemonia. A Lava Jato e a percepção criada na sociedade sobre ela foram muito importantes. Para o golpe, porém, fundamental foi o papel da grande mídia, negócio privado e monopolista. Aí começamos a identificar o primeiro déficit – melhor, talvez, contradição – da democratização ocorrida. Não enfrentamos o poder privado e a mercantilização da comunicação, que afeta de morte a informação, a imaginação e a cultura, bens comuns fundamentais para a radicalização da democracia. O outro déficit fundamental foi não ter criado uma blindagem da política, outro bem comum essencial na democracia, de sua mercantilização ou, de outro modo, dos negócios empresariais que, para prosperar, corrompem a política em busca de favores. Ampliamos a cidadania política de forma abrangente – acabamos, por exemplo, com a vergonhosa exclusão do direito de votar e ser representados dos analfabetos e estendemos o direito de votar à faixa dos 16 aos 18 anos –, mas não livramos a cidadania da manipulação de partidos e campanhas eleitorais pelos donos de capital.

O golpe do impeachment se fez à base de corrupção e traições, numa negociata envolvendo financiamentos e partilhas com partidos e deputados migrando da coalizão com a presidenta Dilma para uma outra, sob liderança do vice Temer, do PMDB. Aqui está o terceiro déficit fundador de nossa democracia: a conciliação como estratégia de conquista do poder político e da governabilidade, formando maiorias nada programáticas e ideologicamente articuladas. No Executivo e nos parlamentos forjam-se maiorias com compra de lealdades momentâneas e loteamento do Estado. A negociata foi a tal “agenda de reformas”, com garantia de limitar as investigações de corrupção. As reformas são, na verdade, um desmonte da Constituição de 1988 e de direitos conquistados e consagrados. Ela já avançou perigosamente e talvez já destruiu o essencial em termos de uma democracia que mereça tal nome. Tudo vem sendo feito em nome de um projeto de futuro que nos remete ao capitalismo selvagem. Não se trata somente de menos Estado, mas de um Estado forte para favorecer as forças brutas do mercado, contra direitos. Sei que a afirmação é forte, mas precisamos encarar as mudanças em curso como estratégias que podem levar a uma instauração do fascismo… por via democrática, como foi na Alemanha com Hitler e na Itália com Mussolini.

No momento em que escrevo este texto, o governo Temer resiste na corda bamba, por causa das graves denúncias contra o presidente e seus mais próximos apoios no Palácio e no Congresso. A grande mídia já está caindo fora, especialmente a Globo. A tal base no Congresso é muito gelatinosa e pouco confiável, sem consistência programática, como o próprio governo, só oportunismo político e preocupação em preservar os mandatos conquistados, nada representativos da sociedade, mas fiéis aos financiadores eleitorais. Ou seja, estamos diante de algo de fachada, de institucionalidade legal, mas sem legitimidade democrática ou poder real. São outros, nada ou pouco visíveis, que impuseram a “agenda de reformas”, utilizando-se do governo fantoche que temos. O pós-Temer poderá ser uma inversão de tendência ou algo pior ainda.

Limito-me a sinalizar estes pontos e vou para o outro momento ou nível de análise. Não é um bando de corruptos que tem projeto, ele é somente pago para executá-lo. Quem está por trás? Qual é sua capacidade em impor a tal a agenda ao país, base para nos levar a um gigantesco retrocesso e até ao fascismo, ou, como afirma Boaventura de Sousa Santos, a uma democracia fascista, se é que tal híbrido é possível inventar?

As forças e os interesses que sustentam a volta de um capitalismo selvagem e a inserção submissa na globalização

Volto ao que já escrevi há pouco. O golpe do impeachment não só revelou uma conjuntura de grande mudança na correlação de forças políticas no Brasil, mas também trouxe com ele um projeto de arquitetura do poder de Estado que restringe seu poder garantidor de direitos democráticos de cidadania para todas e todos, amplia seu poder repressivo em nome da “ordem e progresso”, renuncia ao seu poder de regular o desenvolvimento e abre espaço à expansão das forças brutas do mercado. Trata-se de um “Estado mínimo” do ponto de vista democrático e de um “Estado fortaleza”, beirando o fascismo, para garantir privilégios de classe da nossa velha oligarquia capitalista. O projeto visa a uma mudança mais duradoura para que a assimetria do poder em favor das classes abastadas não seja ameaçada novamente, por isso o esforço de fazer o mais rápido possível as tais reformas constitucionais ou, se Temer cair, zelar por um substituto que leve a tarefa a cabo.

