Reflexões sobre o Jesus
Histórico, parte 2
Anotações, Comentários e
Resumos baseado em capítulos do livro de Gerd Theissen e Annette Merz, professores da Universidade de
Heidelberg
“O
Jesus Histórico”
Jesus e as mulheres
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
I - Introdução
Dando prosseguimento ao estudo sobre o
Jesus histórico tal qual as pesquisas acadêmicas o apresentam atualmente,
destacaremos aqui a relação de Jesus com as mulheres em sua atividade pública,
o que podemos perceber de socialmente revolucionário nesta interação e como ele
entendia o lado materno de Deus.
Comecemos por lembrar que a tradição
posterior das comunidades cristãs de onde surgiram os evangelhos (escritos
décadas após a crucificação e durante a crise das guerras judaicas contra Roma
e da dupla perseguição aos cristãos por Roma e pelo Sinédrio), ao elaborarem as
narrativas sobre a vida de Jesus, não deixaram de contaminar os relatos com a
visão patriarcal dominante na época, o que também é encontrado, por exemplo, em
Paulo
de Tarso, principalmente na epístola (provavelmente não escrita por ele)
aos colossenses. Convém, contudo, lembrar que a tradição que se constituiu
sobre Jesus são formas de interpretação de Jesus, muitas vezes encobrindo parte
de sua mensagem que, contudo, pode ser reconstituída de acordo com a análise
das fontes, de onde é possível extrair “a linguagem” e as ideias de Jesus, e
com o contexto histórico-social de sua época.
Assim, com este esclarecimento em
mente, os professores Gerd Theissen e Annette Merz em seu livro “O Jesus Histórico”, (2002) ao
introduzirem o estudo da relação de Jesus com as mulheres a partir de uma
análise de seu contexto, começam por destacar que...
“(...)
a tradição de Jesus tem um caráter androcêntrico e ambivalente em relação às
mulheres. Por um lado, esta tradição é dominada por uma linguagem androcêntrica
e por um patriarcalismo inabalável; por outro, pode-se reconhecer, tanto na
tradição dos ditos como na tradição narrativa, uma surpreendente e múltipla
participação de mulheres e relações com o mundo feminino” (op. Cit. p. 243).
Os elementos patriarcais que foram
postos e/ou se desenvolveram com a tradição cristã posterior a Jesus – muito em especial após
Constantino e sua transformação do movimento original de uma expressão popular
dos oprimidos para uma religião dominada pelos opressores, através da
oficialização de uma comunidade de teólogos comprometidas com a antiga visão do
homem – já são conhecidos. Sabe-se o quanto foram utilizados, ou
melhor, torcidos e reinterpretados para justificar uma cultura excludente e machista durante
séculos. Não será este aspecto, de todo modo estranho à mensagem original de Jesus, como veremos, o objeto de estudo aqui. O que nos importa é exatamente aquele
outro lado, mais luminoso e, por isso, mais “perigoso” para o status quo
tradicional (político e religioso), qual seja, os elementos inclusivos da ação pública de Jesus, que resgatava a dignidade e o valor da mulher durante seu ministério
público, pondo em questão a visão patriarcal convencional.
Citando ainda
Theissen e Merz, no mesmo contexto social e a partir das fontes sobre a ação de
Jesus frente à comunidade de pessoas que o conheceram, é bastante visível
que...
“Diante dos elementos
patriarcais, existem também elementos inclusivos na tradição de Jesus. Na
tradição narrativa encontram-se muitas mulheres, em parte em papeis não típicos
de seu gênero. Podemos mencionar como exemplo a unção do Messias em Mc 14, 3-9.
