Páginas

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Papa Francisco vira alvo explícito de fascistas e fundamentalistas da grande midia brasileira


"O Pontífice incomoda pelo discurso que afirma haver limites para a liberdade de expressão, além de condenar o machismo na sociedade atual e admitir os equívocos e crimes históricos da igreja. Se Francisco provoca a ira dos fundamentalistas e reacionários de direita é sinal de que está certo".


Extraído do site Pragamatismo Político:


Papa Francisco vira alvo dos fundamentalistas brasileiros

papa francisco mídia brasileira

O Papa Francisco não sabe (e se soubesse, provavelmente pouco se importasse), mas se transformou no alvo predileto dos fundamentalistas da imprensa brasileira (Imagem: AP/Gregorio Borgia)

Extremistas da imprensa brasileira declaram guerra contra o Papa Francisco. Pontífice incomoda pelo discurso que afirma haver limites para a liberdade de expressão, além de condenar o machismo na sociedade atual e admitir os equívocos e crimes históricos da igreja. Se Francisco provoca a ira dos fundamentalistas, é sinal de que está certo




  Dois dias atrás, o papa Francisco fez declarações sensatas (relembre aqui) que, aos olhos de quatro fundamentalistas da imprensa brasileira, foram consideradas heréticas. “Não se pode ofender, ou fazer guerra, ou assassinar em nome da própria religião ou em nome de Deus”, disse ele. “Acho que os dois são direitos humanos fundamentais, tanto a liberdade religiosa, como a liberdade de expressão”, completou, antes de afirmar que “há, porém, um limite para a liberdade de expressão”.

  Foi o bastante para que quatro jihadististas, num movimento aparentemente concatenado, se unissem uma espécie de guerra santa contra o sumo pontífice. O primeiro foi Reinaldo Azevedo, ex-coroinha, que simplesmente mandou o papa calar a boca. Também sem nenhuma sofisticação, José Roberto Guzzo, diretor editorial de Veja, afirmou que o papa viajou na maionese, em entrevista… à Veja.

  SAIBA MAIS: Papa Francisco critica sociedade machista em missa recorde para 6 milhões

  Ricardo Noblat, do Globo, também usou uma metáfora para se referir ao caso. Disse que o papa Francisco “pisou feio na bola” (leia aqui). “Duvido que Francisco concorde com a morte como meio de se responder a uma ofensa. Mas foi a impressão que deixou”, disse ele. Ou Noblat não leu o que o papa disse, ou foi mal-intencionado. Voltando à primeira declaração de Francisco, eis o que disse o pontífice: "Não se pode ofender, ou fazer guerra, ou assassinar em nome da própria religião ou em nome de Deus”.

    Neste sábado, foi a vez de Guilherme Fiúza, também do Globo, que, para variar, misturou o assunto da semana com a política brasileira. “Talvez uma das figuras mais representativas deste momento esquisito seja o Papa Francisco. Sua Santidade tem provavelmente uma espécie de João Santana ao pé do ouvido, para soprar-lhe as últimas tendências do mercado”, disse ele, condenando o que considerou uma defesa do Islã radical feita por Francisco.

   Cartilha do Instituto Millenium


  Nem todo mundo sabe, mas as famílias Civita e Marinho são sócias e mantenedoras do Instituto Millenium, um think tank criado para tentar organizar o “pensamento correto” da elite brasileira. É desse instituto, apoiado também por empresas como a Gerdau, que saem os Fiúzas, Mainardis, Magnolis, Guzzos, Constantinos e afins.

  Pode-se imaginar que os quatro colunistas tenham tido a ideia simultânea de iniciar sua guerra santa contra o papa Francisco – hoje, uma das figuras mais populares e admiradas do mundo. Mas também não deve ser descartada a hipótese de uma blitz coordenada, como ocorreu em Paris com o ataque ao Charlie Hebdo e ao mercado judaico.

   Se você não quiser refletir muito sobre as declarações do papa Francisco, nem é preciso. Basta olhar para quem levantou a voz contra suas declarações. Se os jihadistas da imprensa brasileira estão contra o papa, não tenha nenhuma dúvida: ele só pode estar certo.



