segunda-feira, 20 de maio de 2024

A extrema-direita e o uso deturpado e político do cristianismo. Artigo de Robson Sávio Reis de Souza, pós-doutor em Direitos Humanos

 


Um dos motes da plataforma internacional da extrema-direita para as disputas eleitorais é "proteger os cristãos em todo o mundo"

(Foto: OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS)

247. - Neste final de semana aconteceu em Madrid, na Espanha, um encontro de líderes da extrema-direita global. O encontro foi organizado pelo Vox, partido da extrema-direita espanhola. 

Estarão presentes, entre outros, Javier Milei, presidente da Argentina; Viktor Orban, da Hungria; Marie Le Pen, da França; a primeira-ministra Giorgia Meloni, da Itália e representantes do governo de Israel. 

Pesquisas de opinião apontam que partidos da extrema-direita podem sair vitoriosos em 9 dos 27 países da União Europeia, incluindo a França, de Marie Le Pen, e a Holanda. Essas mesmas pesquisas também indicam que a extrema-direita direita já se tornou a segunda maior força política na Espanha, Portugal, Alemanha e Suécia. 

No encontro deste final de semana em Madrid, um dos motes da plataforma internacional da extrema-direita para as disputas eleitorais é "proteger os cristãos em todo o mundo". Também defendem o armamentismo, o protecionismo agrícola, medidas xenófobas e uma "coisa" chamada de "valores tradicionais", expressão que dá guarita a todo tipo de retrocesso nos campos de políticas públicas focalizadas, direitos individuais, sociais e reprodutivos, além de agradar os que são saudosos de tempos imperiais e até teocratas de plantão. 

Como temos alertado e considerando vários estudos sobre o crescimento de grupos extremistas, o fundamentalismo cristão é uma das bases da extrema-direita global e, no Brasil, enxergamos com clareza esse movimento.

Um dos pilares de sustentação do bolsonarismo é a religião. As igrejas, principalmente as poderosas agremiações neopentecostais evangélicas e segmentos conservadores do catolicismo garantiram (e ainda garantem) ao ex-presidente ampla base de apoio social e político.

O uso da religião tem caracterizado a nova extrema-direita global, como revelou o vaticanista Iacopo Scaramuzzi em seu livro intitulado “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), cuja capa estampa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin.

A pauta (moralista) de costumes associada contemporaneamente à guerra cultural e o (ab)uso da religião são as principais armas da extrema-direita direita na formação de uma nova cruzada "do bem contra o mal" - uma estratégia amplamente utilizada ao longo da história para se pavimentar os grandes retrocessos civilizatórios.

Promotor do Tribunal Penal Internacional pede mandado de prisão contra o ultradireitista Benjamin Netanyahu por crimes de guerra

 

Karim Khan, promotor-chefe do TPI, também pede que o tribunal emita mandados de prisão para o ministro da Defesa de Israel e líderes do Hamas

Benjamin Netanyahu e Faixa de Gaza após ataque de Israel
Benjamin Netanyahu e Faixa de Gaza após ataque de Israel (Foto: ABR | Reprodução/AlJazeera)

247Promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan pediu que o tribunal emita mandados de prisão contra o líder do Hamas, Yahya Sinwar, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, por acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade relacionados aos ataques de 7 de outubro a Israel e à guerra subsequente em Gaza.

Em entrevista a Christiane Amanpour, da CNN, nesta segunda-feira (20), Khan disse que também está buscando mandados para o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, bem como para dois outros líderes de alto escalão do Hamas: Mohammed Diab Ibrahim al-Masri, líder das Brigadas Al Qassem, mais conhecido como Mohammed Deif, e Ismail Haniyeh, líder político do Hamas.

Os mandados contra os políticos israelenses marcam a primeira vez que o TPI visa o líder máximo de um aliado próximo dos Estados Unidos. Um painel de juízes do TPI agora considerará a solicitação de Khan para os mandados de prisão.

Khan disse que as acusações contra Sinwar, Haniyeh e al-Masri incluem “extermínio, assassinato, tomada de reféns, estupro e agressão sexual em detenção". “O mundo ficou chocado no dia 7 de outubro quando pessoas foram arrancadas de seus quartos, de suas casas, dos diferentes kibutzim em Israel", disse Khan a Amanpour, acrescentando que “as pessoas sofreram enormemente.”

As acusações contra Netanyahu e Gallant incluem “causar extermínio, causar fome como método de guerra, incluindo a negação de suprimentos de ajuda humanitária, e deliberadamente alvejar civis em conflito,” disse Khan a Amanpour.

Quando surgiram relatos no mês passado de que o promotor-chefe do TPI estava considerando essa ação, Netanyahu disse que quaisquer mandados de prisão do TPI contra altos funcionários do governo e militares israelenses “seriam um ultraje de proporções históricas,” e que Israel “tem um sistema jurídico independente que investiga rigorosamente todas as violações da lei".

Questionado por Amanpour sobre os comentários de Netanyahu, Khan disse: “ninguém está acima da lei". Ele disse que se Israel discordar do TPI, “eles são livres, não obstante suas objeções à jurisdição, para levantar um desafio perante os juízes do tribunal e é isso que eu os aconselho a fazer".

Israel e os Estados Unidos não são membros do TPI. No entanto, o TPI afirma ter jurisdição sobre Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia depois que líderes palestinos concordaram formalmente em estar vinculados pelos princípios fundadores do tribunal em 2015.

A farsa do Brasil Paralelo nas lacunas da verdade, por Saulo Barbosa

 

Filipe Valeriam, Henrique Viana e Lucas Ferrugem, criaram, em 2016, a empresa Brasil Paralelo após perceber que havia público que consumia ideias anti-científicas influenciadas pelo astrólogo Olavo de Carvalho.



Brasil Paralelo nas lacunas da verdade

por Saulo Barbosa Santiago dos Santos

Do Jornal GGN:

Após as manifestações ocorridas no Brasil em 2013, os estudantes universitários Filipe Valeriam, Henrique Viana e Lucas Ferrugem, criaram, em 2016, a empresa Brasil Paralelo após perceber que havia público que consumia ideias anti-científicas influenciadas pelo astrólogo Olavo de Carvalho. Para Olavo e seus seguidores, a educação brasileira está corrompida pelo “marxismo cultural” e se não houver mudança, o país será invadido pelo comunismo. O objetivo deste texto é criticar a empresa Brasil Paralelo por distorcer fatos, deslegitimar a ciência e promover uma agenda ideológica de direita, visando engajamento e lucro em detrimento da veracidade dos dados.

 A Brasil Paralelo (BP) se apresenta como uma produtora de conteúdo imparcial que visa contar a história livre de ideologia, disposta a apresentar uma versão alternativa daquilo que é estudado nas academias, contando fatos que não são ensinados e eventos omitidos. Claro que na academia eles não seriam levados a sério porque na primeira tentativa de defender suas teses, seriam facilmente refutados com vasta fonte documental, então preferiram oferecer seus “estudos” no antro das “fake news”, na casa da manipulação da verdade: redes sociais.

Em terreno fértil para manipular a verdade, a BP desenvolve narrativas que deslegitimam os trabalhos científicos apenas afirmando que os estudos estão corrompidos pelo “marxismo cultural”. É mais ou menos assim, digamos que 99,9% dos historiadores concordam que o Brasil sofreu uma ditadura empresarial-militar, entretanto, 0,1% de outros profissionais, negam sem provas, a ditadura. O que o Brasil Paralelo faz é justamente dar voz a esta exceção acadêmica e transparecer que eles são vítimas do silenciamento esquerdista.