O poder formal está, por enquanto, nas mãos da cleptocracia. No entanto, o poder real está sendo exercido pelo “senhor mercado”. Mas quem é esse tal senhor? De maneira simples, podemos defini-lo como aquele 1% de privilegiados porque donos de vultosos capitais, empresas e conglomerados, proprietários de terras e de bens, banqueiros e especuladores. O “senhor mercado” tem seus analistas e ideólogos, estrategistas e gestores fiéis, além da grande mídia para o trabalho de convencimento e criação do senso comum sobre o bem e o mal. É incrível que tal sujeito abstrato – “o mercado” –, um verdadeiro feitiço que se mede por valores monetários milionários e até bilionários, com consumo suntuoso em ilhas fortalezas em nossas cidades, tenha tanto poder de sedução e indução, sem outra motivação que não sua própria acumulação. Para crescer e acumular, todos os meios são possíveis, legítimos e ilegítimos. Em sua visão, o poder estatal e as leis devem estar a seu serviço, caso contrário tudo se faz para mudá-los ou, então, contorná-los pela fraude, corrupção e paraísos fiscais.

A “agenda de reformas” formulada pelo gerentão de banco, ministro Meirelles, tem em seu DNA o sentido único e certeiro de adequar o país, especialmente o principal instrumento de fazer política do Estado, que é o orçamento, para limitar gastos com direitos sociais (em seu sentido amplo), vistos como desperdício, para assim priorizar o mercado e a acumulação – na verdade, favorecer os lucros de banqueiros e especuladores sanguessugas da dívida pública, alimentada por uma política de juros beirando a agiotagem oficial.

Um elemento adicional do projeto de Estado dos donos reais do poder é a volta de uma inserção submissa no capital globalizado. Nada de veleidades como Mercosul, Unasul, Brics, relações Sul-Sul. Querem mostrar que são amigos fiéis e subservientes da potência maior, os Estados Unidos. Será que o nacionalismo conservador de Trump quer isso? Na realidade, a globalização capitalista parece caminhar no sentido de desenhar uma espécie de geopolítica regional. Logo agora que os donos do poder por trás do golpe renunciam a ser potência regional? Por quê? Nossa sorte é que eles também têm um calcanhar de aquiles com seu capitalismo selvagem, extremamente dependente de extrativismo mineral e do agronegócio.

A favor dos donos reais do poder no Brasil é a conjuntura mundial de perda de vitalidade da democracia por toda parte e a volta de uma agenda reacionária e conservadora. Ou seja, eles não são uma exceção; embarcam numa onda maior de encurralamento das democracias reais e de redução de direitos. A onda do conservadorismo está associada ao aumento de visões nacionalistas estreitas e controle de migrações, de mais intolerância, de fundamentalismos e de racismo pelo mundo. Enfim, nosso golpe tupiniquim se dá numa conjuntura em que muitos golpes contra a democracia estão acontecendo pelo mundo. Será que a globalização capitalista, hoje radicalmente financeirizada, portanto não produtiva, saberá se reinventar sem levar o planeta Terra a uma desastrosa crise que escapa ao controle e dá lugar à mais pura barbárie? O incrível é que isso já está ocorrendo de forma radical no Brasil.

Rupturas do pacto democrático ou limites da própria democracia conquistada nos anos 1980?

Saímos da ditadura por meio de muitas trincheiras abertas pelo novo sindicalismo e pela CUT, pelos novos movimentos sociais, pelas comunidades de base, pela OAB liderada por Faoro e pela frente democrática, entre outros, que desembocaram no movimento da Anistia e, depois, no Diretas Já. O pacto democrático se esboçou naquele acórdão da Aliança Democrática, liderado por Tancredo e Sarney para ganhar a eleição indireta de presidente no Congresso Nacional, ainda no contexto da ditadura militar. Foi como juntar o lado menos radical dos democratas com o lado menos radical dos autoritários. Deu na Nova República, quase natimorta, pois o representante mais democrata, Tancredo, não tomou posse e veio a falecer. Seu vice, Sarney, saído do seio da ditadura e tornado democrata de ocasião, virou nosso presidente. Vicissitudes da vida, mas bota azar nisso! O fato é que essa se tornou a pedra fundamental do edifício democrático que acabamos construindo. Pedras fundamentais são apenas pedras, sinais de algo por fazer, que muitas vezes nunca acontece. Mas, no caso da Nova República…

A convocação de uma Constituinte fazia parte do tal acórdão. Ela foi feita, mas não na forma demandada pela cidadania de uma Assembleia Constituinte exclusiva, e sim de uma Assembleia formada pelos deputados e senadores eleitos em 1986, somados aos senadores eleitos em 1982, ainda em plena ditadura. Como a Nova República nasceu como transição e não como ruptura, a Constituinte acabou tendo uma hegemonia do pensamento conservador, já que as mesmas regras de eleição da ditadura determinaram a conformação do Congresso virado Constituinte. Isso deu origem ao “Centrão”, em que tudo cabia, mas a liga era a linha extremamente conservadora e a favor do “mercado”, muito semelhante à tal base do Temer no Congresso hoje.