A tradição dos ditos está cheia de “formação de (dizeres em) pares simétricos”,
ditos duplos, nos quais há protagonistas masculinos e femininos e/ou seus
âmbitos de vida e de trabalho são postos lado a lado. Podemos citar a parábola
dupla (com mensagens semelhantes) do grão de mostarda e do fermento (lc. 13,
18s.20. par.), da ovelha e da moeda perdida (Lc 15,3-7; 8-10). Também podemos
mencionar a parábola do amigo inoportuno e da viúva insistente (Lc 11,5-8; 18;
1-8). (...). O mundo do trabalho masculino e feminino são mencionados em Mt
24,40s (trabalho no campo e moer no moinho); Mc 2,21 (trabalho têxtil e
produção de vinho), Mt 6,26.28 (fiação e trabalho no campo)” (Op. Cit., p.
243).
Portanto, fica
claro que Jesus não se dirigia apenas a homens, mas sim a homens e mulheres e
que estas faziam parte, senão em número igual ou superior ao dos homens, das
pessoas que simpatizavam com ele e/ou o seguiam. Os autores citados acrescentam
ainda que deve-se levar em consideração, nos ensinos de Jesus, as imagens
metafóricas (em especial nas parábolas) em que se utilizam imagens do mundo
feminino. Se ele o fez, é porque tais imagens foram consideradas pelo nazareno
como mais apropriadas para dar uma ideia do trabalho e cuidado de Deus – aliás, o colérico, ciumento
e muitas vezes “infantil” deus de Moisés transforma-se, em Jesus, em Abba,
“papai” amoroso e compreensivo -, ao mesmo tempo em que, assim fazendo, Jesus
também promove uma crítica social contra a visão patriarcal: “a partir da mensagem do reino, cotidiano e
atribuição de papeis femininos são relativizados” (Op. Cit., p. 244).
II – Mulheres
no contexto de Jesus
Jesus não via
as mulheres como “inferiores” aos homens. Várias passagens dos evangelhos
sinóticos indicam isto, bem nos evangelhos não canônicos, como no de Tomé (por exemplo, no logion 114)
e no de Maria Madalena, o primeiro redescoberto em 1945 e o segundo, em 1897. Aliás, são elas, as mulheres, segundo os textos canônicos, as
primeiras a terem contato com a ressurreição. No evangelho de João, a primeira pessoa a ver e falar com o Cristo póstumo foi Maria Madalena. Deste modo, as mulheres se
apresentam como destinatárias da mensagem de Jesus tanto quanto os homens. Ou melhor, são compreendidas por Jesus como pessoas responsáveis por si mesmas e em várias passagens
elas apresentam uma coragem e fidelidades a Jesus superiores mesmo a dos apóstolos. Além do mais, diante do já conhecido posicionamento crítico de Jesus frente às injustiças
sociais, que promovem exclusões e opressões impostas, transformando pessoas em párias, convém refletir que
“A mensagem de
Jesus dirige-se especialmente também às mulheres economicamente mais pobres e
socialmente desprezadas, as prostitutas. Em Mt 21,31s ele promete a elas e aos
cobradores de impostos acesso ao reino de Deus (...)” (Op. Cit., p. 244-245).
Nos relatos
evangélicos (embora nem sempre bem compreendido, especialmente por evangélicos), grande parte das curas efetuadas por Jesus se dão sobre mulheres.
Mas estas curas não foram efetuadas sem que não servissem em si como uma ilustração, sem que carreassem uma mensagem. A
atenção dada por Jesus a elas nestas ações demonstra que a cura física seria a contrapartida e expressão da integridade e dignidade corporal das mulheres - tantas vezes vilipendiada pelas "regras de pureza" das escrituras veterotestamentárias e, portanto, frequentemente
desprezadas pelo patriarcalismo vulgar -, as inserindo na comunidade dos que foram
tocados pelo reino de Deus. Em outras palavras, Jesus questiona tudo aquilo no Antigo Testamento que reduz a humanidade a "coisa" - e as mulheres são metade da humanidade -, o que já por si demonstra a relativização do conceito de "sacralidade" dada às escrituras, textos escritos por pessoas em um contexto histórico específico.