Numa entrevista ao canal “inteligência ilimitada”[1], dada em 2022, os fundadores da BP exemplificam a metodologia usada por eles na construção de documentários. Segundo eles, num trabalho de campo na República Tcheca sobre a interferência da União Soviética na política brasileira na década de 60, a equipe da empresa contratou um brasileiro que falava polonês, mas o entrevistado não entendia a língua polonesa, então, contrataram um tcheco, que sabia polonês, com isso, eles faziam a pergunta para o brasileiro, o brasileiro traduzia para o polonês, e o polonês traduzia para o tcheco e as resposta seguiam a mesma linha.

Há dois fatos importantes que o historiador Gaiofato, do “história cabeluda”, percebeu e pôs em check os métodos da Brasil Paralelo na entrevista citada no parágrafo anterior: Primeiro, por que entrevistaram um tcheco se a república tcheca nem fazia parte da União Soviética? Eles tinham todo o leste europeu para fazer o trabalho de campo, foram justamente atrás de quem não tinha nada a ver, que não estava, sequer, no lugar de fala? Segundo, foram usadas três línguas diferentes na entrevista, o que se perdeu no uso das palavras, interpretações, contextos e tudo mais, levam a  consequências incontáveis e diminui drasticamente a qualidade do trabalho.

Os estudos que a BP fez a partir desta dinâmica não seria aceito nem na faculdade mais miserável, mas por que mesmo assim fazem e publicam? Porque o objetivo e a preocupação não está na veracidade dos fatos, mas sim na manipulação da verdade para levantar engajamento e gerar lucro.

Chegamos à conclusão de que a Brasil Paralelo conseguiu crescimento a partir de três atos estratégicos: busca de terreno fértil para manipular a verdade, deslegitimação da ciência e, por fim, substituí-la por argumentos pautadas por ideologias de direita. O importante não é passar conhecimentos, mas moldar fatos que contribuam à desinformação, causando assim um impacto negativo e desnecessário no desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária.


[1] https://www.youtube.com/watch?v=9BX-j5QrKIE

Saulo Barbosa Santiago dos Santos – Guarda Civil, Professor de filosofia e Autista

Filme ‘Lula’, de Oliver Stone, é aplaudido por 4 minutos após estreia em Cannes, França

 

Obra integra a mostra "Sessões Especiais" do festival e foi recebida de forma calorosa pelos espectadores



Do ICL Notícias, com Folhapress

“Lula”, documentário que os cineastas Oliver Stone e Rob Wilson preparam há anos sobre o presidente, finalmente teve sua primeira sessão para o público.

Exibido no Festival de Cannes na noite deste domingo, o filme integra a mostra “Sessões Especiais” do evento e foi recebido de forma calorosa pelos espectadores que lotaram a sala Agnès Varda. A obra foi ovacionada pela plateia formada principalmente por estrangeiros, que aplaudiram a estreia por quatro minutos após a exibição.

“Este filme é sobre uma pessoa muito especial no mundo hoje. Acho que ele é um dos únicos líderes que é da classe trabalhadora, que veio da base, que aprendeu a ler tarde. Ele realmente lutou para ser quem ele é. E ele luta mais ainda no filme. Por favor, eu admiro este homem profundamente. E eu sei que muita gente o odeia. Eu não acho que vocês o odeiam. Por favor, não o odeiam muito porque ele tem uma alma maravilhosa”, declarou o cineasta ao apresentar o filme.

Diretor de obras contundentes como “Platoon” (1986), JFK (1991), “Nascido em quatro de julho”, Stone sempre fez um cinema politizado e crítico sobre os grandes temas da sociedade norte-americana.

Em paralelo, também tem paixão por documentários e investiga as grandes questões do mundo e da América Latina em filmes como “Ao sul da fronteira”, uma tentativa de entender os movimentos que elegeram líderes de esquerda na América Latina no início do século 21.

Diretor de "Platoon", Stone lançou filme sobre presidente Lula em Cannes e foi muito aplaudido (Yara Nardi/Reuters)

Diretor de “Platoon”, Stone lançou filme sobre presidente Lula em Cannes e foi muito aplaudido. Foto: Yara Nardi/ Reuters

Em “Lula”, Stone investiga o fenômeno de Luiz Inácio Lula da Silva como um político fora do comum, cuja trajetória, como o cineasta afirmou, nasceu na pobreza e tem uma trajetória de superação incomparável.

“Lula” parte da infância de Lula em Pernambuco, conta sua chegada em São Paulo, o curso profissionalizante na adolescência, o acidente de trabalho que lhe custou um dedo e a entrada no movimento sindicalista até a criação do PT.

Definido como um “feel good movie” pelos produtores, o que parece improvável e quase impossível para um documentário sobre o cenário político do Brasil, “Lula” de fato apresenta uma narrativa que “faz sentir bem” ao final, com a conclusão de que, depois de anos conturbados com a Lava Jato, o golpe sofrido por Dilma Roussef, a prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro, o país retomou o curso da democracia.

A plateia embarcou na proposta e, mesmo que sóbria, aplaudiu muito no final. Houve gritos de “obrigado” para Stone e equipe, e gritos de “Olê, olê, olá, Lula, Lula” quando Stone deixava a sala.

“Vocês fizeram um ótimo trabalho”, respondeu o cineasta agradecendo os brasileiros presentes.

“Lula” contextualiza história recente do Brasil

Ainda que, obviamente, pró-Lula, o documentário toma o cuidado de contextualizar a história do Brasil recente, explicando o processo para uma plateia mais ampla que a do Brasil.

“Sei que há bons filmes sobre o Lula. Eu vi ‘Democracia em vertigem’, de Petra Costa. É um filme muito bom, gostei muito. Mas é um filme brasileiro e tem detalhes sobre os quais o público norte-americano ou europeu talvez não estejam interessados. Então, meu documentário é um pouco mais amplo e menos detalhado. E ela (Petra) fez um ótimo trabalho”, declarou o cineasta em entrevista ao Splash UOL em dezembro de 2022, durante o Red Sea International Film Festival, em que foi presidente do júri.

À época, sua equipe acabara de filmar o dia da eleição de Lula e ainda trabalhava no último corte. E, de fato, “Lula” é um documentário que dialoga com o público internacional, não tão versado na política latino-americana e nem brasileira, mas pode servir muito bem ao público do Brasil, que poderá ver não só a história contemporânea repassada e resumida, mas também explicada.

As conversas de Stone com Lula em diversas ocasiões funcionam como fio condutor da narrativa, que também não poupa os Estados Unidos e sua interferência nas tomadas de decisões da política brasileira.

O cineasta afirma claramente que houve envolvimento norte-americano na derrubada de Dilma e conta com depoimentos do jornalista Glenn Greenwald, que também analisa a Vaza Jato.

“É muito interessante. A gente vai até aí, mas não nos aprofundamos muito sobre onde o Departamento de Estado (norte-americano) se intersecciona com Sérgio Moro e a Direita brasileira. Mas essa foi uma história suja. Mais uma das centenas de crimes que os Estados Unidos cometeram na América do Sul”, comentou Stone em 2022.

Esta tese está presente no documentário, assim como também o brasileiro Walter Delgatti Neto, o Vermelho, ou o “hacker da Vaza Jato”, que forneceu a Greenwald as conversas vazadas da Lava Jato, caso que mudou o rumo da história e desembocou na soltura de Lula, em 2019.

