Segue texto de Leonardo Boff:
Marina foi cooptada pelos grupos da velha política
Entrevista de Leonardo Boff para Cleideana Ramos, do jornal A Tarde, de Salvador, Bahia
Leonardo Boff, Doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique, Alemanha. 75 anos, com cerca de 90 livros publicados, Leonardo Boff é um dos expoentes da Teologia da Libertação (TL). Essa corrente de pensamento abriu caminho, na década de 1970, para a politização de segmentos como os moradores das periferias das grandes cidades. Não à toa, vários desses grupos participaram da criação do Partido dos Trabalhadores (PT).
Conhecido pela defesa de uma fé comprometida com os combates às desigualdades, Boff analisa a persistência de posições religiosas no debate sobre temas do Estado laico, no momento em que pela primeira vez uma candidata de profissão evangélica, Marina Silva (PSB), têm possibilidades de vencer a disputa, embora, ele afirme que aposta na reeleição da presidente Dilma Rousseff (PT). Nessa entrevista, realizada via email, Boff analisa as denúncias de corrupção no governo do PT e a trajetória de Marina Silva.
Cleideana Ramos.- Em 2010, na polarização da campanha entre os candidatos Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), posições a partir de um julgamento religioso estiveram em evidência no debate de questões como a legalização do aborto. Nessa atual campanha é a união civil de casais homoafetivos que tem essa interferência de base religiosa. Além disso, uma das candidatas, Marina Silva (PSB), é de profissão evangélica. Como um estado laico desde a sua fundação pode, ainda, em sua avaliação, sofrer tanta influência de posições próprias da prática religiosa de base católica-cristã?
Leonardo Boff. - O Estado brasileiro, por sua constituição, é laico e pluralista. Isto significa que não privilegia nenhuma das confissões religiosas, admite todas elas desde que se inscrevam dentro do marco constitucional. Aprecia a colaboração que trazem para a educação e para os valores morais e espirituais, importantes para o país. Mas como vivemos numa democracia, cada grupo ideológico e religioso pode apresentar as suas teses e convicções. O que não pode, pois seria ofender a natureza da democracia, é querer impor a todos os demais os seus ditames e preceitos religiosos particulares. Pode expô-los, esforçar-se com argumentos na conquista de pessoas que os adotem. Mas não lhes é lícito impô-los ao estado e aos demais cidadãos.
Como somos uma sociedade aberta, com predominância católica e cristã, podem grupos de igrejas pressionar o estado e os cidadãos para rejeitar, por exemplo, o aborto e sua criminalização, a legalização da união estável de homoafetivos, o experimento com células-tronco e temas afins. Esses assuntos são particulares desses grupos de igrejas e por isso não podem ser impostas como gerais para todos. Aqui prevalece o preceito democrático. E se ocorrer constrangimento, especialmente, pelos vários canais de comunicação, pode configurar-se como delito ao qual cabe aplicar democraticamente a lei.
C. R. - Marina Silva é uma candidata evangélica que reclamou, em uma entrevista, ser confrontada com questões do ponto de vista religioso apenas por sua opção de fé. O Sr. considera que há tratamento diferenciado em relação a Dilma e Aécio?
L.B.- Marina faz uma profissão de fé evangélica, explícita e pública e é seu direito de fazê-lo. Os demais candidatos se atém ao campo político e não introduzem, normalmente, em seus discursos, elementos religiosos. Tais conteúdos se inscrevem no campo da plena liberdade de consciência dos cidadãos. A liberdade religiosa implica também a liberdade de não ter nenhuma religião e de ser ateu e revelá-lo publicamente. O problema surge quando Marina, não como cidadã, mas como candidata, postula o mais alto cargo da nação e por razões religiosas internas à sua igreja, a Assembléia de Deus, e condena quem pratica o aborto e rejeita as uniões estáveis homoafetivas e outros temas afins da moral familiar. Ela como candidata deve deixar estas questões à livre discussão da sociedade. Deve deixar claro que sua opinião é uma entre outras e que não lhe cabe impô-la aos demais, nem em razão de suas convicções condenar quem quer que seja. Esta seria a posição democrática, numa sociedade pluralista e ecumênica na qual as diferenças são aceitas e respeitadas. No entanto cabe enfatizar que estas questões morais pertencem ao campo da consciência individual. Um chefe de estado tem que pensar no bem-estar de toda a população, especialmente quando se trata do aborto. Em si, ninguém o quer. Mas como é sabido, morre uma mulher sobre três que o praticam sem condições higiênicas, o que cria um problema de saúde pública para o qual o estado deve se preocupar. Ao invés de chamar a polícia para penalizar a mulher que abortou, deve-se chamar um médico para impedir que morra. Devemos defender a vida desde a sua concepção mas também a vida das mães que se sentem constrangidas a abortar. Devemos especialmente criar as condições para que as crianças que nascem não sejam abandonadas à subnutrição e depois sejam largadas na rua sem proteção e educação. Um governante deve considerar esta questão sob todos estes ângulos e tomar medidas de responsabilidade visando salvaguardar a vida do maior número possível de cidadãos.
