Segue
interessante e atualíssimo texto do jornalista internacional e teólogo Chris
Hedges sobre o avanço do fundamentalismo pentecostal e seus traços fascistas
EUA: O fascismo cristão está cada vez mais
forte
por Chris Hedges (*)
Dezenas de milhões de cidadãos
estadunidenses, reunidos em um movimento difuso e aparentemente rebelde conhecido como a
direita cristã, começam a desmantelar o rigor científico e intelectual do
Iluminismo. Eles estão a criar um Estado teocrático, baseado na lei bíblica, e
buscam aniquilar a todos aqueles que definem como inimigos. Esse movimento, que
vai cada vez mais se aproximando ao fascismo tradicional, procura forçar um
mundo recalcitrante e submisso ante uma América imperial. Ele defende a
erradicação dos “desviantes sociais”, a começar pelos homossexuais, e avança
sobre os imigrantes, os humanistas seculares, feministas, judeus, muçulmanos e
aqueles que rejeitam como "cristãos nominais", como são denominados
os fiéis que não aceitam a sua interpretação literalista, machista, pervertida e herética da Bíblia.
Os que se opõem a este movimento de massas são condenados por constituírem uma
ameaça à saúde e higiene do país e da família. Todos devem ser expurgados.
Os
seguidores das religiões desviantes, do judaísmo ao islamismo, deverão ser convertidos
ou reprimidos. Os meios de comunicação desviantes, as escolas públicas
desviantes, a desviante indústria do entretenimento, os desviantes governos e
judiciários seculares e humanistas e as igrejas desviantes serão enquadradas,
ou fechadas. Haverá uma promoção implacável de "valores cristãos",
que já ocorre nas cadeias de rádios e televisões cristãs e nas escolas cristãs,
com informações e fatos sendo substituídos por formas abertas de doutrinação. A
marcha em direção a essa terrível distopia já começou. Isso está acontecendo
nas ruas do Arizona, nos canais de notícias a cabo, nos comícios do Tea
Party, nas escolas públicas texanas, entre membros de milícias e no
interior de um Partido Republicano que está sendo açambarcado por estes
lunáticos.
Elizabeth
Dilling, que escreveu "The Red Network" (A Rede Vermelha) e
foi simpatizante do nazismo, é leitura recomendada por apresentadores de TV trash-talk como
Glenn Beck. Thomas Jefferson, que favoreceu a separação entre igreja e estado,
é ignorado nas escolas cristãs e em breve será ignorado nos livros das escolas
públicas do Texas. A direita cristã passou a saudar a contribuição
"significativa" da Confederação sulista [que reunia os estados
separatistas durante a Guerra Civil]. O senador Joseph McCarthy, que comandou a
caça às bruxas anticomunista na década de 1950, foi reabilitado, e o conflito
entre Israel e a Palestina é definido como parte da luta mundial contra o
terror islâmico. Leis semelhantes às recém-aprovadas Jim Crow [conjunto
de leis que definiam a segregação racial nos EUA] do Arizona estão em discussão
em 17 outros estados do país.
A
ascensão do fascismo cristão, que temos ignorado por nossa conta e risco, é
alimentada por uma classe dirigente liberal[1] ineficaz e falida, que tem se
mostrado incapaz de reverter o desemprego crescente, proteger-nos dos
especuladores da Wall Street, ou salvar a nossa desafortunada classe trabalhadora
das retomadas de casas hipotecadas, da falência pessoal e da miséria. A classe
dirigente revelou-se inútil na luta contra o maior desastre ambiental da nossa
história, incapaz de encerrar caras e inúteis guerras imperiais ou de parar a
pilhagem do país por suas empresas. A covardia dessa classe dirigente e os
valores que ela representa acabaram por se tornar injuriados e odiados.
Os
democratas se recusaram a revogar as graves violações ao direito internacional
e nacional transformadas em lei pela administração Bush. Isto significa que,
quando o fascismo cristão ascender ao poder, terá à disposição as ferramentas
legais para espionar, capturar, negar habeas corpus e torturar
ou assassinar cidadãos estadunidenses, como faz o governo Obama.