Uma das passagens
mais singulares dos evangelhos - que, alias, é a única em que Jesus se deixa
convencer por alguém, ou seja, a única em que, em um diálogo, ele não domina a
argumentação -, é a que relata o encontro de Jesus com uma mulher sírio-fenícia, em Mc 7,24-30. Nela, uma não judia implora a Jesus que cure sua filha
enferma. Na narração Jesus parece resistir, usando uma argumentação
nacionalista (que parece ter sido usada de propósito para chamar a atenção dos
circunstantes à cena), mas, diante da sinceridade da estrangeira, ele cede e
cura, à distância, a menina. Fica claro que a ocasião foi usada para
mostrar que o direito ao reino é posto para todas as pessoas, independente
de origem, sexo ou nacionalidade.
Outra passagem célebre - e bastante incisiva na crítica ao patriarcalismo - é discutia por Theissen e Merz:
“A mulher com hemorragia (Mc
5,25-34), além de sua enfermidade, tinha de sofrer marginalização social e
cúltica, que a faz carregar sempre consigo sua impureza, uma forma acentuada de
separação que atingia todas as mulheres menstruadas. Ela rompe com o tabu do
toque, o que é tornado público por Jesus e interpretado como expressão
(positiva) de sua fé” (Op. Cit. p. 245).
Entre os
seguidores de Jesus, especialmente os que o acompanham até Jerusalém e que,
após a sua morte, continuaram seu ministério, contavam-se mulheres, o que é reconhecido mesmo por Paulo (Rm 16,12 e Fl 4,2s). Ademais, muitos dos ditos sapienciais e éticos de Jesus apresentam imagens que são
próprias de atividades domésticas (femininas) e laborais externas (masculinas):
A exortação para não preocupar-se a (Mt 6,25ss / Lc 12,22ss) compara os
ouvintes a pássaros e lírios do campo, que não fiam, não semeiam, nem colhem .
A audiência, portanto, era formada por seguidoras e seguidores considerados iguais.
III – O mundo
das mulheres e o lado materno de Deus
Citações e
imagens, nos ensinos de Jesus, que apresentam figurações próprias do mundo das
mulheres se tornam significativas porque representam uma corajosa exceção em
uma cultura dominada por preconceitos machistas.
“Cada referência explícita faz
com que as mulheres sejam visíveis e dessa forma tematiza obrigatoriamente seu
valor, contra os dogmas básicos da cultura patriarcal. A inclusão do mundo
feminino na linguagem do anúncio tem como causa uma sensibilidade aguçada de
Jesus e dos que o seguiam para com o clamor dos marginalizados, a quem a
mensagem do reino de Deus vindouro é primeiramente dirigida, e à participação
ativa das mulheres no movimento de Jesus” (Op. Cit., p. 247).
Contudo,
existe um outro efeito ainda mais revolucionário da apresentação do universo feminino
nas parábolas de Jesus. Ela é usada tanto para destacar a humanidade das
mulheres quanto para mostrar o aspecto materno de Deus:
“A escolha de mulheres como atrizes nas parábolas e em formas parabólicas
as transformam em figuras de identificação para mulheres e homens. Se na parábola
do amigo que pede (Lc 11, 5-8) outra é posta ao lado, a da viúva que luta
insistentemente por seu direito (Lc 18,1-8), isto significa que uma mulher
representa um comportamento adequando ‘de homens’ diante de Deus. Tal uso de
imagens é um protesto implícito contra a imanente equivalência entre ser humano
e homem, imanente na linguagem.
“As
parábolas do fermento (Lc 13,20/Tomé 96) e da moeda perdida (Lc 15,8-10)
apresentam a mulher e seu mundo como imagem para a ação de Deus. A mulher que
busca a moeda necessária para a aquisição do que é indispensável, as mãos de
mulher que preparam o pão essencial para a sobrevivência são imagens
transparentes do cuidado de Deus com o ser humano e para o cumprimento do reino
prometido. Tal uso de imagens é um protesto implícito contra a simbolização
frequente (e ainda usual) de Deus em categorias masculinas” (Op. Cit., pp.
247-248).
Theissen, Gerd & Merz,
Annette (2002). O Jesus Histórico – um manual. Editora Loyola, São Paulo.
João Pessoa, Paraíba, 06 de janeiro de 2015