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Je suis Baga, Je suis Africa




 No último dia 08 de janeiro, um imenso massacre ocorreu no nordeste da Nigéria, efetuado pelos extremistas radicais do Boko Haram. Ao todo, 16 povoados foram massacrados, com incontáveis inocentes mortos. A Anistia Internacional informou que os ataques, realizados principalmente em Baga (estado de Borno) e cidades vizinhas, podem ter sido os “mais mortais do Boko Haram em um catálogo de ataques cada vez mais hediondos realizadas pelo grupo”. Onde está a comoção internacional diante deste massacre? Ou será que, na prática, o fato é de que a África não tem pessoas, ou que negros não valem tanto? Ou de fato, a midia apenas retrata o que é imposto pelo neoliberalismo: a vida só vale naquilo que represente ou se associe ao poder econômico?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O terrorismo, a extrema-direita e o suicídio europeu, segundo Flávio Aguiar






O ato terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo é apenas a ponta do iceberg. A Europa inteira está assentada sobre uma bomba-relógio.

O texto a seguir, de Fláviio Aguiar, foi retirado da Carta Maior:

O terrorismo, a extrema-direita e o suicídio europeu


Flávio Aguiar

O ato terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo francês, em Paris, que também provocou a morte de um funcionário da revista, de dois policiais no ato e possivelmente de mais um em tiroteio posterior, é apenas a ponta de um iceberg.

A Europa inteira está assentada sobre uma bomba-relógio. Não é uma bomba comum, porque casos como o do Charlie Hebdo mostram que ela já está explodindo. Nas pontas da bomba estão duas forças antagônicas, com práticas diferentes, porém com um traço em comum: a intolerância herdeira dos métodos fascistas de antanho.

De um lado, estão pessoas e grupos fanatizados que reivindicam uma versão do islamismo incompatível com o próprio Islã e o Corão, mas que agem em nome de ambos. Os contornos e o perfil destes grupos estão passando por uma transformação – o que aconteceu também nos Estados Unidos, no atentado em Boston, durante a maratona, e no Canadá, no ataque ao Parlamento, em Ottawa.

Cada vez mais aparecem “iniciativas individuais” nas ações perpetradas. Este tipo de terrorismo se fragmentou em pequenos grupos – muitas vezes de familiares – que agem “à la cria”, como se dizia, em ações que parecem “espontâneas” e até “amalucadas”, mas que obedecem a princípios e uma lógica cuja versão mais elaborada, para além da “franquia” em que a Al-Qaïda se transformou, é o Estado Islâmico que se estruturou graças à desestruturação do Iraque e da Síria. São fanáticos que negam a política consuetudinária como meio de expressão de reivindicações e direitos: negam, no fundo, a própria ideia de “direitos”, inclusive o direito à vida, como fica claro no gesto assassino que vitimou o Charlie Hebdo.

Do outro, estão os neofascistas – ou antigos redivivos – que se agarram à bandeira do anti-islamismo também fanático como meio de arregimentar “as massas” em torno de si e de suas propostas. Agem de acordo com as características próprias dos países em que atuam, mobilizando, de acordo com as circunstâncias, as palavras adequadas. No Reino Unido, criaram o United Kingdom Independence Party – UKIP, Partido da Independência do Reino Unido, nome malandro que oculta e ao mesmo tempo carrega a ojeriza pela União Europeia. Na França têm a Front Nationale da família Le Pen, que mobiliza o velho chauvinismo francês que lateja o tempo todo desde o caso Dreyfus, ainda no século XIX. Na Alemanha é feio ser nacionalista alemão, desde o fim da Segunda Guerra. Então criou-se um movimento – PEGIDA – que se declara de “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”, procurando uma fachada pseudamente universalista para seus preconceitos anti-Islã e anti-imigrantes.

Esta, aliás, é a bandeira comum destes movimentos: fazer do imigrante ou do refugiado político ou econômico o bode-expiatório da situação de crise que o continente vive, assim como no passado se fez com o judeu e ainda hoje se faz com os roma e sinti(ditos ciganos). Na Itália este fascismo latente se organiza com o nome de “Liga Norte”, mobilizando o preconceito social contra o sul italiano, tradicionalmente mais empobrecido. São movimentos que, embora busquem por vezes o espaço da política partidária, como é o caso do UKIP e da Front Nationale, ou mesmo da Liga Norte, têm como cosmovisão a negação da política como espaço universal de manifestação de direitos e reivindicações. Negam a política como campo de manifestação das diferenças, barrando ao que consideram como alteridade o direito à expressão ou mesmo aos direitos comuns da cidadania. O exemplo histórico mais acabado disto foi o próprio nazismo que, chegando ao poder pelas urnas, fechou-as em seguida.

