sábado, 27 de dezembro de 2014

Leonardo Boff sobre o mundo na atual e difícil fase de transição e crise

Fim de uma era, uma nova civilização ou o fim do mundo?

27/12/2014

Leonardo boff


Há vozes de personalidades de grande respeito que advertem que estamos já dentro de uma Terceira Guerra Mundial. A mais autorizada é a do Papa Francisco. No dia 13 de setembro deste ano, ao visitar um cemitério de soldados italianos mortos em Radipuglia perto da Eslovênia disse: ”a Terceira Guerra Mundial pode ter começado, lutada aos poucos com crimes, massacres e destruições”. O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt em 19/12/2014 com 93 anos adverte acerca de uma possível Terceira Guerra Mundial, por causa da Ucrânia. Culpa a arrogância e os militares burocratas da União Européia, submetidos às políticas belicosas dos USA.
George W. Bush chamou a guerra ao terror, depois dos atentados contra as Torres Gêmea, de “World War III”. Eliot Cohen, conhecido diretor de Estudos Estragégicos da Johns Hopkins University, confirma Bush bem como Michael Leeden, historiador, filósofo neoconservador e antigo consultor do Conselho de Segurança dos USA que prefere falar na Quarta Guerra Mundial, entendendo a Guerra-Fria com suas guerras regionais como já a Terceira Guerra Mundial. Recentemente (22/12/2014) conhecido sociólogo e analista da situação do mundo Boaventura de Souza Santos escreveu um documentado artigo sobre a Terceira Guerra Mundial (Boletim Carta Maior de 22/12/2014). E outras vozes autorizadas se fazem ouvir aqui e acolá.
A mim me convence mais a análise, diria profética, pois está se realizando como previu, de Jacques Attali em seu conhecido livro “Uma breve história do futuro” (Novo Século, SP 2008). Foi assessor de François Mitterand e atualmente preside a Comissão dos “freios ao crescimento”. Trabalha com uma equipe multidisciplinar de grande qualidade. Ele prevê três cenários:
(1) o superimpério composto pelos USA e seus aliados. Sua força reside em poder destruir toda a humanidade. Mas está em decadência devido à crise sistêmica da ordem capitalista. Rege-se pela ideologia do Pentágo do”full spectrum dominance”(dominação do espectro total) em todo os campos, militar, ideológico, político, econômico e cultural. Considera-se a nação indispensável, a única que tem interesses globais e se dá o direito de intervir, em qualquer parte do mundo, caso sejam postos em risco. Mas foi ultrapassado economicamente pela China e tem dificuldades de submeter todos à lógica imperial.
(2) O superconflito: com a decadência lenta do império, dá-se uma balcanização do mundo, como se constata atualmente com conflitos regionais no norte da Africa, no Oriente Médio, na Africa e na Ucrânia. Esses conflitos podem conhecer um crescendo com a utilização de armas de destruição em massa (vide Síria, Iraque), depois de pequenas armas nucleares (existem hoje milhares no formato de uma mala de executivo) que destroem pouco mas deixam regiões inteiras por muitos anos inabitáveis devido à alta radioatividade. Pode-se chegar a um ponto com a utilização generalizada de armas nucleares, químicas e biológica em que a humanidade se dá conta de que pode se auto-destruir.
E então surge (3) o cenário final: a superdemocracia. Para não se destruir a si mesma e grande parte da biosfera, a humanidade elabora um contrato social mundial, com instâncias plurais de governabilidade planetária. Com os bens e serviços naturais escassos devemos garantir a sobrevivência da espécie humana e de toda a comunidade de vida que também é criada e mantida pela Terra-Gaia.
Se essa fase não surgir, poderá ocorrer o fim da espécie humana e grande parte da biosfera. Por culpa de nosso paradigma civilizatório racionalista. Expressou-o bem o economista e humanista Luiz Gonzaga Belluzzo, recentemente:
“O sonho ocidental de construir o hábitat humano somente à base da razão, repudiando a tradição e rejeitando toda a transcendência, chegou a um impasse. A razão ocidental não consegue realizar concomitantemente os valores dos direitos humanos universais, as ambições do progresso da técnica e as promessas do bem-estar para todos e para cada um”(Carta Capital 21/12/2014). Em sua irracionalidade, este tipo de razão, construi os meios de dar-se um fim a si mesma.
O processo de evolução deverá possivelmente esperar alguns milhares ou milhões de anos até que surja um ser suficientemente complexo, capaz de suportar o espírito que, primeiro, está no universo e somente depois em nós.
Mas pode também irromper uma nova era que conjuga a razão sensível (do amor e do cuidado) com a razão instrumental-analítica (a tecnociência). Emergirá, enfim, o que Teilhard de Chardin chamava ainda em 1933 na China a noosfera: as mentes e os corações unidos na solidariedade, no amor e no cuidado com a Casa Comum, a Terra.
Escreveu Attali:”quero acreditar, enfim, que o horror do futuro predito acima, contribuirá para torná-lo impossível; então se desenhará a promessa de uma Terra hospitaleira para todos os viajantes da vida (op.cit. p. 219).
E no final nos deixa a nós brasileiros esse desafio:”Se há um país que se assemelha ao que poderia tornar-se o mundo, no bem e no mal, esse país é o Brasil”(p. 231).

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Os Evangelhos e outros documentos gnósticos de Nag Hammadi



  Em 1945 uma série de papiros antigos foram descobertos em Nag Hammadi, Egito. Entre eles, o fantástico Evangelho de Tomé. O seguinte documentário (em espanhol) versa sobre a importância desta descoberta, implicações e possibilidades....