A contradição de origem acabou moldando uma Constituição híbrida, extremamente contraditória em seu âmago. Graças à pressão popular, de uma sociedade organizada e participante, a Constituição aprovada em 1988 incorporou o essencial das emendas populares em termos de direitos sociais e do valor da dignidade humana – especialmente seguridade social, saúde e educação – mais Código do Consumidor, erradicação da pobreza e meio ambiente. Porém, deixou de fora tudo o que diz respeito à economia e ao desenvolvimento, tributação mais justa, reforma agrária e imobiliária urbana. Um aspecto fundamental, hoje pouco lembrado, é que a Constituição de 1988 não reformou a política elegendo-a como bem comum democrático essencial. Destaco aqui a falta de uma blindagem da política aos interesses patrimonialistas e à mercantilização, deixando-a mais dependente de negócios do que de cidadania, em sua diversidade. Já sinalizei anteriormente os grandes déficits de nossa Constituição, pacto democrático importante naquele momento histórico, mas não renovado e radicalizado nos trinta anos que nos separam dele.

O espaço aqui não me permite aprofundar a questão. O fato é que deixar a economia de fora de uma leitura e regulação democrática sobre ela deixou nossa Constituição de 1988 com uma contradição monumental para o futuro democrático do Brasil: direitos sociais de cidadania de feição mais para a radicalização da democracia e falta de regulação radical da economia como condição para o Estado democrático garantir tais direitos sociais. Os momentos de democratização que se seguiram à Constituição de 1988 se configuraram como formas em que tal contradição foi vivida. Nos termos em que aqui estou analisando, isso conformou a disputa de hegemonia dos últimos trinta anos no Brasil. Em meu modo de ver, gestamos uma democracia limitada nela mesma, sem condições constitucionais para rupturas de fundo com um capitalismo patrimonialista, destruidor e excludente, machista e racista, gerador de muita desigualdade.

Seria necessário analisar os momentos, diversos e muito contraditórios, que fizeram a história real e ligam a Constituinte de 1988 ao que acontece hoje. Tivemos o ajuste estrutural e seu impacto interno, antidemocrático em sua essência, passando por Sarney e seus planos econômicos, o aventureiro Collor, o interino Itamar, o Plano Real e a doma da inflação com FHC – aquele que pediu que se esquecesse seu passado de pensador da teoria da dependência –, que apostou no neoliberalismo e, a bem da verdade, na submissão à nascente globalização. Tivemos os treze anos de Lula-Dilma, com suas políticas distributivas e avanços em direitos sociais, mas sem enfrentar e transformar os tais fundamentos da economia. Foram anos importantes em termos de distribuição de renda – sem tocar na riqueza e acumulação – e inserção no consumo de amplas camadas excluídas e pobres, sem mudanças estruturais para dar sustentabilidade e mais democracia. Estimulou-se a participação democrática, sem transformar a cidadania ativa em força de mudança da própria política como desenhada pela Constituição de 1988. Com um “reformismo fraco” (André Singer), avançamos sem mudar o essencial. O resultado está aí: numa penada as conquistas estão indo para o ralo.

Estou somente esboçando os pontos e sei que tal análise é insuficiente, mas precisamos fazê-la para que nas trincheiras de resistência de hoje possamos reinventar a democracia em novas bases. O fato é que ninguém, nos vários momentos políticos que vivemos, enfrentou a contradição original do pacto democrático conciliador e propício a ser corrompido. Os governos petistas renunciaram a ser isso, mesmo que a cidadania esperasse tal vontade política de Lula, em particular na questão da disputa de hegemonia. Os outros nem mesmo se propuseram a enfrentar o dilema de base da Constituição. Agora, porém, com o golpe da cleptocracia e a tal “agenda de reformas”, o impasse está sendo de algum modo resolvido, mudando a Constituição para bem pior. Ou seja, estamos num momento em que está sendo mandado às favas aquele pacto democrático capenga que, bem ou mal, nos dava alegrias cidadãs.