O filme também atribui a grande parte da mídia brasileira a responsabilidade de contribuir para o cenário de desinformação que tomou conta do país e que desembocou no golpe de Dilma Rousseff, e também na eleição de Bolsonaro.

“Oligárquica, conservadora e propagandista, controlada por poucas famílias ricas”, define Stone.


O lugar que não muda (mas deveria) – a escola, por Dora Incontri

 

A educação não pode ser meramente conteudística, não pode ser passiva, modeladora, opressora do indivíduo e das novas gerações



Do Jornal GGN:

O lugar que não muda – a escola

por Dora Incontri

Digo sempre que o lugar mais resistente às mudanças é a escola. O campo mais difícil de transformar é a educação. Em minha longa carreira de educadora, já fiz projetos em escolas públicas, privadas, na capital e no interior de São Paulo. Nada tão compensador como estar com os alunos – de qualquer idade – e nada tão frustrante como lidar com os adultos que compõem a comunidade escolar e trabalhar com as políticas do sistema educacional.

Em dois níveis, que se interpenetram, podemos falar de mudanças urgentes, necessárias e sempre tão distantes. O primeiro se refere à educação igual e de qualidade para todos. E o outro nível é: que educação queremos e de que métodos precisamos.

No Brasil, desde sempre temos uma educação para as elites e uma educação para o povo. Desigual, distante, reproduzindo a divisão de classes sociais e com um projeto das elites (que Jessé de Souza chama tão bem de elites do atraso), de manter mesmo o povo no patamar da exploração, do trabalho de base da sociedade, detestando muitas vezes quando vê um médico negro ou uma mulher do povo ocupando um cargo político.

Os governos do PT fizeram um avanço em diminuir um tanto essa desigualdade, com o sistema de cotas, com o investimento em universidades, com programas como o Fies (em que pesem as críticas, que também são minhas, de que esse tipo de política serve de sustento para as faculdades privadas, que na maioria das vezes não oferecem um ensino de qualidade e estão sempre mais interessadas no lucro). Mas esses avanços não atingiram nunca o nível necessário e esperado nem nas universidades e nem na educação básica. Nos tempos em que viajava por esse Brasil afora durante décadas (antes da pandemia), via as universidades públicas em situação muitas vezes precária, precisando de reformas, tudo com um ar de desleixo. Detesto a comparação, mas terei de fazer: visitem uma universidade nos EUA ou na Europa, com tudo bonito, arrumado, bem estruturado, com bibliotecas imensas!  No caso das escolas, basta fazer uma visita em algumas públicas, por exemplo na periferia de São Paulo, para ver que mais parecem prisões do que escolas. Já ouvi relatos de professores dizendo que seus alunos comparam a escola em que estudam com a prisão em que o pai está. Estou aqui me referindo ao aspecto físico e estrutural de universidades e escolas – que considero fundamental para o bem-estar da comunidade acadêmica e escolar e que tem também uma função estética educativa.

Do ponto de vista do conteúdo produzido ou ensinado, pode-se dizer que em ambos os níveis, há algumas poucas universidades e algumas poucas escolas públicas, bem específicas, que têm uma excelência que se projeta até internacionalmente, mas isso está longe de ser a regra. Muito sucateamento por aí, que piorou com o desgoverno anterior.

Agora chego ao ponto fundamental: a educação precisa mudar por dentro. Nem que tivéssemos os mais lindos e bem cuidados edifícios e investíssemos dignamente na remuneração dos professores, ainda assim haveria uma revolução pedagógica a ser feita, ensaiada desde Jan Comenius, Jean-Jacques Rousseau, Johan Heinrich Pestalozzi, sem mencionar os mais recentes educadores como Maria Montessori, Alexander Neil, Makarenko, Paulo Freire e tantos outros – todos diferentes entre si, mas alinhados em algumas mudanças fundamentais.

A educação não pode ser meramente conteudística, não pode ser passiva, modeladora, opressora do indivíduo e das novas gerações, muito menos indiferente em relação ao seu avanço cognitivo, ético e produtivo. Teríamos que ter urgentemente uma escola crítica, emancipadora, participativa, baseada em projetos, pesquisas, diálogo, ações sociais, com muito afeto, beleza e cooperação mútua. Enfim, uma escola e uma universidade que não sejam voltadas para formar o sujeito perfeitamente dócil e adaptado ao mercado, mas para formar sujeitos livres, críticos e que queiram e saibam como transformar o mundo.

Para essa mudança, há que se fazer uma verdadeira revolução na política, nas cabeças e nos corações das famílias, dos professores, dos coordenadores, das instituições. E aí é que está a maior dificuldade, não interessa a ninguém mudar a educação nessa profundidade. A criança e o jovem ainda são presas para a manipulação, para a formatação das mentes, submissas e encaixadas na sociedade capitalista. De acordo com sua classe social: para serem empresários ou empregados ou, mais recentemente, empresários de si mesmos (o que é ainda pior)! E as famílias cooperam com isso, os professores idem – todos convencidos pela própria educação que tiveram, que assim deve ser. O sistema de obediência e submissão presente desde o Jardim da Infância prepara a pessoa para submeter-se ao sistema econômico e sociopolítico na fase adulta. O dia em que quebrarmos isso, avançamos muitos passos.

Entretanto, hoje, temos no cenário, um fator que complica imensamente todas essas encruzilhadas: os celulares, os tablets, que estão formatando antes e depois da família e da escola, as novas gerações – mas isso é tema para o próximo artigo.

Chora por ti Rio Grande, por Aldo Fornazieri

 

Agora, na tua reconstrução, tens a chance de ser modelo, farol, de não fazer mais o que não deve ser feito para fazer o que deve ser feito



Lauro Alves – SECOM

Chora por ti Rio Grande

por Aldo Fornazieri, cientista político

 (extraído do Jornal GGN)

Chora por ti Rio Grande. O teu choro é o choro do teu povo. Chora pelos teus mortos, pelos teus desaparecidos, pelos teus desabrigados. Chora pela tua dor e pelas dores de todas as perdas. Chora pelos cães, gatos, cavalos e por outros animais que morreram afogados, por aqueles que sofreram nas águas, como Caramelo, mas que resistiram para viver.

Chora comovido Rio Grande, pelos milhares de voluntários que não mediram esforços, que ficaram noites acordados, que entraram nas águas turbulentas e barrentas para salvar vidas.

Chora comovido Rio Grande, pela onda de solidariedade que recebeste de milhões de brasileiros e de pessoas de outros países, que te enviaram todas as espécies de ajuda.

Chora Rio Grande pelas tuas cidades devastadas, pelos bairros arrasados, pelas pontes e casas levadas pelas águas, pelas estradas destruídas e interditadas, pelo aeroporto debaixo d’água, pelas tuas arenas esportivas inundadas.

Chora mais ainda Rio Grande, pelas escolas e creches que desapareceram, pelos hospitais e postos de Saúde engolfados, pelos documentos históricos danificados. São cunas de futuro que foram parar debaixo d’água para sempre junto com os berços e brinquedos das crianças.

Chora Rio Grande pelos vinhedos da Serra esmagados pela violência da lama, árvores e pedras que rolaram das montanhas. Não produzirão mais a saborosa uva e deles não será mais possível produzir o oloroso e inebriante vinho.