Reflexões sobre o Jesus Histórico



Anotações, Comentários e Resumos baseado em capítulos do livro de Gerd Theissen e Annette Merz, professores da Universidade de Heidelberg


“O Jesus Histórico”





Carlos Antonio Fragoso Guimarães



Parte I – Prefácio e Histórico das Pesquisas

I – Prefácio

               Os autores Gerd Theissen e Anette Merz iniciam a apresentação do seu livro destacando o fato de que se faz necessário ter em mente a distinção entre o Jesus possível de ser reconhecido pela História e o Cristo da fé, “revelado” nos textos cristãos – formulados, como se sabe, com uma preocupação mais teológico-doutrinária e com interesses de fé e interpretação de suas comunidades de origem que com a descrição de memórias e fatos biográficos precisos ocorridos décadas antes da formulação dos primeiros escritos que dariam origem aos evangelhos conhecidos, os atos dos apóstolos e - certamente os mais antigos dos textos - as cartas paulinas.

          Logo de início, os autores destacam o problema de harmonização entre as informações passíveis de serem extraídas das fontes (sejam textuais e/ou arqueológicas) acerca de Jesus e de sua época com a imagem tradicional do Cristo repassado pelas igrejas – imagem, aliás, que diverge a depender de que vertente se constituiu a visão teológica de cada igreja, seja a católica (romana, ortodoxa), protestante histórica (luterana, calvinista, episcopal, etc.) ou evangélica (em especial, as de cunho midiático fundamentalista atuais), sem falar dos que pretendem se debruçar sobre Jesus sem vincular-se a qualquer vertente religiosa tradicional – incluindo-se pesquisadores com vários de outras religiões, mesmo não cristãs, etc.

Por vezes, as tentativas de estudo do Jesus histórico nem sempre pareceu bem recebida por parte dos guardiães da teologia tradicional ou era recebida com reservas:

                “Em época recente, o estudo do Jesus histórico muitas vezes se vinculou com a mensagem de que não era teologicamente importante dedicar-lhe um exame detalhado. Decisivo era o Cristo anunciado e bastava assegurar-se de que ele não estava em contradição com o que sabemos sobre o Jesus histórico – o que era bem pouco” (p. 13).

                Os autores reconhecem que a tensão entre o estudo sério, científico, e a imagem tradicional de Jesus a qual a maioria das pessoas se habituaram deixam uma parcela importante da população em um estado de perplexidade, especialmente quando se põe em perspectiva certas construções dos textos evangélicos que são patentemente elaborações poéticas ou teológicas que possuem pouco ou nenhum respaldo histórico (por exemplo, as narrações conflitantes em Mateus e Lucas sobre o nascimento de Jesus e os diferentes e por vezes contraditórios relatos sobre as suas aparições post-mortem, que, ainda assim e pelas consequências que tiveram nos primeiros cristãos, parecem repercutir um evento histórico real, ocorrido diversas vezes).

Frequentemente, a busca por informações sobre o Jesus histórico por parte do público acaba levando a uma eclosão de trabalhos fora da pesquisa séria que, aproveitando-se da popularidade e mercado que floresce em torno do interesse variado sobre Jesus, levam a novas elaborações de imagens sobre sua figura, que refletem muito mais os anseios e modelos dos autores e seu contexto social que a uma visão coerente do homem que vivem e atuou há dois mil anos atrás:

                “Hoje muitas pessoas ficam perdidas quando tentam esclarecer com argumentos o que sabemos sobre o Jesus histórico, o que apenas conjeturamos e o que não podemos saber. Trabalhos (literários) que pretendem expor o verdadeiro Jesus por trás dos supostos falseamentos da Igreja preenchem essa lacuna do mercado de conhecimento, em forma de livros edificantes que, a partir dos anseios religiosos e valores éticos de nosso tempo, acabam por criar um novo Jesus. De ambos os lados, o trabalho paciente da pesquisa está sendo desconsiderado. Mas numa sociedade esclarecida e numa Igreja aberta, que deseja prestar contas de seus próprios fundamentos, este trabalho se impõe” (p. 13).

                A seguir os autores esclarecem o objetivo de seu trabalho: “apresentar a pesquisa científica sobre o Jesus histórico – não somente seus resultados, mas também o processo de aquisição desse conhecimento”, alertando ainda uma vez que “o processo científico exige uma postura de paciência dos leitores ávidos de esclarecimento imediato” (p. 13).

                Apontam, então, pontos importantes sobre a epistemologia e entendimento do processo científico em geral e que se aplicam, de maneira particular, à pesquisa sobre o Jesus histórico:

                I – A ciência não diz “foi assim”, mas “poderia ter sido assim, com base nas fontes (canônicas, não-canônicas, históricas, arqueológicas, etc.). Em acréscimo a esta observação, e ajudando a manter o equilíbrio frente à reconstrução possível a partir da análise das fontes, os autores destacam que:

                “A ciência nunca diz “é assim”, mas “assim se nos apresentam as coisas no estado atual da pesquisa – e isto significa: “no estado atual de nossos acertos e erros (p. 13).

                II – A ciência não se acomoda em um quadro explicativo considerado definitivo sobre seu objeto de estudo e não diz “este é o nosso resultado” como produto de nosso tempo e de pessoas que apenas decidiram refletir sobre as fontes, mas sim que “este é o nosso resultado com base em determinados métodos”. Métodos diferente, que, esperamos, venham a surgir e sejam mais abrangentes e mais aperfeiçoados que os de hoje, certamente nos farão perceber novos detalhes e novas manifestações da realidade passada que os atuais, em sua maneira de orientar nossa percepção, ainda não permitem não porque estejam errados, mas porque a forma de orientar uma pesquisa, seu método, leva a trilhar certos caminhos de busca e interpretação ao invés de outros. Por isso, os autores esclarecem que:

                “O caminho que se percorre para alcançar um objetivo é tão importante para a ciência quanto o próprio objetivo – às vezes, até mais importante. Pois o caminho pode ser correto, ainda que a meta se apresente como parada intermediária que deve ser abandonada” (p. 14).