No entanto, as possibilidades sempre continuam abertas

É assim que vejo os limites da democracia entre nós. Mas a história não acabou. Analiticamente, parece difícil sairmos da atual encrenca e voltar a sonhar com democracia. No entanto, o pessimismo da racionalidade não deve subjugar o otimismo da vontade, como nos ensinou Gramsci. Devemos apostar no que nossa cidadania sonha e deseja, uma sociedade democrática, justa, vibrante, boa para todo mundo, dançante de alegria, como é próprio de nossa cultura comum. A possibilidade não virá por si só, pois ela nunca é uma espécie de inevitável histórico. Ela se forja no devir, ela se faz na história, na resistência e na ousadia da ação, enfrentando as relações contraditórias para nós e, não esqueçamos, para os que combatemos. Acreditar na experiência e na força que adquirimos no processo de democratização, em nossas ideias e, sobretudo, em nossa capacidade. O que mais ganhamos em trinta anos de Constituição foi aperfeiçoar nosso ativismo cidadão. Claro, no momento estamos perdendo com o descrédito na política, que se alastra perigosamente. Afinal, somos uma potencial maioria. Temos de extrair o bom senso do senso comum que está aí a nos emparedar, como nos ensinou Gramsci. Outro Brasil e outro mundo sempre são possíveis. Saídas existem, precisamos achá-las e construir o caminho.



*Cândido Grzybowski é sociólogo e assessor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Impunidade de Temer e Aécio é a cara do Brasil pós-golpe, por Henrique Fontana




GGN.- No estado de exceção do Brasil pós-golpe de 2016, naturaliza-se a injustiça, e normaliza-se a incoerência das decisões judiciais e políticas. Os casos recentes de Temer e Aécio são a síntese e a vergonha suprema para um país que acompanha a cada dia a dissolução dos princípios do Estado democrático de direito. 
No entendimento dos supremos juízes, um senador gravado cometendo crime pode ser preso, outro, em situação análoga, apenas suspenso com recolhimento noturno. Remetido ao Senado Federal a decisão, o primeiro perde o mandato, o segundo, tem a denúncia arquivada. Os dois claramente cometeram crime, diga-se, mas os destinos foram diferentes.
Alguma novidade? Para os promotores do golpe não Afinal, um presidente da República flagrado e gravado cometendo e incentivando crimes permanece no poder com apoio de seus aliados na Câmara, e uma presidenta legítima e sem crime perdeu o mandato de 54 milhões de votos após um impeachment fraudulento, cometido pelos mesmos deputados que agora, por duas vezes, impediramque Temer fosse afastado e investigado.
E o que essa direita conservadora apresenta de futuro para o país? Manter por mais de um ano um presidente acusado de corrupto a serviço do mercado financeiro e da elite econômica, que vende o patrimônio nacional, patrocina a retirada de diretos trabalhistas eprevidenciários, reduz drasticamente os programas sociais(corte de 1,2 milhão de famílias do Bolsa Família e 71% do orçamento do Minha Casa Minha Vida) e congelaorçamento da educação, saúde, assistência, ciência por vinte anos. Para o futuro, apresenta dois candidatos à presidência, um que propõe distribuir ração aos pobres, e outro, armas para todos. A indignidade desumana destaelite se alia a violência protofascista. Patos e panelas calam, um silêncio ensurdecedor.
No novo sistema judiciário brasileiro, a lei não é para todos, e o que vale para um pode não valer para outro. Os órgãos investigadores selecionam e determinam o curso e a velocidade da investigação, conforme a origem ideológica ou partidária do investigado. O juiz também investiga, se manifesta publicamente, vaza conteúdo das investigações, prende de acordo com suas simpatias políticas, e ao fim, julga. O presidente do Tribunal Federal, responsável pela análise de recursos das investigações, anuncia posicionamentos de mérito antes do órgão colegiado. A estrutura que gera a corrupção segue praticamente intocável, protegida pela evidente seletividade política de uma operação na qual se depositava uma sincera esperança de mudança no sistema de injustiças históricas do país.
Pessimismo? Ficção? Lamentavelmente não, apenas alguns poucos exemplos do caos político-institucional pelo qual passa o país. O restabelecimento do mandato de senador de Aécio Neves e a manutenção de Temer na presidência são a cara do Brasil pós-golpe.
Nesta trama, o país segue sangrando com um presidente ilegítimo, um Congresso sob suspeita, um STF desacreditado, uma justiça seletiva e uma sociedade que acompanha atônita o crescimento assustador da intolerância política, do fundamentalismo religioso, da violência fascista contra a cultura, do preconceito, do racismo, do machismo.
A quebra do pacto democrático, com a encenação de um processo de impeachment, jogou o país na mais profunda crise institucional, desorganizou os sistemas de proteção social, gerou insegurança jurídica e medidas de exceção, comprometeu a reforma política, paralisou os investimentos e estagnou a economia brasileira. 
Este, infelizmente, é o Brasil real que queremos mudar
Foto O Globo