C.R. - O sociólogo Boaventura de Sousa Santos aponta fatores como as Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), surgidas a partir da Teologia da Libertação, movimento do qual o Sr. é um dos expoentes, como um dos motivos da religiosidade inerente aos movimentos sociais brasileiros. O Sr. concorda?
L. B. - As comunidades eclesiais de base são mais originárias que a Teologia da Libertação. Elas nasceram nos anos 50 do século passado como forma de suprir a carência de padres para atender a população, em sua grande maioria católica. A característica destas comunidades, geralmente oriundas das periferias e nos meios pobres, é de se reunirem ao redor da Palavra de Deus, a Bíblia. Leem uma página da Bíblia e a confrontam com a página da vida. E aí tiram suas conclusões. Uma das primeiras foi que Deus está do lado dos oprimidos e quer a sua libertação. Leram isso no livro do Exôdo, nos profetas e na mensagem e na prática de Jesus. Começaram a se organizar na mútua ajuda. Descobriram que uma forma de avançar na sua libertação era entrar no sindicato ou nos vários movimentos sociais, por direitos humanos, por terra, por saúde, por educação. Deram-se conta de que a política é uma forma de transformar este tipo de sociedade que cria tantas desigualdades. Elas não entraram no PT. Fundaram núcleos do PT como maneira de, afirmavam, realizar melhor os bens do Reino de Deus que são a justiça, a solidariedade, a luta contra violação dos direitos humanos, a defesa de suas terras contra o avanço do latifúndio, o apoio à causa das mulheres oprimidas, dos afro-descendentes e dos indígenas. Realizar tais coisas é concretizar o sonho de Jesus, chamado Reino de Deus. Refletindo a partir destas práticas, surgiu a Teologia da Libertação. Ela supõe a prática libertadora, que foi enormemente animada pela pedagogia de Paulo Freire, contra as opressões. Ela é palavra segunda face à palavra primeira que é a ação das comunidades e, em geral, dos movimentos sociais organizados.
C.R. - Marina Silva, assim como Lula, vem das camadas mais populares da sociedade brasileira. Dilma Rousseff foi ministra do governo Lula. As duas lideram as pesquisas de intenção de voto. Para alguns analistas é um sinal do triunfo da centro esquerda contra a centro direita ou direita mais conservadora. O Sr. concorda com esse tipo de leitura do contexto político?
L.B. - Não devemos esquecer que Marina se contava entre as fundadoras do PT no Acre. Por muitos anos militou no partido com os ideais libertários próprios do ideário petista. De católica, por razões pessoais, converteu-se à igreja evangélica. Ela assumiu a leitura piedosa da Bíblia com acentos fundamentalistas. Quer dizer, toma as palavras da Bíblia ao pé da letra e procura nelas a vontade de Deus para cada situação concreta que vive. Teve esta prática também quando era Ministra do Meio Ambiente. Esse tipo de comportamento pode ser politicamente limitador e inibidor. Parte de um pressuposto - considerado pelos estudiosos das Escrituras - equivocado: que na Bíblia se encontra a solução para os problemas humanos. Na verdade, a Bíblia, como o tem insistido o Papa Francisco não contém um fetiche de verdades fechadas. É antes um livro que nos inspira soluções que devemos encontrar juntos, usando os instrumentos que nos são dado pela cultura, pela ciência, pela inteligência que também foi criada por Deus.