Chora Rio Grande, pelos teus trigais, arrozais e campo de milho e soja devastados. Com eles se foi a riqueza agrícola, o suor dos camponeses e fazendeiros, a esperança de uma recompensa por pesado esforço. Dos teus trigais não colherás o grão, não virá o pão colonial quente, cozido no forno a lenha para acompanhar o salame, o queijo, o vinho.

Chora Rio Grande pelas tuas macieiras arrancadas, pelas tuas hortaliças enterradas e pelos laranjais que nos tempos das floradas não exalarão mais perfume celestial que atrai todas as espécies de abelhas e de onde cantam os sabiás. O beija-flor não beijará mais a flores dos jardins das casas arrasadas.

E o que dizer dos pés de butiá e de cerejeira gaúcha que se foram para sempre? O que dirás Rio Grande do Sul do Luiz Carlos, do Artêmio, da Ivonete, da Eva, do Avelino, da Paloma, do Lothar, do Hélio, da Helga, do Júlio Antônio, da Bernadete, Catharina, do Kaique, da Noeli… e das centenas de mortos e desaparecidos que partiram sem dizer adeus? O que dirás dos que se foram sem serem identificados? E o que dirás da família que morreu abraçada em Roca Sales, soterrada pela brutalidade do deslizamento?

Quando os rios furiosos que descem das montanhas estiverem calmos, se quando as mansas águas que invadiram as tuas cidades baixas se esvaírem para o mar, vai Rio Grande, senta-te sobre o dorso de tuas coxilhas, sobre os picos das montanhas da Serra e caminha calmamente rumo ao horizonte infinito dos teus pampas. Nesses momentos em que a dor lacerante pelas mortes se transformar em saudosa dor da alma, em que as tuas perdas materiais se transformar em tristeza, em que começarão brotar sementinhas de esperança, cessa o teu choro e começa a refletir acerca do que fizeste a ti mesmo.

Então lembra-te que desnudaste as serras e os pampas, transformaste em cinzas árvores e vegetação, invadiste as margens dos rios e os estrangulaste para construir cidades e estradas. Lembra-te que assassinastes os passarinhos e dizimastes os animais silvestres que viviam livres e felizes. Destruíste as nascentes e envenenaste os rios, provocando a morte dos peixes e da vida aquática.

Lembra-te Rio Grande do genocídio que praticaste contras os povos originários, os indígenas, e o desprezo que teu povo nutre por eles até hoje. Invadiste as suas terras, derrubaste as suas matas e roubaste os seus direitos.

Quando tu estiveres andando pelos pampas, lembra-te Rio Grande da tua irresponsabilidade ao deixar que as pessoas construíssem as suas casas em áreas que deveriam ser protegidas, da pobreza, da desigualdade e das injustiças sociais que deixaste vicejar sob o teu céu azul.

Reflita sobre a irresponsabilidade criminosa dos teus políticos negacionistas e oportunistas que não cuidaram do meio ambiente.

Onde estão as tuas virtudes Rio Grande? As sufocaste pela ambição dos gananciosos. A valentia dos que lutaram pela liberdade no passado se transformou em grotesca agressão e destruição da natureza, em egoísmo desmedido pelo ganho, em desrespeito pela vida.

Foste imprudente Rio Grande. O que viste descer dos céus foram lágrimas diluvianas que choraram a dor da natureza por todos os males, por todas as violências e por todas as violações que ela vem sofrendo. A natureza te mostrou Rio Grande que, nós humanos, não somos nada quando ela se encoleriza para punir a nossa arrogância. Nem cidades, nem pontes, nem aeroportos, nem comunicações, nem estádios, nem palácios, nem rede elétrica, nem as muralhas são suficientemente fortes para aplacar a fúria da natureza.

O que te aconteceu Rio Grande foi uma dura advertência para todos nós, para toda a humanidade. Se não mudarmos os modos de produzir e de consumir, as formas de nos relacionar com a natureza, se não regenerarmos o que destruímos, a própria vida, a civilização humana e todas as espécies estão ameaçadas.

Agora, na tua reconstrução Rio Grande, tens a chance de ser modelo, farol, de não fazer mais o que não deve ser feito para fazer o que deve ser feito. Caso contrário, nem tudo o que se planta crescerá e no lugar do amor florescerá a dor. Cuidado Rio Grande para não mostrar para quem quiser ver que és um lugar para se viver e chorar. Reflita sobre a herança que deixarás para os teus netos e bisnetos, para as tuas gerações futuras.

Respeita Rio Grande a tua maltratada Mãe, aquela que dá a vida a todos os seres, aquela que te dá a uva e o vinho, aquela que te dá os grãos, aquela que te dá as maçãs e os frutos, aquela que te dá as azeitonas e os óleos. Respeita Rio Grande aquela que te permite viver.


domingo, 19 de maio de 2024

Como é trabalhar com o pior Congresso da história? Pesquisadora responde à TVGGN

 

Parlamentares viveram dois momentos de protagonismo: nos anos 2000, com maior número de leis, e nos últimos anos, graças às emendas





Jornal GGN:


O programa TVGGN 20H da última sexta-feira (17) contou com a participação da  pós-doutoranda na EACH/USP e pesquisadora na Fundação POPVOX, nos EUA, Beatriz Rey, que fez um balanço sobre a atuação do Congresso Nacional. 

Entre os temas analisados pela pós-doutoranda estão os dois movimentos de fortalecimento do Legislativo Federal. O primeiro deles, ainda no início dos anos 2000, foi positivo, tendo em vista que os deputados federais e senadores passaram a ganhar mais protagonismo por formular leis. 

“Acho que até certa medida foi positiva algumas mudanças que foram acontecendo. O Congresso fez mudanças em relação a medidas provisórias, em 2001, para tentar enfrentar o protagonismo que naquele momento ainda estava muito forte na mão do executivo. Até aquele momento eu acho que a gente estava em um momento em que não necessariamente era ruim para a democracia brasileira”, comenta a pesquisadora.

Emendas

Nos dois primeiros anos do segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016) e ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), o cenário mudou. Segundo Beatriz, ambos os presidentes não usaram suas prerrogativas legislativas, dando mais poder aos parlamentares. 

“Agora o que começa a acontecer em 2015, com a impositividade das emendas individuais, depois em 2019, impositividade de emendas coletivas, vai desembocar, que ficou conhecido como orçamento secreto”, comenta a pesquisadora. 

Como as emendas são uma forma de conquistar o apoio do Congresso, a situação ficou fora de controle, na opinião da entrevistada. “A cada ciclo orçamentário aparece uma nova ideia, um novo jeito de tirar poder do Executivo e dar mais protagonismo para o Legislativo, de modo que o volume do de recursos orçamentários está ficando bastante fora do controle”, continua Beatriz.

Confira a entrevista completa no Youtube da TVGGN ou link abaixo e confira a análise de Beatriz Rey sobre o papel do centrão, a necessidade de termos os partidos de direita reorganizados e se a democracia brasileira corre riscos diante de um Congresso cada vez mais conservador.  

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Juiz lança livro para explicar a construção do idiota no Brasil e no mundo

 

Ao comprar a racionalidade hegemônica das redes sociais, o indivíduo é modelado a atuar no sentido contrário dos próprios interesses, sendo incapaz de fazer reflexões lógicas com base no real

Do Jornal GGNJornal GGN:

Crédito da foto: Reprodução

Publicado em 


“Pedi à nossa equipe aqui que ajude a estruturar ferramentas e canais para que aquelas pessoas que queiram fazer doações possam fazer essas doações também ajudando o comércio local, que está impactado. Na verdade, quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao estado, há um receio sobre o impacto que isso terá no comércio local. O reerguimento desse comércio fica dificultado na medida em que você tem uma série de itens que estão vindo de outros lugares do país”, afirmou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, na última quarta-feira (15).