As
pessoas que vivem no mundo real muitas vezes imaginam que essa massa de
descontentes é constituída por bufões e imbecis. Eles não levam a sério aqueles
que, como Beck, cultivam seus desejos primitivos de vingança, nova glória e de
renovação moral. Os críticos do movimento continuam a empregar as ferramentas
da razão, da pesquisa e dos fatos para contestar os absurdos propagados pelos
criacionistas, que crêem que boiarão pelados no céu quando Jesus retornar à
Terra. O pensamento mágico, a interpretação flagrantemente distorcida da
Bíblia, as contradições abundantes em seu conjunto de crenças e a pseudociência
ridícula são, no entanto, impermeáveis à razão. Não podemos convencer aqueles
que se engajam nesse movimento a despertar. Nós é que estamos a dormir.
Aqueles
que abraçam este movimento veem a vida como uma batalha épica contra as forças
do mal e do satanismo. O mundo é em preto-e-branco. Eles precisam ver-se, mesmo
que imaginariamente, como vítimas cercadas por bandos sombrios e sinistros
empenhados na sua destruição. Eles precisam crer que conhecem a vontade de Deus
e podem cumpri-la, principalmente através da violência. Eles precisam
santificar sua raiva, uma raiva que está no cerne da ideologia. Eles buscam a
dominação cultural e política total. Eles estão usando o espaço que a sociedade
lhes oferece para destruí-la. Estes movimentos trabalham dentro das regras
estritas do Estado secular porque não têm escolha. A intolerância que promovem
é suavizada em público por seus operadores mais sagazes. Uma vez que reúnam
energia suficiente, e eles estão a trabalhar duramente para obtê-la, tal
cooperação desaparecerá. Em seus templos, fica evidente a ideia de construção
de uma nação cristã baseada em controle total sobre os indivíduos e na recusa a
permitir que qualquer dissidência se manifeste explicitamente. Estes pastores
criaram, dentro de suas igrejas, pequenos feudos despóticos, e buscam replicar
essas pequenas tiranias em uma escala maior.
Muitas
dessas dezenas de milhões de pessoas que hoje se encontram na direita cristã
vivem no limite da pobreza. A Bíblia, interpretada por pastores cuja conexão
direta com Deus os coloca à prova de questionamentos, é o seu manual para a
vida diária. A rigidez e simplicidade de suas crenças são armas potentes na
luta contra seus próprios demônios e no combate diário pela sobrevivência. O
mundo real, no qual Satanás, os milagres, o destino, os anjos e a magia não
existem, golpeia-os como a troncos de árvore em um rio. Leva seus empregos e
destroi o seu futuro. Este mundo apodreceu as suas comunidades e inundou as
suas vidas com álcool, drogas, violência física, privação e desespero. E então
eles descobriram que Deus tem um plano para eles. Deus vai salvá-los. Deus
intervirá em suas vidas para promovê-los e protegê-los. A distância emocional
que separa o mundo real do mundo da fantasia cristã é imensa. E as forças
seculares e racionais, aquelas que falam a língua dos fatos e dados, são
odiadas e temidas, em última instância, porque puxam os fiéis de volta para a
“cultura da morte” que quase os destruiu.
Há
contradições selvagens neste sistema de crenças. A independência pessoal é
exaltada ao lado de uma subserviência abjeta aos líderes que afirmam falar por
Deus. O movimento diz que defende a santidade de vida e defende a pena de
morte, o militarismo, a “guerra justa” e o genocídio. Ele fala de amor e
promove o medo da condenação e o ódio. Há uma dissonância cognitiva
aterrorizante em cada palavra que proferem.
O
movimento é, para muitos, um salva-vidas emocional. É tudo o que os une. Mas a
ideologia, que rege e ordena suas vidas, é impiedosa. Aqueles que dela se
desviam, como "apóstatas" que deixam as organizações da igreja, são
marcados como heréticos e submetidos a pequenas inquisições, que surgem como
conseqüência natural de movimentos messiânicos. Se o fascismo cristão vier a
conquistar os poderes republicanos, as pequenas inquisições pouco a pouco se
tornarão grandes.
O
culto da masculinidade permeia o movimento. Os crentes são levados a pensar que
o feminismo e homossexualidade tornaram o homem estadunidense física e
espiritualmente impotente. Jesus, para a direita cristã, é um vigoroso homem de
ação, que expulsa demônios, luta contra o Anticristo, ataca hipócritas e
castiga os corruptos. Este culto da masculinidade, com sua glorificação da
violência, é profundamente atraente para aqueles que se sentem impotentes e
humilhados. Ele transmite a raiva que levou muitas pessoas para os braços do
movimento. Ele os incita a chicotear aqueles que, dizem, procuram destruí-los.