                III – A ciência sabe que seus resultados, como expressão da reconstrução contínua do passado através das fontes (e sempre surgem novas fontes, novos achados, novas ideias para o estudo), são mais transitórios que os problemas a que procura responder. Na verdade, as respostas sempre se renovam frente aos mesmos grandes problemas e se isso é válido nas ciências em geral (veja-se o caso da física entre o legado de Newton e o de Einstein), o é ainda mais para a pesquisa sobre o Jesus histórico. As mesmas grandes perguntas sobre o homem de Nazaré terão respostas sempre mais aprofundadas e mais abrangentes com o decorrer do tempo e o aperfeiçoamento da pesquisa e das mentalidades que se debruçarem sobre elas.

Por tudo isso, dizem os autores:

                “A ciência é um empreendimento complicado porque não pode simplesmente “narrar” a realidade, mas refletir sobre fontes, estados da pesquisa e problemas” (p. 14).

                Os autores terminam sua introdução reconhecendo que eles mesmos, enquanto pesquisadores, não deixam de ter uma imagem de Jesus e esta é a que surge do estudo contextual deste personagem a partir do estudo e entendimento de sua cultura judaica e da história social e política de seu tempo. E isto leva à percepção igualmente de “pré-compreensões” e “interesses” que mantém a atualidade e importância de Jesus para os dias de hoje:

                “Estamos convencidos de que por meio do Jesus histórico se pode ter um acesso simpático ao judaísmo, de que uma reflexão sobre sua mensagem aguça a consciência social e de que o encontro com ele altera nossas questões sobre Deus” (p. 15).

§ 1

A História da Pesquisa Sobre a Vida de Jesus

                Introdução.

                Os autores reconhecem que, para haver uma pesquisa séria sobre o Jesus histórico, que tão profundamente acabou por marcar a humanidade apesar do pesado reboco de licença mítica e poética que se estabeleceu sobre ele, faz-se necessário uma boa dose de autonomia intelectual para se afastar da imagem que nos foi legada por séculos de tradição. Esta imagem teológica apresentava um ser que traria em si, ao mesmo tempo, as instâncias paradoxais do Deus encarnado, do rígido juiz escatológico e de amoroso salvador.

Por tudo isso, essa pesquisa sempre foi carregada de tensão e dramaticidade: era efetuado, especialmente no primeiro século da pesquisa científica séria, em meio a uma cultura modelada e imersa na imagem tradicional do Cristo sobre-humano com este tríplice aspecto, por pessoas que foram educadas neste ambiente e contexto e que, por isso mesmo, tinham de esforçar-se ainda mais que outros pesquisadores para manter a neutralidade axiológica necessária para perceber, nesta figura, menos o Cristo o Jesus, tornando-o objeto de uma crítica histórica coerente, que se enriqueceu e desenvolveu nos últimos duzentos e cinquenta anoso, passando por etapas que se tornaram bem definidas, sendo os primeiros esforços os mais difícieis.

                De início houve o estudo crítico das fontes clássicas (Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Epistolas). O resultado do uso da crítica literária em comparação com fontes históricas e religiões comuns ao Império Romano foi que ficou claro que não foram uns poucos ‘versos satânicos’ que se infiltraram nas fontes, distorcendo a visão do Jesus histórico, mas que muitos versos sobre Jesus demonstravam uma reconstrução de sua vida envolta “numa aura a-histórica de mito e poesia” (p. 20). Aliás, outros homens extraordinários da mesma época, como Apolônio de Tiana, Hanina Bem Dosa e mesmo filósofos e oradores de antes e de então (Sócrates, Amônio Saccas, Plotino) acabaram mais ou menos por ter um destino de encobrimento mítico similar, efetuado por parte de seguidores e admiradores.

                Logo junto à crítica das fontes viria unir-se o problema do relativismo histórico. O modo de entender o mundo e as pessoas constituintes de uma cultura que possuem características próprias, clima intelectual diferenciado e influenciadas por seu tempo e lugar se tornam estranhas aos estudiosos de uma cultura diferente, de um espaço diverso e de um tempo posterior, exigindo um esforço de hermenêutica e compreensão nem sempre passível de ser completo e bem sucedido, exatamente porque o olhar posterior possui suas próprias influências e orientações culturais diferenciadas, o que poderia levar ao erro de se considerar o personagem histórico como estando deslocado ou desligado de seu próprio contexto. Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração que, por mais singular que seja um indivíduo, seu legado e suas ideias precisariam se adaptar ao contexto cultural em que nasceu e cresceu, sob o risco de não ser sequer minimamente compreendido pelos seus contemporâneos.