A declaração de Leite despertou uma onda de críticas, tendo em vista a situação do estado, que permaneceu mais de 15 dias embaixo d’água, em um cenário de destruição que fez com que os gaúchos perdessem absolutamente tudo. Até o momento, as enchentes que inundaram o Rio Grande do Sul fizeram 155 vítimas fatais, além de 94 desaparecidos e mais de dois milhões de atingidos.

“A fala do governador do Rio Grande do Sul é uma fala assustada: diante da solidariedade que entra dentro dessa lógica contra-hegemônica, que não é mais o egoísmo que está dando as cartas, é a solidariedade. Ele diz pare de fazer doações porque vai prejudicar os empresários, que vai prejudicar o comércio”, comenta o juiz de Direito do TJRJ e escritor, Rubens Casara, autor do livro A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação.

Casara foi um dos entrevistados do programa TVGGN 20H da última sexta-feira (17). Ao longo da entrevista, ele explicou como se dá o processo de idiossubjetivação, que, segundo ele, formata pessoas para que aceitem um jogo de poder econômico e político contrário aos próprios interesses. 

“O sujeito idiossubjetivo se torna incapaz de perceber que ele está atuando no sentido contrário aos seus interesses, aos interesses dos filhos, e não faltam exemplos de pessoas que cometem esse vício de pensamento muito mais próximo do vazio de pensamento do que de reflexão”, comenta Casara.

Exemplos

De acordo com o conceito da Grécia, idiota é aquele indivíduo que naturaliza o que deveria ser tido como inaceitável. Pode até ser que esta pessoa seja inteligente, porém ela se mostra incapaz de fazer reflexões. 

“Já que hoje estamos no dia de luta contra homofobia, é aquele dirigente sindical homofóbico, aquele membro do movimento social racista, aquela pessoa que faz as coisas sempre a partir de cálculos simplórios e simplistas, visando lucro ou obtenção de vantagens pessoais”, explica o juiz.

Mais que benesses, esses indivíduos objetificam os demais, percebendo-os como oponentes a serem vencidos ou inimigos que devem ser destruídos. 

Por isso, o autor explica que a motivação para escrever a obra foi entender o porquê de tanta gente achar natural convicções que seriam inaceitáveis até 10 anos atrás, ao ponto de elegermos até representantes desta barbárie como presidentes. 

“É um fenômeno mundial que está intimamente ligado a uma mutação subjetiva gerada por aquilo que alguns autores têm chamado de racionalidade hegemônica, racionalidade neoliberal”, continua o juiz. 

Para combater o processo de idiossubjetivação em andamento, o convidado sugere o resgate da ideia do inegociável. “Não se negocia com vidas, não se pode aproveitar de uma desgraça, de uma tragédia que é política, ecológica, ambiental para que isso venha a ser percebido pelo sujeito como oportunidade de levar uma vantagem.” 

Confira a entrevista completa: 


terça-feira, 14 de maio de 2024

Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza, por Elusiane Prinz & Marcelo Henrique

 

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros

Do Jornal GGN:




Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza

por Elusiane Prinz e Marcelo Henrique

Abrimos este ensaio com uma citação de Bauman, (BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 122): “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos”.

Diante disto, novas questões contemporaneamente têm surgido, materializando desafios à educação e à sociedade como um todo. Muitas delas decorrem de novas formas de comunicação e, consequentemente, das oportunidades que as novas tecnologias (TICs) proporcionam a um número cada vez maior de humanos. As maiores usuárias de tais instrumentos são as gerações novas e, ao mesmo tempo em que os benefícios se incorporam ao viver quotidiano, surgem riscos e malefícios.

Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou que “uma em cada seis crianças/adolescentes, afirma que sofreu cyberbullying no ano de 2022” (Agência Francesa de Notícias, AFP. Uma em cada seis crianças foi vítima de cyberbulling em 2022. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-em-cada-seis-criancas-foi-vitima-de-cyberbullying-em-2022-em-44-paises-diz-oms/>. Acesso em 10. Abr. 2024).

Cyberbullying é um tipo de assédio que decorre da utilização de tecnologias de comunicação e informação. Torna-se necessário, antes, conceituar bullying como o termo que deriva da palavra bully. A origem do termo nada tem a ver com o sentido que se dá, moderna e contemporaneamente a ele, pois que derivando do alemão boel o significado é “irmão ou amante – pessoa agradável, que ama”). A partir do Século XVI, o termo passou a se referir à “pessoa ameaçadora e barulhenta” e, mais à frente, referindo-se à “pessoa que ameaça ou constrange os mais fracos”. Ambos se relacionam a tipos de comportamentos intencionais (deliberados, propositados), de hostilidade, praticados por pessoas/grupos, para prejudicar outros, sendo mais comum entre jovens e adolescentes e jovens, mas visualizado entre adultos, inclusive os de idade mais avançada.

Vale salientar a adaptação fácil do bullying tradicional, comum em escolas de qualquer nível de ensino (básico ao superior), ao ambiente virtual, como cyberbulling, e, aí, seu espectro deixa de ser exclusivo dos ambientes que envolvem estudantes. O locus (virtual) proporciona uma sensação de maior liberdade e a exacerbação dos comportamentos e emoções, distanciando-se, pela “proteção” das telas, da costumeira e tradicional inibição de muitos, em ambientes presenciais.

Como o chamado trânsito cibernético possui baixo controle social, a variabilidade de tempo de interações virtuais (ambientes, plataformas, ferramentas ou redes) potencializa os casos de bullying. Nas redes sociais, nos aplicativos e em jogos em rede, online, muitas crianças, adolescentes e jovens interagem com conhecidos/desconhecidos, diariamente e por horas e esse contato online “facilita” a manifestação dos sujeitos, e acaba sendo um ambiente propício para ataques de todos os níveis.

Muitos equivocadamente acreditam ser seguro o espaço virtual é seguro, sobretudo na visão dos agressores, já que existe a possibilidade de serem apagados posts, comentários, vídeos e memes. Mas isso não é de todo verdadeiro, pela possibilidade de recuperação com o uso de sistemas específicos e a intimação dos “hospedeiros” (sites, blogs, programas ou aplicativos), para que forneçam informações e recuperem dados, sendo, portanto, quase impossível que esteja apagado o que foi virtualmente publicado.

Outra questão é o “anonimato”, com a utilização de perfis fakes ou sem identificação, sem a utilização de identidades ou fotos reais nas contas, que gera a falsa ideia de proteção e não culpabilidade. Mesmo nesses perfis, plataformas, sites e redes sociais possuem elementos suficientes para a identificação do usuário, na maioria dos casos.

Um abuso nas redes também precisa ser avaliado em relação à potencial ou real dimensão da audiência envolvida, em face da disseminação em larga e, por vezes, altíssima escala, especialmente se as postagens “viralizarem”, com replicação “ao infinito”, nem sempre quantificada em termos de alcance total e, neste caso, poderá haver a cumplicidade em relação ao autor original. Esta repetição, inclusive, gera o dano repetido, pois prejudica diversas e sequenciais vezes a vítima.

No âmbito jurídico-legal, a mensuração da culpa e a delimitação do dano (material e moral) para as quantificações financeiras na condenação e outras penas são avaliadas a partir do manifesto desejo de praticar o ato e prejudicar outrem (intencionalidade), mediante provas da autoria, do crime e do real prejuízo à vítima.