O caldo de cultura em que vicejam tais pinças contrárias à vigência dos princípios democráticos é o de uma crise econômico-financeira que se institucionalizou como paisagem social. Na Europa a tradição é a de que crises deste tipo levam a saídas pela direita. O crescimento do UKIP e da Front Nationale, partidos mais votados nas respectivas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2013, é eloquente neste sentido. Na Alemanha as manifestações de rua do PEGIDA vêm crescendo sistematicamente, atingindo o número de 18 mil pessoas na última delas, na cidade de Dresden, reduto tradicional de manifestações nostálgicas em relação ao passado nazismo devido a seu (também criminoso) bombardeio ao fim da Segunda Guerra pelos britânicos.

Deve-se notar, como fator de esperança, que manifestações contra estas formas de intolerância – o terrorismo que reinvindica o Islã como inspiração e os movimentos de extrema-direita – têm tomado corpo também. Houve manifestações de solidariedade aos mortos na França em várias cidades europeias e na Alemanha manifestações contra o PEGIDA reuniram milhares de pessoas em diferentes cidades. Mas pelo lado da exprema-direita cresce a aceitação de suas palavras de ordem na frente institucional (líderes do novo partido alemão Alternative für Deutschland têm acolhido reivindicações do PEGIDA) e junto à opinião pública. Na Alemanha recente pesquisa trouxe à baila o dado preocupante de que 61% dos entrevistados se declararam “anti-islâmicos”.

Como ficou feio alegar motivos racistas, o que se alega agora no lado intolerante é a “defesa da religião” ou a “incompatibilidade cultural”. Os assassinos do Charlie Hebdo gritavam – segundo testemunhas – estarem “vingando o profeta”, referência a caricaturas de Maomé consideradas ofensivas. Na outra ponta jovens da Front Nationale, também no ano passado,  recusavam a pecha de racistas e declaravam aceitar o mundo muçulmano – em “seus territórios”, não na Europa agora dita “judaico-cristã”, puxando para seu aprisco a etnia ou religião que a extrema-direita europeia antes condenava ao ostracismo, ao campo de concentração e ao extermínio.

Os partidos e políticos tradicionais, em sua maioria, estão brincando com fogo, sem se dar conta, talvez. Não aceitam o reconhecimento, por exemplo, que grupos por eles apoiados na Ucrânia são declaradamente fascistas, homofóbicos e até antissemitas. Preferem exacerbar o sentimento antirrusso e anti-Putin. Durante mais de uma década as duas agências do serviço secreto alemão concentraram-se em esmiuçar a vida dos partidos e grupos de esquerda (além dos possíveis terroristas islâmicos) e negligenciaram criminosamente o controle sobre os grupos e terroristas alemães. No momento o “grande terror” que se alastra no establishment europeu não é o de que a extrema-direita esteja em ascensão, embora isto também preocupe, mas é o provocado pela possibilidade de que um partido de esquerda, o Syriza, vença as eleições na Grécia (marcadas para 25 de janeiro), forme um governo, e assim ponha em risco os sacrossantos pilares dos planos de austeridade.

Nega-se o pilar da democracia: contra o Syriza agitam-se as ameaças de expulsão da Grécia da zona do euro e até da União Europeia; ou seja, procura-se castrar a livre manifestação do povo grego através da chantagem política e econômica.
Se as coisas continuarem como estão, poderemos estar assistindo o suicídio da Europa que conhecemos. O que nascerá destes escombros ainda se está por ver, mas boa coisa não será, nem para a Europa, nem para o mundo.

(*) Originalmente publicado no Blogue do Velho Mundo, na Rede Brasil Atual.

Bob Fernandes sobre o atentado contra o Charlie Hebdo na França e os ódios fomentados pela direita no Brasil

Segue video e transcrição do comentário do analista político Bob Fernandes, da TV Gazeta:



O atentado na França... e os ódios no Brasil


O ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo é um desses fatos que levam o mundo a refletir.

Doze mortos, entre eles quatro cartunistas. Desde 2011, quando publicou charge com o profeta Maomé, o semanário francês estava ameaçado.