                Por fim, em ligação com o relativismo histórico, outro problema perturbaria igualmente os estudiosos do primeiro século e meio de estudos: o da estranheza hermenêutica. Jesus viveu em uma época de dominação romana e corrupção dos costumes sagrados de seu povo pela associação dos sacerdotes do Templo com o dominador estrangeiro. A ansiedade por libertação, a revolta da dominação e a constatação da degradação moral dos líderes religiosos tradicionais dariam ensejo a divisões e formação  de facções políticas e religiosas que buscavam renovar a situação da nação, projetadas na mitificação de um esperado Messias. Ao redor disso, a inflamação religiosa do povo e a expectativa por uma intervenção divina no estado de coisas caóticas (e que se tornariam ainda piores posteriormente), acenderia o misticismo popular onde curandeiros e homens santos ou pregadores apareciam frequentemente, sempre acolhidos por parte da população e perseguidos por parte dos dominadores e dos sacerdotes e alto-funcionários do Templo.
Assim, por parte de alguns pesquisadores,

                “Mesmo se possuíssemos informações historicamente confiáveis e encontrássemos nelas uma pessoa inconfundível, esse Jesus – que muitos na infância sentiam tão próximo quanto um bom amigo – isolou-se em seu mundo passado, cheio de exorcismos e estranhos temores pelo fim do mundo” (p. 20).

                Tais observações foram debatidas e divulgadas por pesquisadores dos séculos XVIII, XIX e início do XX, alguns mesmo por teólogos renomados. Contudo, apesar de tal distanciamento e mesmo dessacralização promovida pela  crítica das fontes, pelo relativismo histórico e pela estranheza hermenêutica, Jesus continua a atrair as atenções, a despertar interesses, a servir de referencial e, por isso continua atual:

“(...) nossa cultura apega-se até hoje a essa figura. Mesmo onde já não se considera tal pessoa como ‘Senhor’, busca-se no Rabino de Nazaré o grande irmão, o grande aliado. Onde se defende uma forma socialista de sociedade, Jesus se torna o precursor do socialismo, ele que criticou os ricos e rejeitou Mamon. (...) Onde surge uma decisão existencial, Jesus se torna o pregador de um chamado à decisão que incita o indivíduo a abandonar o esquecimento da vida. Onde há interesse pelo humanismo que se emancipou da tutela eclesiástica, Jesus se torna desafiador das instituições religiosas (...)” (p. 20).

 Por isso, qualquer que seja o tempo, a história da pesquisa sobre Jesus – que hoje está mais diferenciada e mais desenvolvida – é uma expressão de um movimento de distanciamento e reaproximação contínuos com este ser singular. E nestas idas e vindas um quadro mais estável, mais realista e mais humano do mestre da Galileia se faz mas claro e mais instigante, emergindo aos poucos sob séculos de maquiagens teológicas e deturpações mais ou menos conscientes feitas sobre a mensagem original de Jesus de Nazaré.

1.       Cinco Fases da Pesquisa sobre a Vida de Jesus

1.1. – Primeira fase: os “impulsos” críticos para a questão do Jesus histórico

1.1   .1 - Hermann Samuel Reimarus (1694-1768)

Reimarus foi professor de línguas orientais em Hamburgo. Foi influenciado pelos intelectuais britânicos e dedicou-se a desenvolver as bases para o desenvolvimento de uma religião da razão, dando seguimento às propostas do deísmo inglês. Propôs pela primeira vez um método histórico-crítico para a pesquisa de Jesus, destacando dois pontos metodológicos ainda válidos:

1.- Reimarus propõe um estudo em que se possa distinguir a pregação original de Jesus daquilo que é dito pelos seguidores, ou seja, as palavras originárias distintivas de Jesus devem ser diferenciadas, quando possível, do que é dito pela fé dos discípulos/apóstolos/seguidores posteriores: “Considero uma grande causa separar totalmente o que os apóstolos apresentam em seus escritos daquilo que Jesus de fato disse e ensinou em vida” (citado por Theissen e Merz, “O Jesus Histórico”, p. 21).

2.- A partir desta distinção, Reimarus propõe a compreensão histórico-contextual do ministério de Jesus a partir do pano de fundo de sua época, situação política e contexto religioso e social. “A pregação de Jesus só pode ser compreendida a partir do contexto da religião judaica de seu tempo.”  (p. 21). 

Pessoalmente, aceito o que Reimarus destaca como sendo o núcleo da pregação pública de Jesus: a chegada iminente do Reino de Deus. O chamado constante do personagem galileu à chegada do Reino de Deus – de resto, uma ideia que os essênios e os expectantes messiânicos e proto-zelotas já divulgavam, embora interpretando-o de uma maneira mais materialista e nacionalista – mostra que Jesus usava do discurso em voga para passar, por meio deles, sua própria interpretação do que seria este Reino (boa parte das parábolas de Jesus demonstram isso). O consequente chamado à “conversão” que, talvez, quisesse dizer transformação íntima e/ou de percepção - já que as imagens bucólicas da maior parte das parábolas parecem apontar para um reino construído que trará bons frutos a partir da ação responsável e sem malícia dos novos súditos deste Reino. É até possível que Jesus não entendesse o reino (de Deus/dos Céus) como um evento que há de vir, mas como algo já existente, presente, mas não percebido pelo estado espiritual atual das pessoas. Se olharmos os ditos constantes do evangelho de Tomé, um dos documentos mais importantes encontrado em Nag Hammadi em 1945, esta interpretação ganha maior solidez. É provável, contudo, que o entendimento mais direto deste reino mais espiritualizado fosse transmitido por Jesus mais particularmente aos discípulos mais próximos mas que não tenha sido bem compreendido pelos seguidores e posteriores e pela maior parte das seguintes comunidades cristãs. Seja como for, a mudança no século IV do domínio de um movimento que era originalmente dos oprimidos e que passa para a esfera dos opressores, a partir de Constantino, teria de modificar e diluir drasticamente a profundidade revolucionária da mensagem original de Jesus.