Entre os típicos exemplos típicos de tais ações violentas/criminosas temos as ações de envio, recepção ou repasse de mensagens prejudiciais, a revelação de assuntos sigilosos baseados na confiança interpessoal, a difusão de informações que provoquem vergonha ou embaraço, ou, ainda, a veiculação de fotos (íntimas, sensuais, íntimas ou relacionadas a situações privativas de alguém), bem como atitudes de ameaça e perseguição.

Neste cenário, as situações podem desencadear impactos físicos, emocionais e/ou psicológicos, alcançando as vítimas e ou pessoas próximas, como familiares. Registra-se um conjunto de sentimentos de dor e sofrimento, raiva e humilhação, de violação e vulnerabilidade. Muitas pessoas, chegam a mudar de residência, cidade ou trabalho, em razão de não suportarem os efeitos danosos para suas vidas habituais.

O que começa no território das redes sociais pode continuar em espaços presenciais, quando, assim, a violência inicialmente digital acaba se tornando convivial, em consequências de ordem moral e física, podendo gerar diversos efeitos na saúde física e psíquica da vítima, resultando, inclusive, óbitos.

Preocupante é a circunstância de que jovens e adolescentes, desde tenra idade (e sem qualquer supervisão ou orientação), expõem, muitas vezes, suas identidades, localizações e costumes, em perfis públicos nos múltiplos contextos digitais atuais, em face das novas gerações terem destacada facilidade em operar equipamentos, tecnologias e sistemas, inclusive compartilhando informações e dados pessoais. E empresas de tecnologia e os donos das redes e plataformas também colaboram com a retroalimentação, atendendo públicos e demandas.

Então, como mensurar o impacto na saúde mental das crianças, adolescentes e jovens? No contexto clínico, registram-se sentimentos de humilhação, vergonha, inadequação, isolamento, aliados ao aumento dos níveis de ansiedade, exponencialmente. Também solidão, insegurança, timidez, baixa autoestima, medos e fobias, raiva e estresse. Os relatos dos pesquisados também alcança, em número significativo, o uso/abuso de álcool e drogas. Problemas psicossomáticos variados, assim como ansiedade e depressão, inclusive o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com ocorrências da ideação suicida e da tentativa ou consumação de suicídios também figuram presentes.

Muitas das vítimas acaba tendo receio de informar a seus pais, responsáveis ou especialistas educacionais que estão sofrendo o cyberbullying, porque podem ser tolhidos em sua liberdade de acessibilidade à internet, ou, ainda, no caso de pessoas próximas – como colegas de estudo, por exemplo – ficarem sujeitos a retaliações do agresso. Um número significativo de pessoas atingidas, também, acredita que tais adultos nada poderiam fazer em relação ao agente que lhe prejudica, nem podem alterar a situação vivida.

Estamos conscientes de que o assédio generalizado, materializado nas ocorrências de bullying e cyberbullying ultrapassou os limites físicos e psíquicos e se configura como um grande assédio energético e espiritual, já que a energia não está sujeita nem ao tempo nem ao espaço. O contato online, assim, alcança a psicosfera de todos, influenciando pensamentos, sentimentos e comportamentos. Espaços que seriam de aproximação convivial, fraterna e de inclusão na interação, por aproximarem pessoas geograficamente distantes, para o compartilhamento de ideias e a troca salutar de experiências e desenvolvimento humano, em espaços democráticos, tem se tornado um prejudicial vespeiro.

Nosso país conta com avançada legislação a respeito, citando-se, por exemplo, as Leis Federais ns. 12.307/2012, 13.185/2015, 13.277/2016 e 14.811/2024, voltadas seja à instituição de um dia nacional de combate a tais práticas, seja para o acompanhamento e apoio psico-sócio-jurídico às vítimas (mas também aos seus agressores, em face de destacadas patologias), atuando, também, na capacitação de docentes e outros profissionais pedagógicos e da saúde, pais e familiares, alcançando ainda ações dentro da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros: a) observação do comportamento dos discentes, para alerta e orientação em relação ao uso e aos abusos da tecnologia, previamente às agressões, realizando ações preventivas; b) promoção de ações de atenção às vítimas, concomitante ou posteriormente, de acolhimento incentivando as denúncias, conjunturalmente nas instituições de ensino; c) inclusão de pais, familiares e a comunidade correlata, de forma permanente, em colaboração às ações preventivas, repressivas e de esclarecimento.

Outrossim, como esta realidade deve ser um mote de preocupação e ação dos governos, é primordial o envolvimento de setores especializados (Administração, Jurídico, Educação, Assistência Social e Saúde, por exemplo) em projetos específicos voltados à conscientização das comunidades das nossas cidades, ao combate de práticas nocivas e de apoio integral às vítimas, mas também aos agressores, já que estes são portadores de enfermidades ou patologias.

Neste tempo de permanentes lutas contra retrocessos e barbáries de toda a sorte e de afirmação democrática, ações efetivas que contemplem a discussão da temática e estejam orientadas à prevenção, à orientação e à solução dos problemas reais da nossa sociedade são fundamentais.

Não por outra razão trouxemos o pensamento de Bauman na abertura deste artigo: é imperioso universalizar o princípio do respeito às diferenças (as estranhezas de que fala o autor), ampliando-se a convivência pacífica e inclusiva, como característica essencial da civilidade contemporânea.

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Os autores: Elusiane Prinz é Terapeuta Sistêmica, graduanda em Psicologia (UNISUL/SC). Marcelo Henrique é advogado e administrador, ambos pela UFSC, tendo cursado Mestrado em Ciência Jurídica (UNIVALI/SC), Doutorado em Direito (Universidade Católica de Santa Fé – Argentina) e está cursando Doutorado em Administração (UFSC).

A tragédia gaúcha e a arte de cegar causas e soluções por meio de desinformação e fake news. Artigo de Daniel Lemos Jeziorny

 

Quanto mais se publica sobre este novo desastre, mais se esconde o essencial: o colapso do clima pode ser evitado; basta nos livrarmos do sistema que o produz. Para que isso permaneça ofuscado, os noticiários nos inundam de banalidades

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Vamos colocar tudo na mesa já de saída,
sem meias palavras.
No que diz respeito à crise climática,
sim, chegou a hora de entrarmos em pânico.

(Raymond Pierrehumbert, 2018)

As palavras da epígrafe acima foram originalmente redigidas por um professor de física da Universidade de Oxford, Reino Unido, principal autor do relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) de 2018. Desafortunadamente, não se trata de mero recurso retórico para chamar a atenção para um problema que muitos julgam – ou julgavam – apenas lateral. A humanidade se depara com uma ameaça real, concreta, que talvez pela primeira vez a coloque diante de uma encruzilhada na qual não possa garantir que o futuro será melhor que o presente. A despeito da recalcitrância de teorias conspiratórias e dos escusos interesses de grupos econômicos e negacionistas, há muito a ciência alerta ao agravamento das variáveis que influenciam o aquecimento global, tais como a emissão de gases de efeito estufa, a diminuição da permafrost, a acidificação dos oceanos e o desmatamento de florestas e outros biomas ao redor do planeta. A verdade é que, quanto ao devir da civilização humana no Sistema Terra, projeções de coletivos científicos são cada vez mais sombrias.