O primeiro livro escrito por Deus é o livro da criação natural. Dele aprendemos lições diuturnas, basta observar os ciclos e a beleza da natureza. Como desaprendemos a ler este livro, Deus nos deu o segundo livro, a Bíblia. Não para pô-lo diante dos olhos e assim esconder a realidade. Mas para pô-lo atrás e acima da cabeça para iluminar a realidade. Este método combina inteligência humana com a Palavra de Deus, ambas se completando e destarte evitando um viés biblicista. Este está presente em muitos setores das religiões e das igrejas, também em grupos católicos. No fundo estes grupos pensam que a verdade deles é a única válida e os demais estão no erro. E o erro não tem direito, por isso pode e deve ser combatido. Daí nascem as intolerâncias e as violências de cunho religioso que pode chegar a verdadeiras guerras entre vários grupos fundamentalistas, como ocorre entre grupos islâmicos, embora o islamismo originário seja tolerante e conviva pacificamente com outras expressões religiosas.
C.R. - Aliás, em sua avaliação, é possível ter campos ideológicos tão bem demarcados no atual contexto de disputa política brasileira?
L.B. - É lamentável a pobreza ideológica que caracteriza a atual disputa política. Ao invés de se discutir que Brasil queremos para nós e para nossos filhos e filhas, verifica-se uma corrida desenfreada pelo poder. Questões importantes como o fato de 85% da população viver em cidades com os problemas graves que tal fato acarreta para o abastecimento, para a mobilidade, para a moradia, para a ordem democrática, abrindo espaço para a violência, a droga e o surgimento de outros grupos que assumem nas favelas funções de estado como a segurança, a manutenção de certa ordem sob violência e morte e o atendimento de necessidades básicas da população, distribuição de cestas básicas, de remédios, não aparecem.
Outro problema totalmente ausente é ligado à crise ecológica mundial que pelo aquecimento global e pelo desequilíbrio criado no sistema-vida e no sistema-Terra podemos conhecer e já estamos conhecendo graves perturbações ecológico-sociais com eventos extremos como grande seca em uma parte do país e grandes enchentes em outra. Os temas da segurança e da infra-estrutura de nossas cidades não são superficialmente abordados e aparecem mais como promessas que se fará alguma coisa do que com projetos sérios e eficazes.
Os partidos políticos brasileiros nunca foram construídos a partir de projetos ideológicos consistentes, mas ao redor de interesses de poder, especialmente, das elites que sempre controlaram o ter, o poder, o saber e os meios de comunicação. Os governos dentro do tipo de presidencialismo de coalizão com vários partidos procura com isso garantir a base de sustentação necessária para a aprovação de projetos. Mas se transformou num jogo de trocas de favores e de cargos. Desta forma o bem comum foi ao limbo, dando lugar aos interesses particulares e eleitoreiros de cada partido.
Se não se fizer uma profunda reforma política, nunca sairemos de uma democracia de baixa intensidade que temos atualmente. O que distingue o PT dos demais partidos foi ter feito -isso é seu mérito- uma revolução democrática pacífica ao introduzir mais que uma alternância de poder uma alternância de classe social. Isto quer dizer, aqueles que sempre estiveram fora do poder e à margem, graças a um conglomerado de forças sociais populares, conseguiram fundar um partido, o PT, e fazer de um sobrevivente da grande tribulação, Lula, presidente do Brasil. Esta conquista é de magnitude histórica. Não pode ser perdida. Não nos é lícito voltar atrás. Mas nos é imposta a obrigação de consolidá-la, aprofundá-la e enriquecê-la com uma democracia participativa que vem de baixo, de cunho popular.
C.R. - Embora com uma trajetória política iniciada no PT, Marina Silva começa nesse momento de polarização da disputa a ser combatida por movimentos sociais e também por sindicatos. Para o Sr. o que na candidata desperta esse tipo de combate? Apenas o confronto com o PT?