A paranóia sobre o mundo exterior é alimentada através de bizarras teorias da
conspiração, muitas delas defendidas em livros como o de Pat Robertson, “The
New World Order", uma tirada xenófoba que inclui ataques contra os
liberais e as instituições democráticas.
A
obsessão com a violência permeia os romances populares como o escrito por Tim
LaHaye e Jerry B. Jenkins. Em seu apocalíptico “Glorious Appearing”
(Glorioso Aparecimento), baseado na interpretação própria de LaHaye das
profecias bíblicas sobre o Segundo Advento, Cristo volta e estripa a carne de
milhões de não-crentes com o som de sua voz. Há descrições longas de horror e
sangue, de como “as palavras do Senhor haviam superaquecido seu sangue, fazendo
com que estourassem suas veias e pele. Olhos se desintegraram. Línguas
derreteram. A carne se dissolveu.” A série Left Behind (Deixados
para Trás), à qual pertence este romance, é a mais vendida para adultos no
país.
A
violência deve ser usada para purificar o mundo. Os fascistas cristãos são
chamados a um permanente estado de guerra. “Qualquer ensinamento de paz antes
do retorno [de Cristo] é uma heresia...” diz o televangelista James Robinson.
Os
desastres naturais, ataques terroristas, a instabilidade em Israel e até mesmo
as guerras no Iraque e no Afeganistão são vistos como indícios gloriosos. Os
fiéis insistem que a guerra no Iraque está prevista no nono capítulo do
Apocalipse, onde quatro anjos “que estão presos no grande rio Eufrates serão
libertados, para matar a terça parte dos homens.” A marcha é inevitável e
irreversível e exige que todos estejam prontos para lutar, matar e talvez
morrer. A guerra mundial, até mesmo nuclear, não é para ser temida, mas sim
celebrada como precursora do Segundo Advento. À frente dos exércitos vingadores
virá um bravo e violento Messias que condenará centenas de milhões de apóstatas
a uma morte terrível e horripilante.
A
direita cristã, enquanto abraça o primitivismo, procura legitimar suas
mitologias absurdas nos marcos do direito e da ciência. Seus membros o fazem, a
despeito de suas idéias retrógradas, porque se constituem em movimento
totalitário distintamente moderno. Eles tratam de cooptar os pilares do
Iluminismo, a fim de aboli-lo. O criacionismo, ou o “projeto inteligente”,
assim como a eugenia para os nazistas ou a “ciência” soviética de Stalin, deve
ser introduzido no mainstream como uma disciplina científica
válida – daí, portanto, a reescrita dos livros didáticos. A direita cristã
defende-se no jargão jurídico-científico da modernidade. Fatos e opiniões, a
partir do momento em que são utilizados “cientificamente” para apoiar o
irracional, tornam-se intercambiáveis. A realidade não é mais baseada na coleta
de fatos e provas, e sim, baseada em ideologia. Fatos são alterados. Mentiras
se tornam verdades. Hannah Arendt chamou a isso “relativismo niilista”, embora
uma definição mais adequada pudesse ser “insanidade coletiva”.
A
direita cristã tem, assim, o seu próprio corpo de “cientistas” criacionistas
que usam a linguagem da ciência para promover a anticiência. Ela lutou, com
sucesso, para ter seus livros criacionistas vendidos em livrarias como a do
parque nacional do Grand Canyon e ensinados nas escolas públicas de estados
como Texas, Louisiana e Arkansas. O criacionismo molda a visão de centenas de
milhares de estudantes nas escolas e faculdades cristãs. Esta pseudociência
alega ter provado que todas as espécies animais, ou pelo menos seus progenitores,
couberam na arca de Noé. Contesta as pesquisas sobre a AIDS e a prevenção da
gravidez. Ela corrompe e desacredita as disciplinas de biologia, astronomia,
geologia, paleontologia e física.
No
momento em que os criacionistas podem argumentar em pé de igualdade com
geólogos, afirmando que o Grand Canyon não foi criado há 6.000.000.000 de anos,
e sim há 6.000 pela grande enchente que ergueu a arca de Noé, estamos perdidos.
A aceitação da mitologia como uma alternativa legítima à realidade é um duro golpe
para o Estado racional e secular. A destruição dos sistemas de crença racional
e empiricamente fundamentados é essencial para a criação de todas as ideologias
totalitárias. A certeza, para aqueles que não podem lidar com as incertezas da
vida, é um dos apelos mais poderosos do movimento. A desapaixonada curiosidade
intelectual, com suas correções constantes e sua eterna procura de provas, é
uma ameaça às certezas. Por isso, a incerteza deve ser abolida.