 Discorrendo sobre este importante achado (o Evangelho de Tomé - existem várias traduções em português. Eu uso a edição de Marvin Meyer, editora Imago), Gerd Theissen e Annette Merz destacam a semelhança algo budista da compreensão de Jesus do que seria o Reino dos céus:

"Escatologia presente: o reino (Reino do Pai/Reino dos céus) é uma grandeza supra-histórica, origem e destino do homem que encontrou a si mesmo. Porque o autoconhecimento é o conhecimento do Eu divino próprio e de sua pertença ao âmbito da luz divina. Por isso, o Reino dos céus está dentro como fora do ser humano, e igualmente presente em todos os tempos (cf. Evangelho de Tomé 3.49.50.113)" (p. 60).

De qualquer modo, o modo de ensino e o comportamento de Jesus, bastante socialista em sua defesa dos oprimidos, dos pobres, dos excluídos e da denúncia da hipocrisia das elites políticas e religiosas, não deixariam de causar escândalo aos poderosos de sua época, como, de fato, não deixou e o levou à morte sob dois julgamentos raivosos: um religioso, dos membros do Sinédrio, e outro político, por parte do procurador romano Pilatos.

1.1.2 – David Friedrich Strauss (1808-1874)

D.F. Strauss foi um filósofo e teólogo, seguidor de Hegel e F. C. Baur, escreveu um livro que causou profundo impacto: a Vida de Jesus, em 2 volumes (1835-1836) que lhe valeu uma proscrição social mas que, ao mesmo tempo, permitiu levar-se em conta características dos evangelhos que antes eram pouco percebidos ou, melhor dizendo, pouco debatidas:

“Imagine uma jovem comunidade que adora (...) seu fundador, uma comunidade fecundada com novas ideias... uma comunidade formada, na maioria, de homens sem instrução, que não tinham condições de adquirir e expressar essas ideias na forma abstrata da razão e da conceituação, mas sim na forma concreta da fantasia, como imagens e história. Sob essas condições o resultado só podia ter sido este, uma sequencia de narrativas sagradas que trouxe à consciência uma série de ideias novas provocadas por Jesus, assim como ideias velhas foram também transferidas para ele, apresentadas como momentos individuais de sua vida. A mais simples estrutura histórica da vida de Jesus foi cercada com as mais variadas e significativas guirlandas de reflexões e fantasias piedosas, na medida em que todas as ideias que a primeira cristandade teve sobre seu roubado mestre foram transformadas em fatos inseridos (décadas depois) em sua vida” (Strauss, citado em Theissen e Merz, p. 32).

Resumindo, Strauss destaca que o que chegou até nossos dias na forma de narrativas e evangelhos sobre Jesus está imerso em um caldo onde memórias históricas estão misturadas com construções míticas, surgida nas tradições e cultos de comunidades cristãs.

Nas palavras de Theissen e Merz, “Strauss vê o mito, ‘a saga que é poética sem intenção’, operando em todas as partes dos evangelhos em que as leis da natureza são invalidadas, as tradições se contradizem ou os motivos difundidos na história das religiões, especialmente do Antigo Testamento, são transferidos a Jesus” (p. 22).

As comunidades cristãs iniciais, formada por gente de diferentes classes, mas muito mais por gente simples, em especial durante o período da revolta dos judeus (66 a 74 d.C.), entendiam que uma vida extraordinária de um ser incrivelmente carismático - como Jesus o foi - só poderia ser reflexo direto do divino e, portanto, em suas tradições esse aspecto mítico foi paulatinamente se impondo sobre o aspecto humano e sábio de Jesus, que se tornou o foco arquetípico (no sentido junguiano) do herói. Este estado mítico se destaca nos diferentes textos cristãos, canônicos e não canônicos, e de maneira especial no Evangelho de João, bastante diferente dos outros três evangelhos sinóticos clássicos do Novo Testamento. Strauss foi um dos primeiros a reconhecer que este evangelho joanino é estruturado muito mais em premissas teológicas e míticas que em dados históricos (embora estes ainda possam ser encontrados no texto).

1.2   Segunda fase: o otimismo da pesquisa chamada liberal sobre a vida de Jesus

Durante a segunda metade do século XIX, em especial nas décadas finais e inicio do século XX, a Alemanha viveu um florescimento de liberalismo teológico que trouxe grandes insights e orientações  ao estudo do Jesus histórico. “Esperava-se”, afirmam Theissen e Merz, “pela reconstrução histórico-crítica da personalidade legitimadora de Jesus e de sua história, renovar a fé cristã e com isso deixar para trás o dogma cristológico da Igreja” (p. 23). Para estes autores:

“1. A base metodológica da pesquisa liberal sobre Jesus é a exploração crítico-literária das fontes mais antigas sobre Jesus. F. Chr. Baur demonstrou a primazia dos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) sobre o Evangelho de João, e Heinrich Julius Holzmann ajudou a teoria das duas fontes (a base textual mais antiga e conhecida até então, ou seja Marcos e a coleção reconstituída de ditos de Jesus, denominada Q – de Quelle, fonte em alemão), desenvolvida por Christian Gottlob Wilke e Christian Hermann Weisse, a tornar-se um sucesso duradouro: Marcos e Q valiam agora como as mais antigas e confiáveis fontes para o Jesus histórico, ou seja, uma fonte que até então estivera fora dos interesses dos pesquisadores (Marcos), e uma que foi primeiramente reconstituída pelos cientistas (Q). Uma emancipação da tradicional imagem eclesiástica de Jesus pareceu possível sobre essa base.” (p. 23).