L. B. - Podemos visualizar, embora em forma não muito clara, dois projetos em curso: um progressista, hegemonizado pelo PT que quer um estado republicano, indutor de mudanças, que decide abrir uma brecha na macroeconomia que se impõe no mundo inteiro, também entre nós, e fazer políticas públicas que beneficiam milhões de pobres e marginalizados. Em 12 anos de governo do PT com seus aliados, o Brasil avançou e foi bom para as grandes maiorias, integradas na sociedade organizada. Houve avanços inegáveis em todos os campos, talvez menos quanto à reforma agrária e à preocupação com as terras indígenas ameaçadas pelo agronegócio. O outro projeto, neoliberal e conservador pensa ainda alinhar o Brasil ao grande jogo mundial hegemonizado pelos USA, alia-se aos grandes capitais nacionais e transnacionais e visa a um estado menor para dar mais liberdade ao mercado, aos capitais especulativos. Postula-se a independência do Banco Central que é tudo o que o sistema financeiro nacional e mundial quer, pois assim pode controlar a moeda, as taxas de juros, o superavit primário e o valor do dólar. Ocorre que Marina, por força da correlação de forças foi cercada e depois cooptada por grupos ligados à velha política cujo projeto político beneficia as elites dominantes. Não sem razão que sua ligação com os movimentos sociais é quase nula. Mas os banqueiros e o sistema financeiro se sentem tranquilos com as teses que apresenta, especialmente com a autonomia do Banco Central. Se triunfar, significaria um retrocesso a tudo o que foi conquistado, pois para implementação de seu projeto se impõe arrocho salarial, aumento de impostos que permitiriam projetos que no fim e ao cabo iriam beneficiar os que historicamente sempre foram beneficiados.
C.R. - Diferentemente de Lula, a presidente Dilma enfrenta dificuldades muito maiores para a sua reeleição, inclusive com risco de perder a eleição segundo as pesquisas eleitorais e os índices de rejeição. Em sua avaliação, Dilma se afastou em algum momento das bases do governo Lula ou tudo é questão de individualidade e perfil carismático do ex-presidente?
L.B. - Não creio que Dilma vá perder esta eleição. À retórica de Marina, sem apresentar fatos e ações, Dilma contrapõe avanços inegáveis que ocorreram em nosso país e os projetos sociais populares que beneficiaram 36 milhões de pessoas. Penso que Marina chegou ao teto de seu crescimento. A dificuldade de Dilma é sistêmica. O mundo todo, especialmente, os países centrais como os USA e a Europa mergulharam numa profunda crise da qual não sabem como sair. Isso produziu no mundo inteiro desalento, decepção e fúria dos 100 milhões de desempregados. A façanha de Dilma foi manter o crescimento, embora exíguo, o controle da inflação e um nível baixíssimo de desemprego, um dos mais baixos de nossa história (5%). Lá fora ocorre o contrário, estagnação, crescimento pífio e altas taxas de desemprego. Estes fatos podem ser apresentados como argumento para sua reeleição. Apesar dos escândalos que houve por parte de grupos do PT, seu projeto, enriquecido, aprofundado e construído em diálogo com a sociedade, com os movimentos sociais e com os jovens que foram às ruas em 2013 é ainda o melhor para o povo brasileiro. Portanto, trata-se de avançar para consolidar e aprofundar as conquistas populares já alcançadas.
C.R. - Em sua avaliação, o governo Dilma distanciou-se dos movimentos sociais? Se positivo, de quais segmentos?
L.B. - Deve-se reconhecer que Dilma não dialogou suficientemente com os movimentos sociais. Ela exercia a presidência como uma grande e inteligente executiva aprofundando projetos de longo alcance como o PAC 1 e o PAC 2. No estilo de presidencialismo de coalizão que vigora, teve que cuidar muito de manter uma base de sustentação suficientemente alinhada para aprovar seus projetos. Teve enormes dificuldades, especialmente, com referência ao Código Florestal e à iniciativa da convocação de uma consulta popular para uma reforma política, exigência dos milhões que foram às ruas em 2013. Não teve o sucesso esperado. Cabe reconhecer que temos um congresso composto por grupos comprometidos com o grande capital, com o latifúndio, de mentalidade atrasada e com parca sensibilidade social. Pensam mais em defender seus privilégios que garantir os direitos individuais e sociais da maioria dos cidadãos. São os que mais resistem às reformas com medo de perder seu poder. Mas podemos dizer seguramente: nunca aprovou um projeto que prejudicasse o povo. Nunca criminalizou os movimentos sociais. Sempre se manteve incorruptível e severa para com os corruptos seja do PT, seja dos outros partidos. Ultimamente começou a viajar pelo país e deu-se conta da vitalidade dos movimentos sociais. Ela mesma se modificou e tornou-se mais popular.