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Eleonora Menicucci vence Alexandre Frota em segunda instância



Ex-ministra foi saudada por militantes ao chegar no Fórum, em São Paulo. Frota tentou agredir manifestantes e foi contido pela polícia. Veja o vídeo
Da Redação da Revista Fórum*
A ex-ministra de Políticas para Mulheres do Governo Federal, Eleonora Menicucci, venceu em segunda instância processo que sofria do ex-ator Alexandre Frota. Eleonora acusou Frota de fazer apologia ao crime de estupro em rede nacional.
Uma mobilização de desagravo à Eleonora aconteceu no centro de São Paulo, local onde o caso da ministra, condenada a pagar indenização de R$ 10 mil reais, foi reavaliado.
Na ocasião, Frota tentou agredir manifestantes, em sua maioria mulheres, e foi contido pela polícia. Veja o vídeo abaixo:
Assista no vídeo abaixo, aos 15 minutos, a comemoração das mulheres quando é anunciada a vitória de Eleonora Menicucci.
Eleonora Menicucci foi condenada, em maio, a indenizar em R$ 10 mil o ator pornô Alexandre Frota.  Na ocasião, ela observou que não considera seu caso como algo individual. Segundo ela, a nova decisão da Justiça irá influenciar na luta das mulheres brasileiras contra o estupro e o assédio sexual.
“Eu aqui não defendo mais a mim, defendo todas as mulheres brasileiras porque o estupro é um crime hediondo”, afirmou Eleonora Meniccuci. “Se recorri, é porque acredito que os juízes farão justiça. Se mantiverem minha condenação, eles estarão legitimando os crimes de estupro no Brasil”, avalia.
A condenação da ministra ocorreu após ela tê-lo criticado durante um programa de TV. A crítica a Frota foi devido à reunião entre o ator pornô e o ministro da educação Mendonça Filho, logo após ao impeachment de Dilma Rousseff. Ele foi à Brasília dar “conselhos” ao ministro e Eleonora denunciou sua conduta, lembrando o fato de Frota ter declarado que fez sexo com uma mãe de santo desacordada. “Frota não só assumiu ter estuprado uma mulher, mas também faz apologia ao estupro”, disse a ex-ministra à época.

*Com vídeos do Brasil de Fato

Frei Betto-Leonardo Boff em defesa de Eleonora Menicucci


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JUSTIÇA ÀS AVESSAS é o cotundente artigo de Frei Betto ao qual me associo. Eleonora que foi do Ministério das Mulheres no período da Presidenta Dilma, mulher que sempre se revelou como grande defensora dos direitos humanos, especialmente, da dignidade da mulher contra a violência feitas a elas. Agora vem sendo condenada porque criticou alguém que num programa da TV em 2015 confessou um estupro a uma mãe de santo até faze-la desmaiar. Coisa inominável. Processada, foi, por surpresa e indignação geral, foi condenada a pagar RS 10.000,00

Associo-me às palavras de Frei Betto, me indigno e repudio esta condenação. Espero que na segunda instância, lhe seja feita a devida justiça.

Em defesa de Eleonora com todo o meu apoio e admiração por seu trabalho comprometido e digno. Leonardo Boff


Justiça às Avessas

O ator de filmes pornô Alexandre Frota declarou em programa de TV, em 2015, que estuprou uma mãe de santo até ela desmaiar. Como era de se esperar, Eleonora Menicucci, então à frente do Ministério das Mulheres, repudiou a apologia ao crime.

Em maio de 2016, o ministro da Educação do governo Temer, Mendonça Filho, recebeu em audiência Alexandre Frota, para ouvir propostas para a educação básica e defender o projeto “Escola sem partidos” (exceto os conservadores).

Em nota na Folha de S. Paulo, Eleonora Menicucci declarou: “Lamento, como ex-ministra e cidadã, que o ministro golpista Mendonça Filho tenha recebido, como primeira pessoa da sociedade civil, um homem que foi à TV e fez apologia do estupro. Fico muito preocupada com a educação de nossa juventude, e lamento muito.”

Alexandre Frota decidiu, então, processar a ex-ministra por danos morais. Pediu R$ 35 mil de indenização. Em setembro de 2016, na audiência de conciliação, ele sugeriu que ela pedisse desculpas, o que não foi aceito.

Em maio deste ano, a juíza de primeira instância Juliana Nobre Correia emitiu sentença condenando Eleonora Menicucci a pagar R$ 10 mil a Frota, alegando que ela ultrapassara o limite da crítica.