O paradigma desta fase de pesquisa, especialmente na Alemanha, consistia em que, a partir de uma análise crítica sobre o texto de Marcos, parecia ser possível traçar um esboço de desenvolvimento biográfico da vida de Jesus, ainda que preocupações teológicas posteriores tornassem turvas as linhas de desenvolvimento do seu pensamento. 

Heinrich Julius Holtzmann (1832-1910), o principal representante desta fase de pesquisa, reconstrói, a partir do material de Marcos, o que ele pensa ser as linhas gerais desta evolução: em Mc 8, na Galileia, há apontamentos para se pensar que Jesus desenvolve lá seu pensamento, ligado a uma consciência messiânica –  seja como for como o próprio Jesus pensasse, a mera possibilidade de que ele fosse o tão esperado Messias iria repercutir nos seus seguidores e em uma parte da população, que o veriam como o aguardado ungido “político”. Esta expectativa não seria nada saudável em uma sociedade dominada e rigidamente segmentada,  o que o faria confrontar-se, posteriormente, com o peso do Sinédrio e de Roma. Ainda assim, é questionável até que ponto o próprio Jesus se via como um Messias no sentido popular judaico do século I, ou seja, como sacerdote-general. John Dominic Crossan e outros pesquisadores recentes questionam a correspondência entre o auto pensamento de Jesus como mestre de sabedoria e, quem sabe, como um tipo de reformador social (e, assim, político, em um sentido menos beligerante), dentro do judaísmo, com os traços do messianismo político que estava fermentando entre os judeus e que explodiria em 66 d.C.

Marcos escreve décadas após os acontecimentos e em meio à revolta dos judeus e muito de seu olhar de narrador está interpretando atos passados, transmitidos em sua maior parte oralmente, com o olhar político do presente (por volta do ano 70 d.C.) e com as esperanças de uma comunidade que já não é tão contemporânea de Jesus nem formada em sua maioria por testemunhas diretas. Por isso, em seu relato, se a Galileia foi local onde se sugere pelo evangelista que Jesus desenvolve sua consciência messiânica – e o todo o evangelho de Marcos é construído como um processo da revelação de Jesus como O Cristo, ou seja, O Messias -, será em Cesaréia de Felipe que o autor porá Jesus a se revelar como Messias aos discípulos.

“As ‘vidas de Jesus’ liberais resultam da junção da ideia apriorística de um desenvolvimento da personalidade de Jesus refletido nas fontes com uma aguda análise crítico-literária. Elas acreditam reencontrar o ideal da personalidade do seu autor nas fontes sobre Jesus” (pp. 23-24).

1.3   O Colapso (do otimismo) da pesquisa (liberal) sobre a vida de Jesus

O fim do otimismo da fase liberal sobre uma reconstituição válida da vida de Jesus com base, sobretudo, na teoria das duas fontes (o material extraordinário que começou a ser encontrado e divulgado a partir das duas últimas décadas do século XIX só viria a ser integrado nas pesquisas mais tarde, a partir da segunda década do século XX. As descobertas de Nag Hammadi e outras ainda, textuais e arqueológicas, só o viriam a ser analisadas e debatidas depois de passada a primeira metade do século) deveu-se à consideração dos seguintes fatores:

A)     Os autores e pesquisadores da fase otimista esqueciam que muito do que descreviam em suas “vidas de Jesus” eram projeções, em Jesus, de suas próprias escolhas de traços de personalidade, considerados, talvez inconscientemente, por eles como altos ideais éticos. Tal afirmação foi elencada e fundamentada por Albert Schweitzer.

B)      Não se poderia esquecer que o evangelho de Marcos foi um evangelho construído e voltado para uma comunidade de cristãos que viviam uma crise aguda dentro do judaísmo - em embates com judeus ortodoxos - e fora, com a ameaça da rebelião contra Roma (que vai de 66 a 74). Ademais, ele descreve mais aspirações e anseios teológicos posteriores projetados retrospectivamente em Jesus, que uma apresentação imparcial de fatos. Sendo assim, “o evangelho de Marcos seria expressão da dogmática da comunidade. Nele, a fé pós-pascal (e alguma coisa realmente deve ter ocorrido de extraordinário após a crucificação para sedimentar tal fé em um meio tão adverso) na messianidade de Jesus é projetada intrinsecamente na vida (pré-pascal e) não-messiânica de Jesus” (p. 24).

C)      “K. L. Schmidt demonstrou o caráter fragmentário dos evangelhos ao argumentar que a tradição sobre Jesus consiste em ‘pequenas unidades’ e que o quadro cronológico e geográfico ‘da história de Jesus’ foi criado secundariamente pelo evangelista Marcos” (p. 24).

O ceticismo que surge da crítica aos liberais deu ensejo aos tradicionalistas e, mais ainda, aos teólogos voltados a um entendimento místico ou mesmo mágico da Bíblia um espaço de reação às pesquisas sobre o Jesus histórico. Entre eles, o mais conhecido foi Rudolf Bultmann (1884-1976).  Para ele, embebido na teologia mística de Paulo, o que importava do Jesus histórico era apenas o fato de que viveu e morreu, voltando na ressurreição. Para ele e seus seguidores, “o fator decisivo não era o que Jesus havia feito e dito, mas o que Deus feito e dito na cruz e na ressurreição. A mensagem dessa ação de Deus, o ‘querigma’ neotestamentário, não tem por objeto o Jesus histórico, mas o ‘Cristo querigmático’ “(p. 25). Se havia algum interesse em se saber algo sobre o Jesus histórico para estes teólogos, em especial sobre o Jesus pré-pascal, era se a exaltação na cruz-ressurreição teria alguma base na fase pré-pascal, ou seja, só se firmaria se o que surgisse dos estudos deste Jesus confirmasse, retrospectivamente, o Cristo da fé pós-pascal. Era o que constituiria uma nova – e efêmera – fase de pesquisa, quase um ramo excêntrico, que buscava sedimentar uma fé a partir de estudos no vácuo da pesquisa histórica. Não é preciso dizer que tal abordagem “pecava” por tendenciosidade e invertia negativamente a proposta da pesquisa. Era um bizarro retorno da teologia dogmática ao universo da crítica.

