Segue o texto do jornalista Mauro Lopes, constante de seu blog Caminho pra Casa:
Padre Júlio Lancellotti, responsável pela Pastoral do Povo da Rua em São Paulo, tem sofrido seguidas ameaças de morte nas últimas semanas. A perseguição a Lancellotti é uma faceta do desejo de descartar e esmagar os mais pobres, o “lixo” da sociedade para as elites. Qual a razão disso? Pode parecer paradoxal, mas é medo. Pois os pobres não carregam apenas suas dores. Carregam as de toda a sociedade. Mas não podemos olhar para elas. Precisamos ganhar o dia, sonhar com a ilusão da riqueza, matar nossa humanidade para subir na vida, negar nossas angústias e apagar qualquer traço de solidariedade que nos torne próximos do pobre. Devemos a todo custo liquidar com o terror, ou seja, a possibilidade desesperadora de nos tornarmos pobres. Para afastar este medo-pânico é necessário esmagar aqueles e aquelas que nos denunciam essa possibilidade. E os que os defendem.
Por Mauro Lopes
Neste domingo (25) haverá uma manifestação de solidariedade e em defesa do padre Júlio Lancellotti. Será às 9h da manhã, na Igreja São MIguel Arcanjo, no bairro do Belém, em São Paulo -Lancellotti é pároco lá. Se você quiser saber de mais detalhes do evento, clique aqui.
Júlio Lancellotti foi ordenado sacerdote em 1985, pelas mãos de um dos maiores líderes da Igreja no Brasil, dom Luciano Mendes de Almeida. Fez-se padre no seguimento de dom Luciano e de dom Paulo Evaristo Arns. Desde sempre esteve com os últimos da sociedade. Foi um dos fundadores da Pastoral do Menor em São Paulo.
No início dos anos 1990, padre Júlio tomou tomou uma atitude que traçou uma identidade indelével entre ele e São Francisco de Assis. Era o auge da crise da AIDS, vista por parte da sociedade como uma “peste” e, por um segmento, como uma “peste gay”. Na Febem, os bebês e crianças com Aids -exatamente os mais frágeis- não eram tratados pelos profissionais, com pavor de se contaminarem pelo vírus. Eram deixados de lado, sem banho, sem colo, sem nada. Lancellotti resgatou os bebês e crianças e fundou a Casa Vida I e depois a Casa Vida II, perto de sua paróquia. Elas passaram a ser cuidadas. Muitas morreram -mas muitas sobreviveram à doença e hoje são adultos e adultas. Como São Francisco no abraço aos leprosos, Júlio Lancellotti abraçou os bebês aidéticos.
Na Semana Santa de 2016 escrevi um breve texto sobre essa necessidade que o status quo tem de esmagar os pobres no país -e aqueles que os defendem. Como se fez com Marielle Franco, Dorothy Stang, Santo Dias, Marighella, Josimo Tavares, Gregório Bezerra, Margaria Maria Alves intentam-se fazer agora com Júlio Lancellotti. [Por sugestão do amigo RIcardo Venturino, ativo integrante da Pastoral do Povo da Rua, retomo e amplio, com algumas adaptações].
Pois não basta vivermos num dos países mais desiguais do mundo -apenas 6 bilionários detêm mais riqueza que 100 milhões de pessoas no país. Não basta que o 1% mais rico da população ganhe em um mês o que aqueles que vivem de salário mínimo recebem em quatro anos de trabalho (leia aqui).
Não, isso não basta. É preciso destruir com o Bolsa Família, é preciso impedir que os pobres se organizem e protestem (a PM existe para isso), é preciso que uma parte considerável do país considere a desigualdade “natural”, acredite que os mais pobres são “vagabundos”. É imprescindível denunciar os pobres quando se organizam, é crucial desmoralizá-los. Para isso existe a Globo e seu império de comunicação. Para isso existem as outras TVs, rádios, jornais e revistas.
Assim foi desde o início do país. Nos primeiros séculos as elites não se satisfaziam em escravizar os indígenas e depois os negros. Era necessário desmoralizá-los, gravar em sua pele as marcas do ferro em brasa e das correntes e em seu rosto e sua alma as mesmas pechas de hoje: vagabundos, ordinários, preguiçosos. .
É preciso esmagar.
Eles são “do MST”, são “mendigos”, são “peões”. Não têm nome. Não existe João, Maria, José, Pedro, Ana, Marta com seu filhos e filhas, pessoas que choram e riem. Não é suficiente que eles morem, às vezes anos a fio, debaixo de barracas de plástico preto ou em acampamentos improvisados ou em palafitas, cortiços, barracos ou simplesmente na rua. Não interessa a fome, a angústia, o choro. Nada importa: eles são os pobres. Não importa: são malandros, querendo usurpar o que é “nosso”.
Aqueles e aquelas milhares de pessoas que têm como ofício esmagar os pobres esqueceram o sentido da palavra compaixão: cum (com) passiones (sofrimento). Sofrer com, sentir a dor do outro como se minha fosse. Estender a mão, abrir o peito, estar perto. Não. É preciso escarnecer deles.
É um sistema. Não é um acidente que assim seja. Um sistema engendrado pelas elites, criado desde sempre, aprimorado e tornado complexo ao longo dos séculos. As Organizações Globo são a culminância desta obra no país. Tudo para manter uma sociedade de privilégios, evitar a democracia, impedir que os pobres tornem-se cidadãos de direitos.
É preciso mantê-los à distância. Como ousam deixar a senzala para apresentar-se à sociedade à luz do dia? Como se atrevem a trazer seu sofrimento a nós? Sua presença é uma denúncia viva da injustiça, e contra isso, insurgem-se os ricos e poderosos.
Estamos às vésperas da Semana Santa. Católicos e cristãos de outras denominações meditarão ao longo da semana os quatro Cantos do Servo Sofredor, do profeta Isaías, a mais acabada profecia da chegada de Jesus. Isaías antecipou de maneira tão precisa a chegada do Manso e Humilde que muitos consideram seu livro como o quinto Evangelho. Na Sexta da Paixão rezaremos o quarto canto. Ler esta passagem de Isaías é reconhecer os rostos dos sem terra da foto que abre esta breve meditação. É ver com os olhos do coração os pobres de todos os tempos, os humilhados, chagados, espezinhados, esmagados:
“Ele cresceu diante de nós como renovo, como raiz em terra árida; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que carregava”. (Is 53,2-4)
Os pobres não carregam apenas suas dores. Carregam as de toda a sociedade. Mas não podemos olhar para elas. Precisamos ganhar o dia, sonhar com a ilusão da riqueza, matar nossa humanidade para subir na vida, negar nossas angústias e apagar qualquer traço de solidariedade que nos torne próximos do pobre. Devemos a todo custo liquidar com o terror: a possibilidade desesperadora de nos tornarmos pobres. Para afastar este medo-pânico é necessário esmagar aqueles e aquelas que nos denunciam essa possibilidade.