Jornal GGN - "É impossível olhar para trás e não pensar no passado que temos pela frente". É parafraseando Millôr que a filósofa Márcia Tiburi diz, em artigo pulicado na revista Cult, na quarta (28), que não basta lamentar os retrocessos de 2016 e ansiar um ano novo melhor. É preciso exercitar algumas noções de humanização e compreender a importância das práticas políticas.
A uma sociedade que teve reações tímidas diantes de um golpe de Estado, ainda é preciso ensinar que se manter averso à política interessa àqueles que ganham com ela. Se a gente não fizer política, alguém fará pela gente.
Muitas pessoas se queixaram do ano de 2016. Apesar de muito leite derramado, foi um ano, sem dúvida, democrático, no sentido de muitas partilhas: PEC 55 para todos, neoliberalismo para todos, destruição da educação e da saúde pública para todos, aniquilação da democracia para todos, destruição da política para todos, miséria para todos, ódio e manipulação para todos. Claro que nesse computo geral não estão incluídos os que estão acima do povo, para quem Estado, Democracia e Direitos Fundamentais assegurados é bobagem, já que detém o Capital.
Quem tem o Capital (nacional e internacional) precisaria de democracia para quê mesmo?
Desculpem ironizar com coisas tão tristes, mas é impossível olhar para trás e não pensar no passado que temos pela frente, como dizia o Millôr, quando vemos que o projeto neoliberal avança com os saqueadores do Brasil cada vez mais animados em continuar. E o povo, mais que tonto, o povo incapaz de agir enquanto trabalha pelo menos 8 horas por dia (as mulheres 16), transporta-se de 2 a 4 horas para ir de casa ao trabalho (quando tem casa e tem trabalho) e fica na frente da televisão o resto do tempo esvaziando a cabeça…
De tudo o que se viveu em 2016, vale pensar que o resultado é um aprofundamento da crise política. Quem observa o funcionamento das instituições acredita cada vez menos nelas. Quem não tem tempo para isso, espera a morte chegar. Aliás, nada mais democrático do que a morte, essa sim, é para todos, mas também que demora mais para quem tem o Capital…
O aprofundamento da crise política é vivido pelas pessoas em geral como miséria e nojo da política. As pessoas preferem deixar a política de lado como se política fosse apenas uma questão partidária e institucional e como se isso não fosse uma grande questão a ser resolvida também coletivamente. Contudo, aqueles que estão decepcionados com política não imaginam como se espera isso deles. Enquanto uns se decepcionam, outros se aproveitam. Vejam todos esses políticos que fazendo a propaganda da não-política se elegeram nesse ano. Vejam quantos movimentos autoritários, conservadores e fascistóides cresceram (e também elegeram) seus bonecos de vodu político?
Talvez seja o tempo de criar consciência para o fato de que política é algo que amamos e odiamos. É o momento de perceber que política é algo que está aí, não apenas como uma coisa, ou uma instituição, mas como um contexto de relações. Que a política é vivida e experimentada consciente e inconscientemente. Como o inconsciente, a política é feita de camadas, de espaços, de níveis, de patamares, graus, como em andares de um prédio. Mas no sentido de uma construção universal, uma grande casa que, como cidade, como país, como planeta, nos abriga. Ninguém escapa da política. Quem está fora de um dos seus níveis, está, inevitavelmente, dentro de outro. Quando se trata de política quem é outsider por um lado é integrado, mesmo que não queira, por outro. Para deixar de ser político, cada cidadão teria que ir para outro planeta e, mesmo assim, sua fuga ainda seria política. Em palavras simples: ou você faz sua política ou os outros farão por você. Melhor então, ir estudar, pesquisar, conversar e ver como funciona para aprender a agir com consciência política.
O “fim da política” que vem sendo absorvido em doses mais ou menos intensas, mas sempre socialmente venenosas, já há bastante tempo, não deixa de ser uma questão política. A política continua na forma de um vazio para muita gente que, sem saber, está envolto nela, mas negando-a por reduzi-la, muitas vezes, à política partidária e institucional, a política dos poderes estabelecidos.Há quem esqueça que o todo da vida é político.