O atentado em Paris teria sido motivado por ódio religioso ou, no mínimo, para provocar tal ódio. Portanto, um ato com origem e sentido ideológico.

O Brasil, cada vez mais mergulhado em ondas de ódio ideológico, tem reflexões a fazer.

O Estado brasileiro é oficialmente laico. O Estado, que é o dono dos espaços de radiodifusão, há décadas apenas assiste à escalada de intolerância religiosa.

Há anos terreiros são atacados e o candomblé é agredido e ridicularizado em alguns espaços na Tv e rádio.

Em 2014 terreiros foram alvo de atentados, por exemplo, na Bahia e no Rio.

E os ódios são variados. O Brasil é campeão mundial no assassinato de homossexuais. Em 2013 foram 312 assassinados. Até setembro passado, outros 218.

Isso diante da complacência com tipos notoriamente pregadores de ódio aos homossexuais. E não apenas.

Nas redes sociais, acoitados pelo anonimato covarde, há os que pregam morte a quem critique seu líder político. A quem fascistas tratam por um dos seus sobrenomes, "Messias".

O que não faltou durante a campanha eleitoral, e sobra desde então, é generalizado ódio ideológico, político-partidário.

De uns que enxergam a oposição como inimigo a ser exterminado.

Ou dos que confundem a resistência a ditaduras com o que chamam de "terrorismo". E isso ao mesmo tempo em que clamam por outra ditadura.

Essa é uma gente que não sabe, a propósito da França, que franceses veem De Gaulle como grande líder no século XX.

Por De Gaulle ter comandado a resistência a um regime ilegal durante a II Guerra. Por aqui, fosse no embalo da ignorancia e burrice, De Gaulle seria chamado de "terrorista".

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A relação de Jesus com as mulheres e o aspecto feminino de Deus

Reflexões sobre o Jesus Histórico, parte 2

Anotações, Comentários e Resumos baseado em capítulos do livro de Gerd Theissen e Annette Merz, professores da Universidade de Heidelberg

“O Jesus Histórico”





Jesus e as mulheres

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

I - Introdução

Dando prosseguimento ao estudo sobre o Jesus histórico tal qual as pesquisas acadêmicas o apresentam atualmente, destacaremos aqui a relação de Jesus com as mulheres em sua atividade pública, o que podemos perceber de socialmente revolucionário nesta interação e como ele entendia o lado materno de Deus.
           
            Comecemos por lembrar que a tradição posterior das comunidades cristãs de onde surgiram os evangelhos (escritos décadas após a crucificação e durante a crise das guerras judaicas contra Roma e da dupla perseguição aos cristãos por Roma e pelo Sinédrio), ao elaborarem as narrativas sobre a vida de Jesus, não deixaram de contaminar os relatos com a visão patriarcal dominante na época, o que também é encontrado, por exemplo, em Paulo de Tarso, principalmente na epístola (provavelmente não escrita por ele) aos colossenses. Convém, contudo, lembrar que a tradição que se constituiu sobre Jesus são formas de interpretação de Jesus, muitas vezes encobrindo parte de sua mensagem que, contudo, pode ser reconstituída de acordo com a análise das fontes, de onde é possível extrair “a linguagem” e as ideias de Jesus, e com o contexto histórico-social de sua época.

Assim, com este esclarecimento em mente, os professores Gerd Theissen e Annette Merz em seu livro “O Jesus Histórico”, (2002) ao introduzirem o estudo da relação de Jesus com as mulheres a partir de uma análise de seu contexto, começam por destacar que...

“(...) a tradição de Jesus tem um caráter androcêntrico e ambivalente em relação às mulheres. Por um lado, esta tradição é dominada por uma linguagem androcêntrica e por um patriarcalismo inabalável; por outro, pode-se reconhecer, tanto na tradição dos ditos como na tradição narrativa, uma surpreendente e múltipla participação de mulheres e relações com o mundo feminino” (op. Cit. p. 243).