C.R. - Qual a sua comparação entre o tratamento das questões sociais nos governos dos últimos 20 anos no Brasil (FHC, Lula e Dilma)?
L.B. - Como disse anteriormente: trata-se duas visões de futuro para o Brasil. Uma, de FHC e hegemonizado pelo PSDB, era nitidamente neoliberal, no estilo da social democracia europeia que acabou sendo desmantelada pela crise econômico-financeira de 2008. O Estado foi diminuído, ocorreram grandes privatizações, algumas danosas para o nosso futuro como a venda da Vale do Rio Doce e parte da Petrobras e houve uma alinhamento claro às políticas dos USA que são claramente imperais, visando o poder sobre todo o planeta e não admitindo nenhuma força que os possa eventualmente desafiar. O Brasil não mostrou grandeza nem sentido de soberania. Como bem afirmou nosso Chico Buarque de Holanda sobre nossa política externa, ” falava fino com Washington e falava grosso com o Paraguai e a Bolívia.” Contentava-se em ser força auxiliar e parceiro subalterno ao grande projeto da globalização controlada pelas grandes corporações multinacionais. A outra visão de futuro era a de Lula. Queria um país soberano que tivesse como foco o povo e suas carências. Embora não pudesse livrar-se da macroeconomia mundial, criou condições para que se fizessem poderosas políticas públicas populares que conferiram outro rosto ao Brasil. Diminuiu em 7% a desigualdade que é a grande chaga histórica do Brasil. Reforçou a soberania do país, fazendo-se escutar nos foros mundiais como uma das lideranças mais expressivas do mundo. Trouxe esperança para os povos e orgulho nacional. Os tempos mudaram ultimamente e de forma perigosa, especialmente com o ocaso da hegemonia norte-americana, incapaz de vencer guerras de conquista e impondo medidas de segurança que violam os direitos humanos internamente nos USA e no mundo inteiro. O Brasil é a sétima economia do mundo. Possui um peso nas riquezas ecológicas que nenhum país pode apresentar. Caberá a nós gerenciá-las de tal forma que ajudem a humanidade inteira a atravessar tempos difíceis que virão por falta de água potável e pelas consequências desastrosas do aquecimento global que não para de subir.
C.R. - O Sr. tem ainda alguma militância em movimento católico? Qual? Quais são hoje suas principais atividades?
L.B. - Eu sempre me entendi como teólogo ecumênico de raiz católica. Nunca abandonei a teologia. Minha produção cresceu com o meu afastamento da institucionalidade eclesiástica. Mas nunca deixei a Igreja como comunidade de fiéis. Alarguei o discurso da teologia da libertação introduzindo a temática ecológica. Se a marca registrada de teologia da libertação é a opção pelos pobres contra a pobreza e pela justiça social, então entre os pobres devemos colocar hoje a Terra, o grande pobre, ultra explorado e devastado pela voracidade produtivista que visa antes a acumulação do que o atendimento das demandas humanas. Vivo dando cursos sobre temas de ética, espiritualidade, direitos humanos, ecologia, teologia, política e democracia seja no Brasil seja no exterior. Sou co-fundador e presidente de honra do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis que trabalha e apoia as comunidades, jovens e espoliados de seus direitos na Região Serrana do Rio e no próprio estado. Acompanho os movimentos sociais e participo na medida do possível de sua caminhada. Como todo teólogo da libertação, procuro ter um pé no mundo dos oprimidos e dos sofredores e outro pé no estudo, na pesquisa e no trabalho intelectual. Sou um trabalhador, como qualquer outro que, durante 10-12 horas por dia, utiliza 24 sílabas para reconstruir um mundo através de artigos e livros.