Por um lado, sabemos que política é o todo da vida enquanto não se vive a vida humana como indivíduo ou espécie sem que estejamos relacionados uns aos outros e, inevitavelmente, às instituições. Política é, portanto, a própria ordem e as formas como ela se renova ou se repete. Mesmo aquela ordem que se apresenta como uma espécie de “antipolítica”, quando as relações estão esfaceladas, é política. Todas as relações se dão a partir de jogos de poder nos mais diversos sentidos que essa palavra é capaz de assumir. Política também é isso. Ainda que se possa recortar de um campo específico dos poderes executivo, legislativo e judiciário organizando o Estado, e que se possa pensar a política como esfera sistemática das decisões em nível institucional, sabemos que a política está em tudo o que fazemos, que cada ato, que cada gesto, que cada desejo é atravessado por algo de político. Mais que tudo, sabemos que a nossa própria condição humana, aquele lugar onde nos definimos como espécie, é política.
Hoje quando muitos se queixam da perda do caráter humano da nossa espécie (e vamos usar essa palavra sem questioná-la imediatamente), quando tantos apelam para que nos tornemos “mais humanos”, quando se espera a “humanização”, quando se lastima a “desumanidade” que atinge as sociedades, o que se diz esperando um comportamento mais ético para com todo mundo, devemos saber que só nos tornamos “mais humanos” à medida que nos tornamos mais políticos no sentido de seres cientes das relações de poder – que muitas vezes se tornam violentas – e que, por isso, contrapõem direitos a essas relações de poder e violência como forma de sustentação da convivência que é o elemento mais simples da condição política da espécie humana.
A ideia de “humanidade” que ainda interessa a muita gente, define-se na proporção direta dos direitos fundamentais dos indivíduos e dos povos desde que eles possam existir e coabitar um mesmo mundo e, neste sentido, partilhando condições criadas coletivamente. Que 2017 nos traga esse mínimo de consciência. O desafio não é pequeno.
O ano de 2016 se aproxima do fim e é importante lembrar do papel da imprensa no golpe e na subsequente draga econômica e institucional em que nos metemos.
Cheios de amor e de esperança, querendo agradar seus patrões a todo custo, jornalistas fizeram previsões furadas e propaganda, baseados no mais puro wishful thinking e, eventualmente, canalhice.
A ideia era vender a ideia de o golpe não era golpe e que a destituição de Dilma “ia tirar o Brasil do buraco”, tese consagrada por Eliane Cantanhêde, uma espécie de porta voz terceirizada de Temer.
Em abril, numa entrevista a uma rádio, ela disse seguinte: “Conversei com o Michel Temer nessa semana. Ele está muito seguro e muito sereno. Fala que está pronto para assumir a responsabilidade, que é tirar o país do buraco. O Michel Temer, por ter mais gás, parece ter chances de conseguir”.
Confira uma seleção de 12 promessas que a mídia fez e os midiotas acreditaram.
1. O pior que não ficou no retrovisor
Míriam Leitão publicou em 16 de julho a coluna “O pior pelo retrovisor”, no Globo. Num tom otimista, traçava um panorama da economia brasileira baseado apenas na valorização dos papéis da Petrobras e na alta das bolsas de valores.
E acrescentava: “O resultado reflete a percepção de algumas melhoras, inclusive regulatórias, na economia e a avaliação de que a recessão está perdendo força, apesar de estar claro que não haverá a volta rápida do crescimento”.
As contas do governo Temer tiveram um déficit de R$ 38,4 bilhões em novembro, o pior resultado para o mês desde 1997. No mesmo mês do ano passado, com o governo sob Dilma, o saldo negativo foi de R$ 21,2 bilhões. Parece que o pior da economia está longe de sair do retrovisor, seja dos investidores ou dos cidadãos comuns.
2.“Pior que tá, não fica”
Em maio de 2016, quando o impeachment caminhava para minar o poder de Dilma Rousseff, Eliane Cantanhêde publicou várias colunas no Estadão dizendo que é “pior sem ele”.
No mês de dezembro, o Datafolha divulgou que 58% das pessoas consideram Michel Temer pior do que Dilma. Parece que ficou pior do que estava.
3. Previsão de crescimento de 1% que sumiu
Uma reportagem do site da Exame de setembro apontou que a economia sob Michel Temer poderia crescer 1% em 2016. A previsão foi traçada pela consultoria em negócios internacionais e políticas públicas Prospectiva, levando em conta até mesmo a Lava Jato.
O chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Tulio Maciel, afirmou em dezembro deste ano que a previsão para 2016 é de recessão de 3%, com queda na oferta de crédito bancário. Parece que as consultorias de estimação estão perdendo crédito em suas análises em menos de seis meses.
4. “Golpe contra o impeachment”
Antes de ficar famoso nacionalmente por perguntar a Temer como ele conheceu a mulher numa farsa no “Roda Viva”, Noblat escreveu um artigo bonito acusando um “golpe contra o impeachment”.
O texto faz denúncias de uma compra de votos contra o afastamento de Dilma Rousseff — para variar, sem apresentar provas. Teriam ocorridos pixulecos de R$ 1 milhão por voto “não” e R$ 400 mil pelas ausências.
Parece que o golpe contra o golpe não se concretizou. Noblat nunca explicou como é que essa operação milionária fracassou.
5. “Interrupções presidenciais têm impacto positivo”
Merval Pereira falou no dia 17 de janeiro de um estudo de um economista chamado Reinaldo Gonçalves, da UFRJ. O especialista tentava provar que o impeachment de Dilma poderia ser positivo.
Segundo o texto reforçado por Merval, o impedimento reverteria a recessão em 2017 e impulsionaria a economia em 2018.
Nenhum dos sinais dessas medidas com “impactos positivos” foram vistos com Michel no poder. Merval Pereira aproveitou a coluna para alfinetar advogados que criticaram a Operação Lava Jato. Nunca mais citou o tal Reinaldo.
6. Cunha “não tem nada a ver com o impeachment”
Merval também dá suas cacetadas no Jornal das 10 da GloboNews. No dia 13 de dezembro de 2015, ele soltou no programa que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não tinha relação com o golpe. Um santo.
“Eduardo Cunha não tem nada a ver com o impeachment. O Eduardo Cunha foi o presidente da Câmara que aceitou, viu que tecnicamente havia condições de aceitar aquele processo, aquele pedido. Então ele não tem nada a ver com isso, quem vai decidir mesmo é o plenário da Câmara”.
Merval jogou a responsabilidade num Congresso que tem maioria com pendências na Justiça só para tentar livrar a cara de um processo conduzido por um notório corrupto. Em 2016, consumado o golpe, Cunha foi preso. Merval Pereira nunca mais tocou no assunto.
7. “Impeachment ou caos”
O economista Rodrigo Constantino, o amigo do Pateta que foi demitido da Veja e do Globo e hoje tem coluna na Istoé, publicou um artigo em abril com o título: “impeachment ou caos!”.
Era baseado em teses esplêndidas como a de que o presidente Temer faria um “governo suprapartidário” caso o golpe prosperasse, usando aspas do professor de filosofia Denis Rosenfield.
Para Constantino, o governo Temer seria um sucesso porque não teria vermelho em sua bandeira. O único golpe possível era o que o PT estava fazendo, seja lá o que isso signifique.
8. Golpe “cristalizado”
Quando o impeachment foi consumado, em setembro, Eliane Cantanhêde afirmou em texto que o governo Michel Temer sofre com protestos mas “termina em pé”. Comparou-o a Itamar Franco.
“A palavrinha mágica ‘golpe’ ajudou a cristalizar, talvez em milhões de pessoas, a percepção de que o impeachment de Dilma foi ilegal e ilegítimo, a ‘jornada de 12 horas’ ajuda a oposição a ratificar que Temer vai retroceder nos direitos e abandonar os pobres à própria sorte. Em vez de falar esse absurdo, o governo bem que poderia ter usado e abusado, a seu favor e a favor da verdade, dos resultados do Ideb, que configuram o fracasso da ‘pátria educadora’ de Dilma”, diz Eliane no jornal.
9. A “revolta armada” do PT que não existiu
O ex-presidente Lula publicou uma cartilha criticando os procedimentos da Operação Lava Jato. Na cabeça do colunista Reinaldo Azevedo, a carta afirmava que o PT ia optar por uma “revolta armada”, segundo sua coluna na Folha de S.Paulo em agosto.
Dilma, segundo Reinaldo, era a “Afastada”. “Que bom que a ópera petista chega ao último ato, com o próprio partido chamando os inimigos por seus respectivos nomes. É o PT quem me dá razão, não os que concordavam comigo”, diz ele, sem explicar como se daria a revolução do partido de Lula em curso.