Os elementos patriarcais que foram postos e/ou se desenvolveram com a tradição cristã posterior a Jesus – muito em especial após Constantino e sua transformação do movimento original de uma expressão popular dos oprimidos para uma religião dominada pelos opressores, através da oficialização de uma comunidade de teólogos comprometidas com a antiga visão do homem – já são conhecidos. Sabe-se o quanto foram utilizados, ou melhor, torcidos e reinterpretados para justificar uma cultura excludente e machista durante séculos. Não será este aspecto, de todo modo estranho à mensagem original de Jesus, como veremos, o objeto de estudo aqui. O que nos importa é exatamente aquele outro lado, mais luminoso e, por isso, mais “perigoso” para o status quo tradicional (político e religioso), qual seja, os elementos inclusivos da ação pública de Jesus, que resgatava a dignidade e o valor da mulher durante seu ministério público, pondo em questão a visão patriarcal convencional.

Citando ainda Theissen e Merz, no mesmo contexto social e a partir das fontes sobre a ação de Jesus frente à comunidade de pessoas que o conheceram, é bastante visível que...

“Diante dos elementos patriarcais, existem também elementos inclusivos na tradição de Jesus. Na tradição narrativa encontram-se muitas mulheres, em parte em papeis não típicos de seu gênero. Podemos mencionar como exemplo a unção do Messias em Mc 14, 3-9. A tradição dos ditos está cheia de “formação de (dizeres em) pares simétricos”, ditos duplos, nos quais há protagonistas masculinos e femininos e/ou seus âmbitos de vida e de trabalho são postos lado a lado. Podemos citar a parábola dupla (com mensagens semelhantes) do grão de mostarda e do fermento (lc. 13, 18s.20. par.), da ovelha e da moeda perdida (Lc 15,3-7; 8-10). Também podemos mencionar a parábola do amigo inoportuno e da viúva insistente (Lc 11,5-8; 18; 1-8). (...). O mundo do trabalho masculino e feminino são mencionados em Mt 24,40s (trabalho no campo e moer no moinho); Mc 2,21 (trabalho têxtil e produção de vinho), Mt 6,26.28 (fiação e trabalho no campo)” (Op. Cit., p. 243).

Portanto, fica claro que Jesus não se dirigia apenas a homens, mas sim a homens e mulheres e que estas faziam parte, senão em número igual ou superior ao dos homens, das pessoas que simpatizavam com ele e/ou o seguiam. Os autores citados acrescentam ainda que deve-se levar em consideração, nos ensinos de Jesus, as imagens metafóricas (em especial nas parábolas) em que se utilizam imagens do mundo feminino. Se ele o fez, é porque tais imagens foram consideradas pelo nazareno como mais apropriadas para dar uma ideia do trabalho e  cuidado de Deus – aliás, o colérico, ciumento e muitas vezes “infantil” deus de Moisés transforma-se, em Jesus, em Abba, “papai” amoroso e compreensivo -, ao mesmo tempo em que, assim fazendo, Jesus também promove uma crítica social contra a visão patriarcal: “a partir da mensagem do reino, cotidiano e atribuição de papeis femininos são relativizados” (Op. Cit., p. 244).

II – Mulheres no contexto de Jesus

Jesus não via as mulheres como “inferiores” aos homens. Várias passagens dos evangelhos sinóticos indicam isto, bem nos evangelhos não canônicos, como no de Tomé (por exemplo, no logion 114) e no de Maria Madalena, o primeiro redescoberto em 1945 e o segundo, em 1897. Aliás, são elas, as mulheres, segundo os textos canônicos, as primeiras a terem contato com a ressurreição. No evangelho de João, a primeira pessoa a ver e falar com o Cristo póstumo foi Maria Madalena. Deste modo, as mulheres se apresentam como destinatárias da mensagem de Jesus tanto quanto os homens. Ou melhor, são compreendidas por Jesus como pessoas responsáveis por si mesmas e em várias passagens elas apresentam uma coragem e fidelidades a Jesus superiores mesmo a dos apóstolos.  Além do mais, diante do já conhecido posicionamento crítico de Jesus frente às injustiças sociais, que promovem exclusões e opressões impostas, transformando pessoas em párias, convém refletir que

“A mensagem de Jesus dirige-se especialmente também às mulheres economicamente mais pobres e socialmente desprezadas, as prostitutas. Em Mt 21,31s ele promete a elas e aos cobradores de impostos acesso ao reino de Deus (...)” (Op. Cit., p. 244-245).