“O
que convence as massas não são fatos”, Arendt escreveu nas “Origens do
Totalitarismo”, “nem sequer a invenção dos mesmos, mas apenas a coerência do
sistema de que presumivelmente fazem parte. A repetição, com sua importância um
pouco exagerada devido à crença difundida na capacidade inferior das massas de
compreender e lembrar, é importante porque as convence de que há uma
consistência ao longo do tempo”.
Santo
Agostinho definiu a graça do amor como Volo ut sis – Desejo
que sejas. Há – escreveu – uma afirmação do mistério do outro nas relações
baseadas no amor, uma afirmação de diferenças inexplicáveis e insondáveis. As
relações baseadas no amor reconhecem que os outros têm o direito à existência.
Essas relações aceitam a sacralidade da diferença. Esta aceitação significa que
nenhum indivíduo ou sistema de crenças apreende ou defende uma verdade
absoluta. Todos se esforçam, cada um à sua maneira, uns fora dos sistemas
religiosos e outros dentro deles, para interpretar o mistério e a
transcendência.
A sacralidade do outro é um anátema
para os cristãos de direita, que não reconhecem a legitimidade de outras formas
de ser e de pensar. Caso se reconheça que outros sistemas de crenças, inclusive
o ateísmo, têm uma validade moral, a infalibilidade da doutrina do movimento,
que constitui o seu principal apelo, é destruída. Não pode haver formas
alternativas de pensar ou de ser. Todas as alternativas devem ser esmagadas.
Debates
teológicos, ideológicos e políticos são inúteis com a direita cristã. Ela não
responde a um diálogo. É impermeável ao pensamento racional e à discussão. As
tentativas ingênuas de aplacar um movimento voltado à nossa destruição, através
de provas de que nós, também, temos "valores", só reforça a sua
legitimidade e a nossa própria fraqueza. Se não temos o direito de ser, se nossa
existência não é legítima aos olhos de Deus, não pode haver diálogo. A esta
altura, trata-se de uma luta pela sobrevivência.
As
pessoas arregimentadas para o fascismo cristão lutam desesperadamente para
sobreviver em um ambiente cada vez mais hostil aos seus olhos. Nós falhamos e
estamos em dívida para com eles e não o contrário: esta é sua resposta. As
perdas financeiras, o enfrentamento da violência doméstica e sexual, a luta
contra os vícios, a pobreza e o desespero que muitas delas têm de suportar são
trágicas, dolorosas e reais. Elas têm direito à sua raiva e alienação. Mas elas
também estão sendo usadas e manipuladas por forças que buscam desmantelar o que
resta da nossa democracia e eliminar o pluralismo que um dia foi um marco da
nossa sociedade.
A
faísca que poderá atear as chamas deste movimento pode estar adormecida nas
mãos de uma pequena célula terrorista islâmica. Pode estar nas mãos de
gananciosos especuladores de Wall Street que jogam com dinheiro do contribuinte
no elaborado sistema global do capitalismo de cassino. O próximo ataque
catastrófico, ou o colapso econômico seguinte, podem ser o nosso incêndio do Reichstag[2]. Pode vir a ser a desculpa empregada por
essas forças totalitárias, este fascismo cristão, para extinguir o que resta da
nossa sociedade aberta.
Não
nos deixemos ficar humildemente aos portões da cidade, esperando que os
bárbaros apareçam. Eles já estão chegando. Eles estão indo tranquilamente para
sua Belém. Deitemos fora nossa complacência e nosso cinismo. Desafiemos
abertamente o establishment liberal, que não irá nos salvar,
para exigir e lutar por reparações econômicas para a nossa classe trabalhadora.
Vamos reintegrar esses despossuídos em nossa economia. Vamos dar-lhes uma
esperança real para o futuro. O tempo está se esgotando. Se não agirmos, os
fascistas estadunidenses, empunhando cruzes cristãs, agitando bandeiras
nacionais e orquestrando corais do Juramento à Bandeira[3], usarão essa raiva para nos destruir a
todos.
[1] Nos EUA, o termo “liberal” corresponde à
definição dada, aqui, a “social-democrata”, como pretendido pelo PSDB.
[2] Episódio que
precipitou a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha.
[3] Em
inglês, Pledge of Allegiance. Trata-se
da cerimônia de juramento de fidelidade ao país e à bandeira dos EUA.