10. O editorial que mais curtiu o impeachment
“Impeachment é o melhor caminho” é o editorial de apoio ao golpe mais explícito publicado na imprensa. Feito pelo mesmo time do Estado de S.Paulo que chamou o jornalista Glenn Greenwald de “ativista petista” e pediu sua expulsão do Brasil, o texto é rico em previsões furadas sobre o governo Temer já em abril de 2016.
As propostas de novas eleições “são fórmulas engenhosas para resolver um problema complicado. Pena que sejam todas, pelas mais variadas razões, impraticáveis”.
Hoje, a notícia é de que a maioria da população apoia eleições diretas segundo absolutamente todos os institutos de pesquisa.
11. “A saída da crise”, segundo Paulo Skaf
Nenhuma lista dessa natureza ficaria completa sem as revistas da Editora Três, aquela que concedeu a Temer o título de Brasileiro do Ano.
Em março, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, estava na capa da IstoÉ Dinheiro com a chamada “A reação dos empresários”.
“O impeachment de Dilma é a saída mais rápida da crise”, falou. A reportagem destacava a atuação dele para conseguir a adesão “de boa parte da classe empresarial, da indústria ao varejo”.
De acordo com Skaf, a “economia está indo mal por causa da crise política. Há confiança no Brasil, mas não há confiança no governo”.
Ah, sim: o industrial sem indústria é um dos citados na delação da Odebrecht.
12. As instituições funcionam
O Globo, que defendeu o golpe militar de 64 e só se desculpou 50 anos depois, defendeu o impeachment com unhas e dentes em vários editoriais.
Num deles em especial, de 30 de março, a família Marinho mandou ver: “Na estratégia de defesa e nas ações de agitação e propaganda de um PT e de uma presidente acuada no Planalto, a palavra ‘golpe’ ganha grande relevância”.
O impeachment de Dilma, fomos informados, “transita pelas instituições sem atropelos. Em 64 seria diferente”.
E finalizava: “Aceite quem quiser que políticas de supostos benefícios aos pobres podem justificar a roubalheira. Não num país com instituições republicanas sólidas”.
Pois é.
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Escritor, jornalista e blogueiro. Autor do projeto Geração Gamer, que cobre jogos digitais feitos no Brasil. Teve passagem pelo site da revista EXAME e pelo site TechTudo.
Este artigo, que acompanha o filme Karollyne, de Heloísa Passos, é o segundo e último da série, publicada originalmente em 2015.Aprimeira parte acompanha o filme Passarinho(“Birdie”).
A APROXIMADAMENTE SETE MINUTOS de carro da minha casa, descendo a estrada que corta a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, fica um acampamento em que moram diversas famílias desabrigadas. Como fica atrás de um muro, não é possível ver as barracas da rua. Mas o que quase sempre se nota ao passar de carro é um batalhão de cães nas mais variadas circunstâncias, brincando ou cochilando, em frente ao muro.
Ao longo dos anos, vi essa matilha inúmeras vezes. Sempre me intrigou o fato deles estarem obviamente bem alimentados e cuidados, embora evidentemente vivessem na rua. O número exato de cães também era um mistério. Era possível notar novos cachorros no grupo a cada vez que se passava pelo muro.
Como pude depois comprovar, as vidas por trás desse muro são incríveis. Além disso, são objeto central de Karollyne, a segunda parte do filme de Heloísa Passos para Field of Vision sobre desabrigados cariocas e seus cachorros. (A primeira parte, Passarinho, foi publicada na semana passada.) Em 2009, Karollyne, uma transexual negra, se mudou para essa construção decadente e abandonada. Ela convidou uma de suas amigas desabrigadas, outra mulher transexual, para morar na mesma casa. Desde então, elas conheceram homens que consideram serem seus maridos e lá moram com elas. Os dois casais agora receberam mais três amigos, formando uma família de sete pessoas muito unidas.
Assita a Karollyne, um filme sobre uma mulher que vive em uma mansão abandonada na Floresta da Tijuca, Rio de Janeiro, com um batalhão de cachorros.