Nos relatos evangélicos (embora nem sempre bem compreendido, especialmente por evangélicos), grande parte das curas efetuadas por Jesus se dão sobre mulheres. Mas estas curas não foram efetuadas sem que não servissem em si como uma ilustração, sem que carreassem uma mensagem. A atenção dada por Jesus a elas nestas ações demonstra que a cura física seria a contrapartida e expressão da integridade e dignidade corporal das mulheres - tantas vezes vilipendiada pelas "regras de pureza" das escrituras veterotestamentárias e, portanto,  frequentemente desprezadas pelo patriarcalismo vulgar -, as inserindo na comunidade dos que foram tocados pelo reino de Deus. Em outras palavras, Jesus questiona tudo aquilo no Antigo Testamento que reduz a humanidade a "coisa" - e as mulheres são metade da humanidade -, o que já por si demonstra a relativização do conceito de "sacralidade" dada às escrituras, textos escritos por pessoas em um contexto histórico específico.

Uma das passagens mais singulares dos evangelhos - que, alias, é a única em que Jesus se deixa convencer por alguém, ou seja, a única em que, em um diálogo, ele não domina a argumentação -, é a que relata o encontro de Jesus  com uma mulher sírio-fenícia, em Mc 7,24-30. Nela, uma não judia implora a Jesus que cure sua filha enferma. Na narração Jesus parece resistir, usando uma argumentação nacionalista (que parece ter sido usada de propósito para chamar a atenção dos circunstantes à cena), mas, diante da sinceridade da estrangeira, ele cede e cura, à distância, a menina. Fica claro que a ocasião foi usada para mostrar que o direito ao reino é posto para todas as pessoas, independente de origem, sexo ou nacionalidade.

          Outra passagem célebre - e bastante incisiva na crítica ao patriarcalismo - é discutia por Theissen e Merz:

“A mulher com hemorragia (Mc 5,25-34), além de sua enfermidade, tinha de sofrer marginalização social e cúltica, que a faz carregar sempre consigo sua impureza, uma forma acentuada de separação que atingia todas as mulheres menstruadas. Ela rompe com o tabu do toque, o que é tornado público por Jesus e interpretado como expressão (positiva) de sua fé” (Op. Cit. p. 245).

Entre os seguidores de Jesus, especialmente os que o acompanham até Jerusalém e que, após a sua morte, continuaram seu ministério, contavam-se mulheres, o que é reconhecido mesmo por Paulo (Rm 16,12 e Fl 4,2s). Ademais, muitos dos ditos sapienciais e éticos de Jesus apresentam imagens que são próprias de atividades domésticas (femininas) e laborais externas (masculinas): A exortação para não preocupar-se a (Mt 6,25ss / Lc 12,22ss) compara os ouvintes a pássaros e lírios do campo, que não fiam, não semeiam, nem colhem . A audiência, portanto, era formada por seguidoras e seguidores considerados iguais.

III – O mundo das mulheres e o lado materno de Deus

Citações e imagens, nos ensinos de Jesus, que apresentam figurações próprias do mundo das mulheres se tornam significativas porque representam uma corajosa exceção em uma cultura dominada por preconceitos machistas.

“Cada referência explícita faz com que as mulheres sejam visíveis e dessa forma tematiza obrigatoriamente seu valor, contra os dogmas básicos da cultura patriarcal. A inclusão do mundo feminino na linguagem do anúncio tem como causa uma sensibilidade aguçada de Jesus e dos que o seguiam para com o clamor dos marginalizados, a quem a mensagem do reino de Deus vindouro é primeiramente dirigida, e à participação ativa das mulheres no movimento de Jesus” (Op. Cit.,  p. 247).

                Contudo, existe um outro efeito ainda mais revolucionário da apresentação do universo feminino nas parábolas de Jesus. Ela é usada tanto para destacar a humanidade das mulheres quanto para mostrar o aspecto materno de Deus:

                “A escolha de mulheres como atrizes nas parábolas e em formas parabólicas as transformam em figuras de identificação para mulheres e homens. Se na parábola do amigo que pede (Lc 11, 5-8) outra é posta ao lado, a da viúva que luta insistentemente por seu direito (Lc 18,1-8), isto significa que uma mulher representa um comportamento adequando ‘de homens’ diante de Deus. Tal uso de imagens é um protesto implícito contra a imanente equivalência entre ser humano e homem, imanente na linguagem.