Em agosto, teve início o julgamento do recurso em segundo instância, e a relatora, Fernanda Melo de Campos Gurgel, proferiu voto a favor da juíza que condenara a ex-ministra.

Que país é este em que mulheres defendem quem faz apologia do estupro e condenam quem ergue a voz em prol da dignidade das vítimas; juízes repassam ao Congresso Nacional, repleto de corruptos, o direito de julgar seus pares; um rapaz é preso acusado de traficante por ser pobre e estar bem vestido e, em seguida, sua mãe é assassinada por policiais do Bope-Rio por defender o filho? Que país é este no qual dois amigos do presidente são flagrados com malas de dinheiro; Temer recebe na calada da noite o dono da JBS que confessou ter corrompido quase dois mil políticos; e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes?

Talvez os olhos vendados do símbolo da Justiça não representem isenção nos julgamentos, e sim vergonha por tantas inversões judiciais. Bem recomenda Chico Buarque: “Chame o ladrão… chame o ladrão…”

Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.

A ideologia é como a sombra: sempre nos acompanha. Artigo de Leonardo Boff


"Cada ideologia pessoal ou social, bem como todo saber, tem por detrás interesses, nem sempre explicitados. O interesse do operário é aumentar o seu salário. O do padrão, o de aumentar o seu lucro. O interesse de um morador da favela é sair daquela situação e ter sua casa decente. O interesse do morador de um apartamento de classe media é poder manter esse status social, sem ser ameaçado pela ascensão de gente do andar de baixo. Os interesses não convergem porque se aumenta o salário, diminui o lucro e vive-versa. Aqui se instaura um conflito."


Resultado de imagem para capitalismo predatório

O tema da ideologia está em pauta: ideologia de gênero, política, econômica, religiosa etc.Tentemos tirar a limpo esta questão.

1.Todos têm uma determinada ideologia. Quer dizer, cada um se faz uma ideia (daí ideologia) da vida e do mundo. Tanto o pipoqueiro da esquina, quanto a atendende do telefone ou o professor universitário. Esta é inevitável, porque somos seres pensantes com ideias. Querer uma escola sem ideologia é não entender nada de ideologia.

2.Cada grupo social ou classe projeta uma ideologia, uma visão geral das coisas. A razão é que a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Se alguém tens os pés na favela, tem uma certa ideia de mundo e de sociedade. Se alguém tem os pés num apartamenteo de luxo junto à praia, tem outra ideia do mundo e da sociedade. Conclusão: não só o indivíduo, mas também cada grupo social ou classe, inevitavelmente elaboram sua visão da vida e do mundo a partir de seu lugar social.

3.Cada ideologia pessoal ou social, bem como todo saber, tem por detrás interesses, nem sempre explicitados. O interesse do operário é aumentar o seu salário. O do padrão, o de aumentar o seu lucro. O interesse de um morador da favela é sair daquela situação e ter sua casa decente. O interesse do morador de um apartamento de classe media é poder manter esse status social, sem ser ameaçado pela ascensão de gente do andar de baixo. Os interesses não convergem porque se aumenta o salário, diminui o lucro e vive-versa. Aqui se instaura um conflito.

4. O interesse escondido atrás do discurso ideológico deve ser qualificado: ele pode ser legítimo e importa explicitá-lo. Por exemplo: tenho interesse que esse grupo de famílias crie uma pequena cooperativa de produtos orgânicos, de hortaliças, tomates, milho etc. Esse interesse é legítimo e pode ser dito publicamente. O interesse pode ser ilegítimo e é mantido oculto para não prejudicar quem o propõe. Exemplo: há grupos que combatem o nu artístico para, na verdade, encobrirem a homofobia, a supremacia da raça branca e a perseguição aos grupos LGBT. Ou um politico de um partido neoliberal cujo projeto é diminuir salarios, reduzir as aposentadorias e privatizar bens públicos apresenta-se como alguém que vai lutar pelos direitos dos trabalhadores, dos aposentados e defender a riqueza do Brasil. Ele ideologicamente oculta os reais interesses partidários para não perder votos. Essa ocultação é a ideologia como falsidade e ele, um hipócrita.