Juntos, eles cuidam de 19 cachorros e 4 gatos. Todos os animais foram encontrados na rua, geralmente abandonados na floresta. Karollyne e seu grupo os trouxeram para casa ao encontrá-los sofrendo em diversos graus de agonia, fome, trauma e doença. “Não consigo ver um animal sofrendo, sabendo que posso ajudá-lo, e simplesmente dar as costas”, conta Karollyne. O fato de ser desabrigada e ter dificuldade em sobreviver com o pouco que tem não parece abalar sua crença em “poder ajudar” esses animais. “Sacrifico o que posso para ajudá-los e sei que ofereço uma vida confortável para eles”.
Ao visitar o alojamento, qualquer dúvida a respeito da afirmação acima é instantaneamente esclarecida. De fato, os animais são todos limpos e bem alimentados. Os cachorros têm amplo espaço para explorar, correr e brincar. Os gatos, sendo gatos, encontram pontos elevados para observar tudo de cima, descendo ao nível dos cachorros ocasionalmente para se socializar, mantendo a pompa de realeza ao desfilar entre seus súditos. O grupo é calmo e bem comportado, mesmo com a chegada de um estranho. Há diversos pratos cheios de comida de cachorro e gato, além de baldes transbordando com água fresca. Em lugar da carência e do caos esperados, há equilíbrio e uma evidente satisfação coletiva.
A vida de Karollyne foi marcada por um sofrimento constante e dificuldades inimagináveis: o abuso sexual durante a infância, a prisão durante a adolescência, o assédio por ser uma mulher transexual. Tudo isso aconteceu durante os anos em que morou nas ruas. Em vez de cultivar amargura e autopiedade, essas experiências criaram uma empatia extraordinária frente ao sofrimento de outros seres vivos. “Minha felicidade vem de cuidar de todos os animais que estejam sofrendo: cachorros, gatos, macacos”, disse Karollyne. “Tentamos alimentar e cuidar de todos eles aqui. É meu propósito na vida”.
O único momento em que Karollyne expressa raiva é quando fala de pessoas que abandonam os animais de que ela cuida com a ajuda da família. “Pessoas ricas vêm e largam seus cachorros aqui para morrerem de fome. Como alguém pode ser tão cruel?” Pessoas desabrigadas são habitualmente julgadas e condenadas pela mentalidade burguesa. Mas a outra face dessa dinâmica é surpreendente: um grupo de pessoas que não tem quase nada e que, literalmente, não sabe de onde virá sua próxima refeição, assume um compromisso violado por aqueles que têm tudo. “Não sei como eles conseguem dormir depois de fazerem isso”, ela questiona.
Quando visitei o acampamento para mostrar a versão final do filme, Karollyne, seu marido e um de seus amigos me encontraram ainda na rua e insistiram em me mostrar algo: o último cachorro que socorreram desde o fim das filmagens. Um poodle branco de aproximadamente um ano de idade tinha sido abandonado na floresta e foi encontrado por ele três semanas antes. “Quando o encontramos, ele estava quase morrendo: muito magro, cheio de pulgas, sem energia e com um olhar distante”, disse Karollyne. O cachorro brincalhão, enérgico, simpático e muito bem cuidado que eles me apresentaram é prova do carinho e atenção constantes dados ao cão desde que chegou à casa. Todos falavam como pais orgulhosos, contando de forma animada e detalhada sobre os amigos que o cachorro havia feito no grupo e as dificuldades que ainda encontra.
Como mostra o filme, o mundo construído por Karollyne e sua grande família é extraordinário em diversos aspectos. Além disso, revela um modelo extremamente promissor. Em muitas cidades, há projetos criados para ajudar desabrigados e projetos dedicados a animais abandonados. O acampamento por eles criado cumpre as duas funções ao mesmo tempo. Não apenas socorre animais, como oferece aos indivíduos marginalizados pela sociedade um trabalho gratificante e enriquecedor. Trabalhar neste artigo e no filme, bem como o abrigo informal de Karollyne, inspirou este conceito: abrigos de animais administrados por desabrigados que amem animais. A história de Karollyne deixa claro o potencial de um projeto como esse.
Segue o texto de Wilson Roberto Vieira Ferreira, publicado no Cinegnose, sobre um seriado da Netflix baseado distantemente nas EQMs- Exeperiências de Quase Morte (obs: neste seriado as EQMs servem de pretexto para uma história fantasiosa. As experiências de Quase Morte apresentadas estão longe do padrão das EQMs registradas em todo o mundo, desde o trabalho pioneiro de Raymond Mood Jr, Elizabeht Kübler-Ross, Kenneth Ring e outros).