1.4   A pesquisa judaica sobre Jesus               

 Segundo Gerd Theissen e Annette Merz,

    “Enquanto a teologia cristã desvaloriza a busca pelo Jesus histórico ao abandonar o liberalismo teológico, a pesquisa judaica sobre Jesus, que se inicia concomitantemente, continua a tradição liberal e enfatiza aspectos que na pesquisa científica foram pouco considerados, a saber, o aspecto judaico da vida e do ensino de Jesus” (p. 27).

O representante mais conhecido e mais contemporâneo desta vertente é, sem dúvida, Geza Vermes.  Seus excelentes trabalhos sobre Jesus, baseados em pesquisas hermenêuticas, arqueológicas e históricas, devem ser lidos por todos os interessados. Boa parte dos trabalhos de pesquisadores não-judeus, como Charlesworth e Pagels, e mesmo Dominic Crossan, são bastante harmônico com as pesquisas de Vermes.

1.5. -Fase atual: a “thid quest” pelo Jesus histórico

Não tardou a que a tentativa dos teólogos conservadores se fizessem frustradas com os avanços das pesquisas arqueológicas e históricas, novos achados (os documentos de Nag Hammadi) e o fato de que os teólogos estavam contaminando a percepção dos documentos com sua ênfase em fundamentar a identidade cristã ao distingui-la de suas origens no âmbito do judaísmo e, ao mesmo tempo, ao querer destacá-la a prioristicamente do que se consideram de heresias cristãs primitivas (a gnose e o entusiasmo carismático, em especial), dando preferência às fontes ortodoxas e canônicas. Saindo da Alemanha, o mundo anglo-saxônico vai contribuir para que o interesse histórico-social suplante o teológico dos seguidores de Bultmann e, então, “a inserção de Jesus no judaísmo substitui o interesse de separá-lo dele, a abertura também a fontes não-canônicas (em parte heréticas) substitui a preferência por fontes canônicas” (p. 28) - por “fontes canônicas” não se deve entender apenas os textos “oficiais” do Novo Testamento, mas também os escritos dos “pais” e “doutores” da Igreja (Eusébio, Jerônimo, Irineu, etc.).

Desta fase atual percebe-se um retrato melhor desenhado de Jesus a partir de seu contexto histórico-social É possível, com um conhecimento do seu contexto judaico em um país dominado por uma potência estrangeira, perceber o pano de fundo sobre o qual se destaca a figura do pregador galileu. “Na aparição e destino de Jesus se refletem as tensões características da sociedade judaica do primeiro século d.C.” (p.  28). Com isto se depreende que o movimento original de Jesus se apresenta como uma corrente de renovação dentro do judaísmo – uma entre outras que estavam a ocorrer no mesmo período, mas que destas de diferencia por características sócio-político-ideológicas bem próprias:

“Jesus e seu movimento pertencem a uma extensa corrente de renovação dentro do judaísmo que, diante da grande pressão por mudanças que emanava da poderosíssima cultura helenística, tentavam preservar ou redefinir a identidade judaica. Em Jesus essa identidade é definida de forma comparativamente ‘aberta’.

1 – Enquanto outros movimentos de renovação e de protesto associam a expectativa de uma vitória (militar e política, além de religiosa) de Israel sobre os gentios com a esperança escatológica numa mudança profunda, na tradição de Jesus o reinado de Deus fica aberto ao afluxo dos gentios. Contra tendências separatistas, Jesus ativa a tradição judaica universalista da peregrinação dos povos a Sião (Mt 8,10s).
2 –Enquanto outros movimentos de renovação intensificam normas especificamente judaicas, encontramos em Jesus uma radicalização (ou destaque) na Torá em normas éticas gerais e, ao mesmo tempo, um relaxamento de normas rituais separatistas (o mandamento do sábado e as regras de pureza).
3 – Enquanto muitos movimentos de renovação se ‘separam’ do povo, encontramos na tradição de Jesus uma atenção consciente para aqueles (excluídos) que não correspondem às normas tradicionais e ficam na periferia. Jesus ativa aqui a fé em um Deus misericordioso e gracioso contra outras tendências.
4 – enquanto outros movimentos de renovação expressam um protesto direto contra os governantes estrangeiros com sua superioridade militar e são parte da resistência contra os estrangeiros, o movimento de Jesus evita uma confrontação direta: ele formula a identidade judaica de modo que evita fundamentalmente um embate com as legiões.

“É característicos do movimento de Jesus uma forte ação integradora, tanto para fora como para dentro. O que possivelmente era objetivo de alguns reformadores helenistas radicais da aristrocracia no começo de nossa era – um judaísmo que se abre, que ativa suas tradições integrativas e universalista contra tendências separatistas – é realizado em Jesus de outra forma: não contra o povo simples, mas a partir de seu meio. Em geral, uma característica do movimento de Jesus é encontrar elementos aristocráticos num ambiente não-aristocrático” (p. 167).