C.R. - Mesmo um governo surgido de camadas mais populares como o PT e que, historicamente, fez um discurso de moralidade enfrenta seguidos escândalos de corrupção. A oposição diz que o governo foi contaminado. A presidente Dilma diz que a visibilidade das irregularidades aumentou devido às práticas do governo como autonomia para a Polícia Federal (PF). Qual é a sua análise pessoal sobre esse quadro?
L.B. - A corrupção vem de muito antes e constitui uma marca de nossa história. Já as capitanias hereditárias traziam em seu bojo a corrupção que depois se perpetuou nas relações políticas. Muitos se tornam políticos para enriquecer e para ganhar imunidade pelos malfeitos que praticam. O governo do PT foi talvez o governo que mais criou instâncias de combate à corrupção. Grande parte da corrupção que vem à tona não é de hoje mas de muito antes. Apenas que somente agora é desmascarada. Com isso não quero isentar grupos do PT que também não foram fiéis à bandeira da ética e se deixaram corromper. O governo nunca foi leniente para com esses. Animou os processos judiciais para que se fizesse justiça e ocorressem as punições.
C.R. - O carro-chefe do combate à desigualdade social dos governos Lula e Dilma é o Bolsa Família. Tanto que até os adversários da atual presidente – Marina Silva e Aécio Neves- não o combatem, mas falam em aperfeiçoamento. Qual é a sua opinião sobre a estrutura do Bolsa Família? É necessária ou precisa ser aperfeiçoada?
L.B. - A primeira tarefa do Estado é cuidar da vida de seus cidadãos. Se há milhões de pobres que passam fome e outras necessidades, é dever do governo implementar políticas públicas que os tirem dessa situação indigna. Isso não é assistencialismo. É humanitarismo em grau zero. Um estado que não fizesse tais políticas seria cruel e sem piedade. A Bolsa Família não é apenas para matar a fome. Ela criou condicionamentos: enviar os filhos à escola, obrigar os beneficiários no curso de três anos aprenderam alguma profissão para se verem livres da Bolsa Família e terem sua sustentabilidade garantida por eles mesmos. Por isso junto à Bolsa Família vieram os outros projetos de educação, de criação de dezenas de escolas profissionais, de apoio à agricultura familiar e outros já conhecidos. Ela é necessária na medida em que em amplos estratos persiste ainda não só a pobreza, mas a miséria. Para os miseráveis a presidenta Dilma criou o programa Brasil Carinhoso. Em dois anos tirou da miséria milhões de pessoas. Não obstante isso, sempre há quem se aproveita indevidamente da Bolsa Família sem precisar dela e assim rouba o pão que falta a outros. Mas são casos individualizados e que são também combatidos. Entretanto, na medida em que as pessoas se autonomizam, se profissionalizam, elas mesmas cessam de receber a Bolsa Família. É um sentido de dignidade pessoal poder levar avante com seu trabalho e esforço a sua vida e de sua família.
C.R. - Espaço para as considerações que o Sr. julgar necessárias.
L.B. - Estamos numa fase de transição de um tipo de civilização tecnológica que para realizar o seu propósito de progresso ilimitado devastou o planeta. Um planeta limitado não suporta um projeto ilimitado. Encostamos nos limites da Terra. Este sistema está atacando as bases físico-químicas que sustentam a vida. Temos que mudar, pois caso contrário poderemos ir ao encontro do pior. E essa mudança só será eficaz se não a esperarmos caída do céu, mas se cada um fizer a sua revolução molecular, quer dizer, viver em si mesmo a mudança que quer para os outros e para o mundo. Estimo que o Brasil tem toda as condições para iniciar um outro tipo de civilização, amante da vida, respeitadora dos ritmos da natureza e capaz de inserir a todos sem grandes discriminações. Abominará todo tipo de guerra e será promotora da paz e da convivência jovial com todos os povos. Será uma civilização cujo eixo articulador será a vida, a vida da natureza, a vida da Mãe Terra e a vida de cada pessoa. A economia, a política, a ética e a espiritualidade servirão à vida e não ao mercado e à acumulação. Podemos ser mais com menos e viver uma sobriedade compartida que permitirá que todos possam ter o suficiente e o decente para viver na única Casa Comum que temos, o planeta Terra. Talvez a isso nós como país somos chamados a inaugurar.