Desde “ET” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” Spielberg transformou os subúrbios de classe média dos EUA, com suas bikes BMX e jovens aventureiros, em ícones da cultura pop, revividos de forma retro em séries atuais como “Strange Things”. Na série Netflix “The OA” (2016) esses ícones são retomados, porém de forma sombria: casas com famílias cada vez mais vazias que tentam manter à força a coesão. Até surgir uma jovem que ficou desaparecida por sete anos e mudar a vida de um grupo de inadaptados àquela comunidade suburbana. Uma protagonista que sobreviveu a sucessivas Experiências de Quase Morte (EQM) feitas por um cientista obcecado em provar cientificamente a existência pós-morte. Mas por algum motivo ela pretende retornar àquele pesadelo científico para recuperar alguma coisa de natureza espiritual que lhe foi roubada. A série “The OA” é mais um exemplo de como o Netflix vem arriscando em temáticas estranhas e gnósticas narradas em linguagens pouco convencionais.
A plataforma de filmes e séries em streaming Netflix cada vez mais demonstra que pretende apostar na ousadia. Além do seu fundador Reed Hastings ter se antecipado ao perceber em 2007 que o negócio de aluguéis de DVDs estava fadado ao fracasso diante da ascensão do streaming, seus executivos cada vez mais arriscam exclusividade com produções próprias.
O que diminui a dependência com os estúdios de cinema mas, por outro lado, assume muitos riscos comerciais. Por isso as produções do Netflix têm se tornado uma área de produções surpreendentes: além de investir em séries com temáticas nacionais (como Narcos, 2015, e, para o próximo ano, outra baseada na polêmica brasileira da Operação Lava Jato) vem dando espaço para diretores e roteiristas independentes, apostando no estranho e formas narrativas pouco convencionais.
A série The OA é mais um exemplo das tacadas arriscadas do Netflix: produto de uma dupla independente de criadores bem peculiar – Brit Marling (que co-escreve e atua) enquanto Zal Batmanglij também escreve e dirige. A dupla esteve por trás de filmes de pouco sucesso como Sound of My Voice (2011, clique aqui) e The East (2013) – foram filmes inteligentes compostos de grande ideias que acabavam não sustentando nas resoluções finais. Filmes pretensiosos cujos criadores simplesmente não conseguiam dar conclusão a excelentes ganchos narrativos.
Marling e Batmanglij parecem sempre exigir que o espectador se infiltre em um mundo estrangeiro e estranho, com uma espécie de narrativa sempre claustrofóbica e incômoda. Em The OA não é diferente.
Percebemos que a série se ambienta em um mundo aparentemente familiar para nós – o mundo dos subúrbios de classes média norte-americanos (equivalente aqui no Brasil aos condomínios fechados) com jovens em suas bikes BMX e famílias cada vez mais vazias que forçam pais e filhos a se manterem coesos. Mas o olhar indie de Marlin e Batmanglij não busca a visão spielbergiana desses subúrbios (pais separados com filhos espertos e aventureiros) ou o viés retro dos anos 1970-80 como na série também Netflix Stranger Things.
The OA vai buscar nesses ambientes familiares tudo aquilo que pareça estranho e estrangeiro – famílias alternativas, jovens inadaptados, tribalizados, pessoas que se unem por terem experimentado Experiências de Quase Morte (EQM) e outras curiosidades de antropológicas.
E o que parece ser recorrente nas produções recentes que lidam com a inadaptação e o estranho: experiências espirituais ou religiosas repletas de elementos da mitologia gnóstica – talvez a mitologia que atualmente melhor expresse as perplexidades contemporâneas. A experiência de ser estrangeiro e inadaptado ao seu ambiente supostamente familiar como a fagulha que despertará experiências espirituais.
Além disso, The OA faz o espectador embarcar em uma experiência fílmica que apresenta um desprezo pela narrativa em episódios: o primeiro apresenta um prologo de 70 minutos antes dos créditos iniciais, para depois lançar a história real.
Aliás, a narrativa lembra bastantes aquelas bonequinhas russas (a “matriosca”, tão russa como a protagonista da série) ocas e colocadas uma dentro da outra – em OA acompanhamos uma espécie de narrativa em abismo na qual temos uma narrativa sobre o passado sendo contada no presente (que para o espectador está acontecendo em live-action ao longo dos episódios da série) mas que, ao final, (essa é a moral da história) percebemos que o drama dos inadaptados daquele subúrbio pode ser o drama das nossas próprias vidas.