Poucos meses após a passagem de um ciclone extratropical que trouxe devastação, prejuízos materiais incalculáveis e mortes ao Rio Grande do Sul, enchentes ainda maiores voltam a castigar a população do estado. Em praticamente todos os telejornais, comentaristas e especialistas afirmam que é necessário se acostumar com um drama que não é exclusivo dos riograndenses, mas experimentado por cada vez mais pessoas ao redor do planeta. Diz-se que é o “novo normal” do mundo em que vivemos, um processo irreversível, resultante das mudanças climáticas em curso. Ao que parece – talvez não pelo caminho mais difícil, mas certamente pelo mais doloroso – depois de muito tempo tentando-se tapar o sol com a peneira do negacionismo, a emergência climática passa a preocupar formadores de opinião pública no Brasil. Mas não apenas estes, haja vista que, além das pessoas que tiveram suas vidas devastadas pelas tragédias climáticas, o tema consterna as que conseguem sentir alguma empatia pela dor alheia ou simplesmente guardam um mínimo de bom senso diante dos fatos.

Contudo, há uma pergunta que parece se evitar a qualquer custo a resposta, a saber: quais as causas de fundo dessa emergência climática que traz prejuízos, desesperança e sofrimento em grande escala? Seguramente muitos responderiam que a causa, em si, é o aquecimento global. É sem dúvida uma resposta atenta ao movimento da realidade concreta tal como a percebemos ou sentimos na carne; mas tampouco alcança a raiz do problema. Afinal de contas, secas cada vez mais longas, enchentes cada vez mais frequentes, ciclones cada vez mais recorrentes, além de acidificação de oceanos e acúmulo de gases de efeito estufa são menos causa do que efeitos do alargamento daquilo que se entende por falha metabólica – ou seja, expressões concretas da disjunção crescente entre o modo de produção e o Sistema Terra. Embora aparentemente rebuscado, esse raciocínio não é difícil de se apreender, especialmente quando se tem em conta que o modo de produção capitalista é um sistema que não se desenvolve no vácuo, mas através do tempo-espaço que reordena em função da lógica do capital. E esta lógica é expansiva e acelerante, visto que comandada pela acumulação capitalista e busca do lucro, em condições de concorrência mercantil. O ato de explorar um espaço finito – como a Terra – a partir de um sistema cada vez mais expansivo choca-se com um limite biofísico; daí as secas, as inundações, os ciclones cada vez mais recorrentes… Como se vê, no fundo, a resposta é outra.

Note-se, por exemplo, o que tem ocorrido desde a década de 1950. As transformações transformações socioeconômicas aceleram-se de forma estonteante. No entanto, no que toca ao metabolismo humanidade/natureza, esse mundo que ganhou impulso com os 30 anos gloriosos do capitalismo e hoje se concretiza repleto de sofisticadas máquinas e inteligência artificial traz consigo implicações preocupantes. Os gráficos abaixo ilustram algumas manifestações concretas da tendência acelerante do sistema capitalista, que ganharam impulso substantivo a partir dos anos 1950 – em consonância com a própria escala sistêmica.

Fonte: Will Steffen et al (2014)

É verdade que o século XX produziu uma explosão demográfica sem precedentes, em especial a partir dos anos 1950. De 3 bilhões, chegamos a cerca de 7 bilhões de seres humanos em meio século, em sua maioria nos espaços urbanos, o que contribui ainda mais à fratura metabólica em curso e implica numa utilização cada vez maior de fertilizantes. Em 1950, a utilização destes era menor que 10 milhões de toneladas; mas ela salta para 200 milhões de toneladas ainda nos anos 2000. O número de veículos automotores também explode nesse meio século: de aproximadamente 200 milhões em 1950, chega-se a cerca de 1 bilhão e 500 milhões em 2000. Nessa toada, conforme ilustram as figuras acima, exacerbam-se também as emissões de CO² e de NO², gases que provocam o efeito estufa.

A grande aceleração das atividades antrópicas ajuda a compreender que a humanidade tornou-se uma força geológica em escala planetária, especialmente a partir de 1950. Do pós-Segunda Guerra até meados dos anos 1970, o sistema capitalista experimentou seus melhores resultados. Quiçá ameaçado pela possibilidade concreta de um modelo alternativo, o sistema capitalista foi impulsionado pela ação decisiva dos Estados, que conformaram, através de pactos tripartites (patronato, sindicatos e governos), os arranjos sociais-democratas de repasses de ganhos de produtividade aos salários e, com isso, garantias de renda, demanda e massas de lucro crescentes. Arranjo que estimulava os investimentos produtivos e o emprego através de um modelo de produção e circulação em massa de mercadorias, que, em conjunto com a reconstrução do aparato produtivo na Europa no pós-Segunda Guerra, engendrou um círculo virtuoso de três décadas de crescimento econômico acelerado, com alguma distribuição de renda nas principais economias. Mesmo que essa etapa do capitalismo tenha sido interrompida com “a virada conservadora” dos anos 1980, essa interrupção não foi acompanhada de uma reversão utilização maciça de combustíveis fósseis e degradação ecossistêmica.

Nessa linha, tragédias como a que estraçalha agora a vida de milhares de gaúchos e gaúchas são menos provocados pela “mãe natureza” e muito mais pela inconsequência de seres humanos que não renunciam a uma espécie de “American Way of Life” e à busca por massas de lucro cada vez maiores em atividades típicas do neoextrativismo — mesmo quando estas acarretam agressões irresponsáveis à natureza. Logo, para não seguirmos a tapar o sol com a peneira, é necessário não escamotear a verdadeira raiz do problema: na sociedade de produção e circulação de mercadorias – ou melhor, no capitalismo – a mola mestra da capacidade humana de transformar a natureza é a acumulação de capital, é ela que está no centro de nosso sistema de reprodução material. E isto significa que o processo pelo qual se obtêm os meios de subsistência e de reprodução da sociedade não é pura e simplesmente um processo produtivo, mas é também – e primordialmente – um processo capitalista. Isto é, um processo de valorização de uma determinada quantidade de valor que é posta em circulação para retornar acrescida ao ponto de onde partiu. O que remete a outro ponto fundamental à compreensão da dinâmica de nossa relação metabólica com a natureza: a aceleração. O sistema não é apenas expansível, ele também é acelerante. Na medida em que a acumulação de capital é a sua mola mestra, e ao passo que capitais que giram mais rapidamente tendem a valorizar-se mais e/ou mais velozmente do que aqueles que não o fazem, a própria concorrência intercapitalista conduz uma corrida pela introdução de inovações que reduzam o tempo de rotação dos capitais. No que toca a reprodução material do sistema, este movimento se consubstancia em tecnologias capazes de produzir mercadorias em períodos produtivos cada vez mais curtos. No entanto, como geralmente estas mercadorias possuem menor valor unitário em vista dos ganhos de produtividade do trabalho, a manutenção de grandes massas de lucro requer volumes cada vez maiores de produção, comercialização e consumo. Dessa forma, as lógicas crescente e acelerante do sistema tendem a se retroalimentar. Quanto maior a escala, maior a necessidade de aceleração – e maiores as repercussões negativas sobre os ecossistemas, que perdem sua capacidade de oferecer serviços ecossistêmicos essenciais, como o de regulação do clima.