5.A ideologia é o discurso do poder especialmente do poder dominante. O poder é dominante porque ele domina várias áreas sociais. As elites brasileira têm tanto poder a ponto de comprarem as demais elites. Pelo fato de serem dominantes, impõem sua ideia sobre a crise brasileira, culpando o Estado como ineficiente e perdulário, os líderes como corruptos e a política como o mundo do sujo. Por outro lado, exaltam as virtudes do mercado, as vantagens das privatizações e a necessidade de reduzir as reservas florestais da Amazônia para permitir o avanço do agro-negócio. Aqui se oculta conscientemente a corrupção do mercado onde atuam as grandes empresas que subtraem milhões dos impostos devidos, mantém caixa dois, promovem juros altos que favorecem o sistema especulativo financeiro que drena dinheiro público, tirado do povo, para os bolsos de minorias, que, no caso brasileiro, são seis bilionários, possuindo igual riqueza que 100 milhões de brasileiros pobres. Essas elites ocultam as agressões ecológicas, a desnacionalização da indústria e fazem propaganda do Agro porque é pop. Praticam deslavada ideologia como enganação. Há redes de televisão que são máquinas produtoras de ideologia de ocultação, negando ao povo, dados sobre a gravidade da situação atual, gerando espectadores alienados, pois creem em tais versões irreais. Para encobrir sua dominação, apoiam projetos que beneficiam crianças ou secundam grandes eventos artísticos para parecerem benfeitores públicos. Por detrás ocultam falctruas e apoiam abertamente determinados candidatos, satanizando a imagem do principal opositor.

6.Há também a ideologia dos sem-poder, dos sem terra e sem teto e outros que para se sustentaram, elaboram discursos de resistência e de esperança. Mas essa ideologia é benéfica pois os ajuda a viver e a lutar.

A ideologia é como uma sombra: sempre nos acompanha. Para superar as ilegítimas, faz-mister desmascará-la e trazer à luz os interesses escusos. E quando falamos a partir de um determinado lugar social, convém expliciatar no discuro nossa ideologia. Conscientizada, a ideologia se legitima e democraticamente pode ser discutida ou aceita.

Leonardo Boff é articulista do JB online, terminou um livro sobre: Concluir a refundação ou prolonger a dependência do Brasil? Reflexões sobre a crise brasileira, a sair.

Educação em tempos de cólera, por Reginaldo Moraes


   "Mas o engraçado (ou trágico) é o comentário que ouvi ou li de algumas pessoas supostamente educadas – ou pelo menos muito escolarizadas. Uma delas, pasmem, me disse que “ir à escola devia ser obrigação, ninguém deveria receber para isso”. Dali a pouco, como se fora em outro ambiente planetário, vi a mesma pessoa “negociando” a mesada de um de seus filhos. Não sei bem porque ele recebe o dinheiro, já que o pai paga todas as suas despesas, inclusive, claro, a escola. Ah, sim, quando “passou de ano”, o rebento ganhou uma viagem de presente. Um bom exemplo de alquimia moral. “Ninguém deveria receber para isso”. Salvo se... "