A série
The OA abre com um vídeo feito pelo celular de uma transeunte que filma uma mulher loura que pula de uma ponte. A mulher sobrevive e descobrimos que chama-se Prairie Johnson (Brit Marling). Ela esteve desaparecida por sete anos. Quando deixou seus pais adotivos (Alice Krige e Scott Wilson)ela estava cega, mas agora pode enxergar.
Repórteres cercam a família e a mídia começa a chama-la de “o milagre de Michigan”. Todos querem saber o que aconteceu, onde esteve. Mas Prairie mantém-se calada sobre o que aconteceu naqueles anos todos e o porquê de estranhas cicatrizes nas suas costas.
A polícia e o FBI acreditam que ela vive uma neurose pós-traumática, o que faz os pais cercarem de cuidados, remédios e observação quando está reclusa em seu quarto. Mas tudo o que ela quer é um Wi-Fi e a senha para encontrar na Internet alguém chamado Homer.
Todos querem “curá-la”, mas Prairie é enfática: não se trata de cura, mas o início de uma descoberta. Estranhamente ela voltou para casa mas quer retornar para onde esteve desaparecida. São seus pais, seu quarto, sua casa, seu bairro, mas sente-se estrangeira ali.
Aos poucos, outros inadaptados vão se juntando ao redor dela: a menina transexual, o valentão cujos pais querem despachá-lo para um internato militar, uma professora solitária, um estudante latino filho de mãe solteira alcoólatra e um menino freak, drogado com um cabelo ao estilo Ramones.
Há alguma espécie de ligação entre essas pessoas tão díspares, lembrando o argumento da série Sense8 (2015) dos Wachowski – clique aqui.
Prairie os reúne toda noite no sótão de uma casa abandonada para relatar em episódios a sua verdadeira história daqueles sete anos. Mas ela precisa de algo mais deles: que compreendam sua jornada espiritual e aprendam com ela cinco movimentos – uma espécie de dança com alusões gestuais a ioga, viagens em buracos de minhoca, abertura de portais dimensionais etc. A fixação de Prairie é, através desse portal aberto, retornar a esse lugar que esteve.
Mas o que intrigará o espectador é que esse lugar não é nada bonito. Prairie era uma menina russa que viveu uma EQM muito cedo e retornou cega e com estranhos sonhos premonitórios. De repente tornou-se órfã aos cuidados de uma tia irresponsável nos EUA que a vende para os seus pais adotivos.
Já adulta e obcecada em retornar para seu pai, que aparece sempre em seus sonhos, foge de casa até cair nas mãos de um cientista (Dr. Hunter Hap – Jason Isaacs) com uma obsessão: provar a existência da vida pós-morte estudando casos de EQM em um laboratório subterrâneo em uma mina abandonada em algum lugar remoto dos EUA.
Para Hunter, em todos os casos de retorno de EQM, as pessoas retornam com habilidades especiais (artísticas, musicais, cognitivas, premonitórias etc.). De onde trouxeram essas habilidades? É o que Hap quer entender, da maneira mais cruel possível: mantendo prisioneiros cinco “cobaias” humanas em seu laboratório, “matando-os” sucessivas vezes para tentar acompanhar suas EQM por um dispositivo eletrônico – por aproximação acompanhar o “som” emitido pelas partículas da alma fora do corpo.
Estrangeiros nesse mundo
Assim como os ouvintes da narrativa de Prairie em Michigan, as “cobaias” de Hap têm algo incomum: também a inadaptação existencial com esse mundo.
O mais emblemático é o gás que Hap obriga suas cobaias inalarem antes da EQM – um gás de esquecimento. Dessa forma, Hap terá as informações só para si, evitando que perca o controle da experiência por possíveis insubordinações.
Um argumento que lembra muito a série HBO Westworld (clique aqui) na qual os androides tem sucessivas mortes, para depois serem reparados nos laboratórios e retornar para suas “vidas” no parque temático como se nada tivesse ocorrido, garantindo a disciplina dos robôs.
Todos os elementos da mitologia gnóstica estão colocados em The OApara traduzir a própria condição humana: estranhamento, alienação, prisão e esquecimento.