Conforme aponta Luiz Marques, no intervalo de tempo de duas gerações – ou o tempo de uma única vida – a humanidade se tornou uma força geológica em escala planetária [daí a ideia de Antropoceno]. Basta ver que entre 1900 e 1930 a taxa média de elevação do nível do mar era de 0,6 mm por ano, que entre 2014 e 2017 essa taxa foi de 5mm por ano, mas que entre os anos de 2018 e 2019 a elevação foi de 6,1mm. Em apenas um século, a elevação do nível do mar decuplicou. E as projeções são de que, em 2040, as inundações que ocorrem em zonas costeiras uma vez por século podem ocorrer anualmente. Se hoje medimos a elevação do nível do mar em milímetros por ano, apenas pelo degelo da Antártida o nível dos oceanos pode subir dezenas de centímetros ainda neste século.

Evitar novas tragédias como a que se atravessa hoje no Rio Grande do Sul passa pelo reconhecimento das contradições da dinâmica da acumulação com as condições naturais de produção, ou seja, da lógica expansiva e acelerante da acumulação que não consegue harmonizar-se com a lógica da biosfera, um sistema de ecossistemas com funcionamento próprio e com dinâmica que não é nem crescente nem acelerante. De maneira geral, a acumulação capitalista tende a trazer sérios problemas na relação humanidade/natureza sempre que a velocidade de consumo de matéria e energia supera a velocidade de regeneração do sistema natural. Mas também quando a escala de dejetos da produção ultrapassa a capacidade que os diferentes ecossistemas possuem de assimilá-los. Estas são, a rigor, as principais vias pelas quais um sistema ecológico pode rumar à desorganização de sua estrutura e, com isto, ter sua mecânica alterada e/ou comprometida em virtude de ações humanas. É neste quadro que se costuma falar em metabolismo ecossistêmico, ou seja, no funcionamento próprio de um determinado ecossistema. É a interação dos elementos que compõem sua estrutura que resulta numa série de funções ecossistêmicas, tais como o sequestro de carbono da atmosfera e as regulações do clima e do ciclo da água.

Por isso, encontrar um caminho que nos afaste de tragédias ambientais exige reconhecer o óbvio: o ser humano não é senhor da natureza, mas parte desta; a Terra não é mera fonte de recursos naturais, mas uma rede de ecossistemas da qual depende o bom funcionamento da própria vida humana. Urge, mais do que nunca, assumir que catástrofes climáticas não são meros acidentes ou obstáculos de percurso, que não há saída tecnológica possível à emergência ecológica – a menos que se abandone o rumo que tomou a civilização humana, embalada por uma superacumulação de capital que se tornou um fim em si mesma e construiu o cenário trágico vivido em diversas porções do planeta – a exemplo do Rio Grande do Sul.

Se a degradação ambiental compromete o fornecimento de serviços ecossistêmicos indispensáveis aos seres humanos, a prevenção de futuras tragédias climáticas implica um corte na raiz do problema – ou seja, acabar com o totalitarismo do sistema que consome substrato material da vida. É possível que ainda haja tempo suficiente para se puxar o freio de emergência, antes que a fratura no metabolismo humanidade/natureza transforme a biosfera num ralo a sugar a espécie humana. O que de fato precisa ser discutido, então, não são meras soluções técnicas, ferramentas que arredem obstáculos de um rumo supostamente natural e inescapável, mas uma forma de se cambiar este rumo, de se construir um modelo civilizacional em que a vida esteja à frente da acumulação, não o contrário.

É nesse sentido que autores como John Bellamy Foster criticam a irrealidade e a irresponsabilidade de muitas das análises desenvolvidas no âmbito do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC). Os modelos que empregam têm o crescimento econômico como pedra angular; logo, a acumulação de capital tal qual santa no altar. Tais análises rebaixam sistematicamente a escala das transformações sociais necessárias e apostam todas as fichas no mesmo mecanismo que conduziu à emergência ecológica – ou seja, o mercado. Assim, ainda que possam acertar no diagnóstico (de que o crescimento econômico acelerado deixou de ser garantia contra as inseguranças do futuro, para se tornar a própria fonte destas inseguranças), tais análises se equivocam nas receitas prescritas, pois passam longe da raiz do problema.

Infelizmente, isto pouco surpreende, pois, como o próprio Foster reconhece, a abordagem do IPCC é ditada em grande medida pela política econômica hegemônica, orientada pelas necessidades de acumulação de grandes corporações transnacionais. Estas – como há muito alertou Milton Santos – tornaram-se o centro frouxo de um mundo desigual, em que a fábula da globalização da economia esconde a triste face do imperialismo. Uma massa gigantesca de recursos é movimentada para fabricar armas e guerras. Mata-se tranquilamente em nome da pilhagem das riquezas de povos que teimam em funcionar com outra lógica – ou de uma superacumulação ensandecida que provoca devastação ecossistêmica.

No exato momento em escrevo, mais de meio milhão de gaúchas e gaúchos são afetados por outra manifestação da falha metabólica em curso. Milhares dessas pessoas não têm a mínima ideia de para onde ir, depois de terem seu lares arrastados ou arrasados por mais uma enchente. Tragicamente, a situação não é muito diferente da que atravessam os milhões de refugiados ambientais em todo o mundo, pessoas que foram forçadas a deixar seus lugares em função de secas, inundações e outras expressões dessa mesma falha metabólica que marca a emergência climática que atravessamos. Para essas pessoas, o sistema calcado na superacumulação não vai desabar em sua relação com a natureza – pois já desabou. Não fechar os olhos a essa realidade é condição indispensável para vislumbrar uma saída do labirinto em que nos encontramos em nossa relação metabólica com a natureza da qual fazemos parte. Um labirinto repleto de tragédias ambientais e guerras, mas não menos por uma concentração material na qual o 1% mais rico da população se locupleta de uma riqueza seis vezes maior do que a de 90% das pessoas do mundo. Um labirinto civilizacional no qual cerca de 46% das pessoas vivem sem acesso a saneamento básico e dois bilhões (23% da população mundial) não dispõem de aceso a água potável. Um labirinto onde os seres humanos não se reconhecem a si mesmos como semelhantes, como partes da natureza e tampouco como integrantes de uma única força capaz de transformar a natureza e a si mesmos nessa transformação. Um labirinto em que a apropriação privada da riqueza coletiva brutaliza, consome energia vital e afasta o ser humano de sua essência, ao matar na raiz a sua criatividade. Um labirinto onde o Minotauro da fome se alimenta do sacrifício de uma vida humana a cada quatro segundos, e onde os que conseguem sobreviver – e não mais do que isso – acreditam que as máquinas que aceleram a acumulação e a devastação ambiental são responsáveis pela riqueza produzida, mas não pela sucção de vida.

Para todos os efeitos, permito-me resgatar uma ideia do filósofo inglês Terry Eagleton, para quem a ideologia é igual a mau hálito – todos têm, mas só incomoda o alheio. Pois, somente com muito mau hálito, ou seja, com muita ideologia, é possível ver como a desenvolvida forma de sociedade humana um labirinto civilizacional que provoca tamanha aflição – ou drama.


Referências

DAILY H. Toward some operational principles of sustainable development, Ecological Economics, v.2, 1990, pp. 1-6.

EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2019

MARQUES, L. O decênio decisivo: proposta para uma política da sobrevivência. São Paulo: Elefante, 2023

JEZIORNY, D. L. “Metabolismo social e pandemias: alternativas ao vírus do crescimento autofágico” pp. 407-428 in Fressato, S. B. & Novoa, J. Soou ao alarme: a crise do capitalismo para além da pandemia. São Paulo: Perspectiva, 2020.

STEFFEN, Will; BROADGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen; LUDWIG, Cornelia. The Trajectory of the Anthropocene: the Great Acceleration. In: The Anthropocene Review, jan. 2014.