Jornal da Unicamp, 10/08/2017 e GGN, 24/10/2017
Em outubro deste ano de 2017, a Faculdade de Educação da Unicamp vai promover um seminário de grande importância: “Escola Pública – Tempos Difíceis, mas não Impossíveis”. Fiquemos de olho na programação.
Um dos participantes, David Berliner, conheço faz algum tempo, pela leitura de livros imperdíveis como: Myths and Lies That Threaten America's Public Schools: The Real Crisis in Education (Teachers College Press, 2014) e The Manufactured Crisis: Myths, Fraud, And The Attack On America's Public Schools (Basic Books, 1996).
Mas recomendo também um seu estudo, de acesso imediato, na web: Our Impoverished View of Educational Reform (Teachers College Record, agosto de 2006).
A referência me veio a calhar pela leitura, agora, de matérias que têm saído na nossa imprensa, a respeito de algo banal e rotineiro, mas nem sempre devidamente notado e calibrado.
Talvez pouca gente saiba, mas a cada dois meses, o MEC faz uma avaliação da frequência escolar dos estudantes beneficiários do Bolsa Família, uma preocupação que certamente não deixa dormir muita gente que não precisa de bolsa alguma. Já faz algum tempo que essas crianças e jovens pobres vêm tendo resultados muito positivos, para surpresa (e talvez descrença ou desespero) de razoável contingente de não-pobres.
No levantamento mais recente (junho de 2017), 87,16% dos estudantes beneficiários do programa compareceram às aulas regularmente. O número deve ser comparado com a média nacional, que é de 85%.
Parece uma boa notícia? Não, não parece. Ela é uma boa notícia. Mas o engraçado (ou trágico) é o comentário que ouvi ou li de algumas pessoas supostamente educadas – ou pelo menos muito escolarizadas. Uma delas, pasmem, me disse que “ir à escola devia ser obrigação, ninguém deveria receber para isso”. Dali a pouco, como se fora em outro ambiente planetário, vi a mesma pessoa “negociando” a mesada de um de seus filhos. Não sei bem porque ele recebe o dinheiro, já que o pai paga todas as suas despesas, inclusive, claro, a escola. Ah, sim, quando “passou de ano”, o rebento ganhou uma viagem de presente. Um bom exemplo de alquimia moral. “Ninguém deveria receber para isso”. Salvo se... O rosado guri, este, sim, precisa receber para estudar. Ah, sim, o papai tem deduções no imposto de renda em nome do filho: primeiro, pela própria existência do garoto, segundo, por conta das despesas de educação, terceiro, pelo plano de saúde. Em renúncia fiscal, ele está recebendo bem mais do que um bolsa-família. Mas é claro que isso “não conta”. Faz parte, como diz a gurizada. Faz parte da paisagem social em que vivemos e que tomamos como “natural”. A alquimia moral transforma tudo isso em “direito”.
Outra sumidade disse que “eles vão à escola, mas ficam matando aula, saindo e entrando da sala, ouvindo música com fones de ouvido”. Esse notável estudioso deve ter feito uma cuidadosa observação participante. Aparentemente, pelo comentário se deduz que as crianças do Bolsa-Família também tiveram acesso a algum tipo de bolsa-Ipod e MP3, para utilizar equipamentos como aqueles que o comentarista coloca à disposição de seus filhinhos estudiosos e comportados.
Na verdade, a coisa elementar que estamos constatando é que o Bolsa-Família simplesmente está tornando possível o acesso à escola. Simples, banal.
Ainda teremos que estudar muito para melhorar o acesso a uma educação de qualidade, mas convido os interessados à leitura do artigo de David Berliner. A situação do pobre – desde o ventre da mãe até os primeiros anos de vida – traz prejuízo suficiente para danificar suas condições de sucesso escolar. O estrago é pesado, quase estrutural. Dá para consertar depois, mas demora muito e custa caro. Em suma: ou temos uma política de suporte a essas crianças nesse período ou ficamos com um déficit pesado para administrar. Com consequências de todo tipo. Alguns analistas, como o Nobel James Heckman, fizeram o cálculo, estritamente pragmático: esse desleixo vai custar caro em produtividade perdida, em gastos com saúde e... encarceramento.  
Berliner faz um sumário breve de estudos médicos que apontam o quanto esse ambiente prejudica as estruturas de percepção e de formação de sentimentos das crianças. Contudo, o mais chocante é a lista de males banais que afetam o que se chama de sucesso escolar. Coisas simples, como nutrição baixa ou inadequada, miopia, otite, bronquite, asma...
Lembro-me da ocasião em que me alistei no serviço militar, apresentando-me para o exame médico. Eu era míope e quase fui liberado por essa razão. Mas era miopia leve. Alguns de meus colegas de “tropa” descobriram apenas ali, com 17 anos, que tinham uma enorme miopia, eram “ceguetas” como costumávamos dizer. Pois bem, um grande número de crianças pobres passa por “inensinável” ou “distraída” devido a males como esses, evitáveis ou remediáveis: miopia ou desnutrição. Quando deixam de ver algo essencial na sala de aula, desistem, desligam. Depois de uns dez minutos de atenção, se a “pilha está baixa”, isto é, se estão mal nutridos, também desligam. Acho que quase toda criança tem alguma otite, sarampo, catapora, caxumba. A classe média cura tais coisas facilmente. Mas para os pobres isso pode se arrastar e virar um dano permanente, com sérios impactos na aprendizagem, na capacidade de “prestar atenção”.  Em outro estudo, Berliner lembra que na cidade de Nova Iorque – umbigo do império – muitas crianças de distritos pobres perdem dias e dias de aula por conta de doenças de respiração – asma, bronquite, por exemplo. Causa próxima ou adjunta: calefação precária, dificuldade de pagar pela energia que aquece residências e escolas dos distritos pobres.
Por razões como essas, aqui, neste pedaço do sul do mundo, o Bolsa-Família é uma espécie de bálsamo, pequeno para o orçamento público, mas de enorme impacto para as crianças que dele se beneficiam. Para compreender esse feliz paradoxo, talvez seja sábio abandonarmos a nossa visão da pobreza, uma visão ela própria muito pobre... Mas, os comentários sobre a avaliação do MEC mostram que cidadãos bem alimentados nem sempre fazem bom uso de suas sinapses. Mais uma vez, uma das melhores frases que ouvi a esse respeito: Donos de cachorros de raça muitas vezes acabam ficando com cérebros semelhantes aos de seus cachorros.