Portanto, a importância do impacto de Jesus – cujos vestígios podem ser encontrados em registros de Flávio Josefo, Mara Bar Sarapion (de forma neutra e positiva) e em Plínio, o Jovem e Tácito (de forma negativa) – já no primeiro século, se traduziu pelo impacto revolucionário de sua mensagem, o que garantiu sua propagação a partir de baixo, do povo, por todo o Império, apesar da sangrenta perseguição das elites conservadoras.... Impacto este sensivelmente diluído quando o movimento de Jesus passou da esfera dos oprimidos para o dos opressores no século IV quando da oficialização e adaptação imperial do cristianismo.
Fim da Primeira Parte. A esta pretendemos dar seguimento a outras reflexões, sempre baseadas, em especial, no livro de Gerd Thiessen e Annette Merz O Jesus Histórico.

Bibliografia sugerida:


Aslan, Reza (2013). Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré. Zahar editora, Rio de Janeiro

Charlesworth, James H. (1992). Jesus dentro do Judaísmo. Editora Imago, São Paulo.

Meyer, Marvin.  (2001) O Evangelho de Tomé. Editora Imago, São Paulo

Theissen, Gerd & Merz, Annette (2002). O Jesus histórico - Um manual. Editora Loyla. São Paulo

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Breno Altman: Papa Francisco foi o Revolucionário de 2014

Leonardo Boff sobre o Natal enquanto festa da possibilidade de se ter humanidade

Natal: festa da humanidade de Deus e da comensalidade humana


Leonardo Boff

    O Natal é repleto de significados. Um deles foi sequestrado pela cultura do consumo que, ao invés do Menino Jesus, prefere a figura do bom velhinho, o Papai Noel, porque é mais apelativo para os negócios. O Menino Jesus, ao invés, fala da criança interior que carregamos sempre dentro de nós, que sente necessidade de ser cuidada e quando, já crescida, tem o impulso de cuidar. É aquele pedaço do paraíso que não foi totalmente perdido, feito de inocência, de espontaneidadea, de encantamento, de jogo e de convivência com os outros sem qualquer discriminação..
   Para os cristãos é a celebração da “proximidade e da humanidade” de nosso Deus, como se diz na epístola a Tito (3,4). Deus deixou-se apaixonar pelo ser humano que quis ser um deles. Como diz belamente Fernando Pessoa em seu poema sobre o Natal: “Ele é a eterna Criança, o Deus que faltava; ele é o divino que sorri e que brinca; a criança tão humana que é divina”.
   Agora temos um Deus criança e não um Deus, juiz severo de nossos atos e da história humana. Que alegria interior sentimos quando pensamos que seremos julgado por um Deus criança. Mais que nos condenar, quer conviver e se entreter conosco eternamente.
   O seu nascimento provocou uma comoção cósmica. Um texto da liturgia cristã diz de forma simbólica:”Então as folhas que farfalhavam, pararam como mortas; então o vento que sussurava, ficou parado no ar; então o galo que cantava, parou no meio de seu canto; então as águas do riacho que corriam, se estancaram; então, as ovelhas que pastavam, ficaram imóveis; então o pastor que erguia o cajado, ficou como que petrificado; então nesse momento, tudo parou, tudo silenciou, tudo suspendeu o seu curso: nasceu Jesus, o Salvador das gentes e do universo”.
   O Natal é uma festa de luz, de fraternidade universal, festa da família reunida ao redor de uma mesa. Mais que comer, comunga-se da vida de uns e de outros e da generosidade dos frutos de nossa Mãe Terra e da arte culinária do trabalho humano.
   Por um momento, esquecemos os afazeres cotidianos, o peso da existência trabalhosa, as tensões entre familiares e amigos e nos irmanamos na alegre comensalidade. Comensalidade significa comer juntos ao redor da mesma mesa (mensa) como se fazia outrora: todos da família se reuniam, conversavam, comiam e bebiam à mesa, pais, filhos e filhas.
  A comensalidade é tão central que está ligada à própria emergência do ser humano enquanto humano. Há sete mihões de anos começou a separação lenta e progressiva entre os símios superiores e os humanos, a partir de um ancestral comum. A singularidade do ser humano, à diferença dos animais, é reunir os alimentos, distribui-los entre todos, começando pelos mais novos e pelos idosos e depois entre todos.
  A comensalidade supõe a cooperação e a solidariedade de uns para com os outros. Foi ela que propiciou o salto da animalidade para a humanidade. O que foi verdadeiro ontem, continua verdadeiro hoje. Por isso nos dói tanto ao saber que milhões e milhões não têm nada para repartir e passam fome.
  No dia 11 de setembro de 2001 ocorreu a conhecida atrocidade: os aviões que se jogaram contra as Torres Gêmeas. No ato, morreram cerca de três mil pessoas.
  No mesmo dia, exatamente, 16.400 crianças, abaixo de cinco anos, morriam de fome e de desnutrição. No dia seguinte e durante todo o an doze milhões de crianças foram vitimadas pela fome. E ninguém ficou e fica estarrecido diante desta catástrofe humana.
  Neste Natal de alegria e de fraternidade não podemos esquecer esses que Jesus chamou de “meus irmãos e minhas irmãs menores”(Mt 25, 40) que não podem receber presentes nem comer qualquer coisa.
  Mas não obstante este abatimento, celebremos e cantemos, cantemos e nos alegremos porque nunca mais estaremos sós. O Menino se chama Jesus, o Emanuel que quer dizer: “Deus conosco”. Vale esse pequeno verso que nos faz pensar sobre nossa compreensão de Deus, revelada no Natal:
  Todo menino quer ser homem.
  Todo homem quer ser rei.
  Todo rei quer ser ‘deus’.
  Só Deus quis ser menino”.