Um cientista demiurgo que submete seus espécimes ao esquecimento para tentar arrancar deles um conhecimento que, se for apropriado pelos cinco prisioneiros, poderá libertá-los. Esse é o conhecimento (a gnose) que Prairie a duras penas conseguiu codificar em cinco movimentos que agora pretende repeti-lo com os jovens suburbanos para retornar por um portal dimensional e libertar seus amigos prisioneiros.
Por isso Hap corre contra o tempo: ele terá que compreender os cinco movimentos antes das “cobaias”, para conseguir a maior descoberta humana – a natureza da existência pós-morte.
O gás do esquecimento e o Wi-Fi
Esquecimento é a palavra-chave na série The OA. Do gás do sinistro laboratório de Hap aos tratamentos de cura pós-traumática que tanto o FBI (para arrancar informações) quanto os pais (para prendê-la à vida inautêntica daquele subúrbio) querem submeter a pobre Prairie está o elemento-chave do esquecimento: com o esquecimento dormimos para acordar como se tudo fosse um novo dia cheio de esperanças, escondendo a estrutura geral que nos aprisiona.
As mesmas formas de “cura” que os pais pretendem submeter os filhos inadaptados: o colégio militar para “curar” o valentão, a bolsa de estudos para fazer o filho escapar da mãe alcoólatra, a cura à trans-sexualidade da filha etc.
Uma das melhores coisas de The OA é a metáfora da senha e do Wi-Fi. Prairie reaparece depois de sete anos, em busca de uma conexão Wi-Fi e a senha. Uma interessante metáfora de busca da conexão espiritual que todos nós procuramos – ou pelo menos aqueles que sentem a relação de estranhamento com o mundo, assim como os protagonistas da série.
O hardware descoberto pelo desumano cientista (o dispositivo que permite sucessivas experiência controladas de EQM) é a conexão Wi-Fi e a dança dos cinco movimentos a senha.
Meta-narrativa - aviso de spoilers à frente
Ao longo dos oito episódios acompanhamos a busca de cada um desses movimentos e o desenvolvimento de uma linguagem de códigos que permite os cinco prisioneiros no laboratório de Hap protegerem o conhecimento secreto do cientista-demiurgo louco.
Embora a crítica tenha ridicularizado a inserção repentina no meio da série dessa “dança” e gestuais como um elemento arbitrário enfiado no roteiro (um “deus ex-machina” - termo usado para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos.), principalmente no episódio final, passa a ter sentido nesse argumento dos criadores em criar uma ligação entre o tecnológico e o espiritual.
Porém, o mais instigante é a meta-narrativa proposta por The OA: assim como as cinco almas perturbadas que acompanham a narrativa de Prairie a cada noite, nós espectadores também criamos uma relação empática com aquela narrativa. Aqueles cinco jovens “freaks” na verdade somos nós acompanhando cada um dos episódios da série.
A dupla de criadores Marling e Batmanglij parece querer nos lembrar que também nós espectadores podemos estar vivendo em nossas vidas uma situação análoga a dos prisioneiros da série – as cobaias humanas e os inadaptados suburbanos. Todos nós respirando em pequenas doses o gás do esquecimento e acordando cada dia como fosse um novo dia, apesar da estranha sensação de estrangeiros em uma terra estranha.
E como o leitor perceberá, a série termina de forma ambígua não só para dar continuidade na segunda temporada - terminamos em dúvida se toda a história contada por Prairie foi real ou o resultado de uma mente bem inventiva alimentada pela leitura de livros como Os Oligarcas (sobre a elite russa), Enciclopédia de EQM ouOdisséia de Homero, encontrados no seu quarto.
Novamente, a série lança mão da meta-narrativa: a Hipótese dos Muitos Mundos criada pela interpretação da Física Quântica (a experiência pós-morte correspondente a criação de uma pluralidade de mundos) se equivale a possibilidade das múltiplas interpretações que o espectador poderá fazer sobre Praire.
A mesma estratégia narrativa que também o filme Sound of My Voiceutilizou no seu final em 2011.
Ficha Técnica
Título: OA (série)
Direção: Zal Batmanglij
Roteiro:Brit Marling, Zal Batmanglij
Elenco: Brit Marling, Jason Isaacs, Scott Wilson, Alice Krige, Patrick Gibson, Brendan Meyer, Phyllis Smith