                “As parábolas do fermento (Lc 13,20/Tomé 96) e da moeda perdida (Lc 15,8-10) apresentam a mulher e seu mundo como imagem para a ação de Deus. A mulher que busca a moeda necessária para a aquisição do que é indispensável, as mãos de mulher que preparam o pão essencial para a sobrevivência são imagens transparentes do cuidado de Deus com o ser humano e para o cumprimento do reino prometido. Tal uso de imagens é um protesto implícito contra a simbolização frequente (e ainda usual) de Deus em categorias masculinas” (Op. Cit., pp. 247-248).

Bibliografia consultada:


Theissen, Gerd & Merz, Annette (2002). O Jesus Histórico – um manual. Editora Loyola, São Paulo.

João Pessoa, Paraíba, 06 de janeiro de 2015

domingo, 4 de janeiro de 2015

Boaventura de Sousa Santos reflete sobre os preparativos do capitalismo para uma insana Terceira Guerra Mundial


A Terceira Guerra Mundia?


Boaventura de Sousa Santos

Tudo leva a crer que está em preparação a terceira guerra mundial, se entendermos por “mundial” uma guerra que tem o seu teatro principal de operações na Europa e se repercute em diferentes partes do mundo. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da Europa. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia. 

Num raro momento de consenso entre os dois partidos, o Congresso dos EUA aprovou no passado dia 4 de dezembro a Resolução 758 que autoriza o Presidente a adotar medidas mais agressivas de sanções e de isolamento da Rússia, a fornecer armas e outras ajudas ao governo da Ucrânia e a fortalecer a presença militar dos EUA nos países vizinhos da Rússia. A escalada da provocação à Rússia tem vários componentes que, no conjunto, constituem a segunda guerra fria. Nesta, ao contrário da primeira, a Europa é um participante ativo, ainda que subordinado aos EUA, e assume-se agora a possibilidade de guerra total e, portanto, de guerra nuclear. Várias agências de segurança fazem planos já para o Day After de um confronto nuclear.

Os componentes da provocação ocidental são três: sanções para debilitar a Rússia; instalação de um governo satélite em Kiev; guerra de propaganda. As sanções são conhecidas, sendo a mais insidiosa a redução do preço do petróleo, que afeta de modo decisivo as exportações de petróleo da Rússia, uma das mais importantes fontes de financiamento do país. O orçamento da Rússia para o próximo ano  foi elaborado com base no preço do petróleo à razão de 100 dólares por barril. A redução do preço combinada com as outras sanções e a desvalorização do rublo agravarão perigosamente o déficit orçamental. Esta redução trará o benefício adicional de criar sérias dificuldades a outros países considerados hostis (Venezuela, Irã e Equador). A redução é possível graças ao pacto celebrado entre os EUA e a Arábia Saudita, nos termos do qual os EUA protegem a família real (odiada na região) em troca da manutenção da economia dos petrodólares (transações mundiais de petróleo denominadas em dólares), sem os quais o dólar colapsa enquanto reserva internacional e, com ele, a economia dos EUA, o país com a maior e mais obviamente impagável dívida do mundo.

O segundo componente é o controle total do governo da Ucrânia de modo a transformar este país num estado satélite. O respeitado jornalista Robert Parry (que denunciou o escândalo do Irã-contra) informa que a nova ministra das finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, é uma ex-funcionária do Departamento de Estado, cidadã dos EUA, que obteve cidadania ucraniana dias antes de assumir o cargo. Foi até agora presidente de várias empresas financiadas pelo governo norte-americano e criadas para atuar na Ucrânia. Agora compreende-se melhor a explosão, em fevereiro passado, da secretária de estado norte-americana para os assuntos europeus, Victoria Nulland: “Fuck the EU”. O que ela quis dizer foi: “Raios! A Ucrânia é nossa. Pagamos para isso”.

O terceiro componente é a guerra de propaganda. Os grandes media e seus jornalistas estão a ser pressionados para difundirem tudo o que legitime a provocação ocidental e ocultarem tudo o que a questione. Os mesmos jornalistas que, depois dos briefings nas embaixadas dos EUA e em Washington, encheram as páginas dos seus jornais com a mentira das armas de destruição massiva de Saddam Hussein, estão agora a enchê-las com a mentira da agressão da Rússia contra a Ucrânia. Peço aos leitores que imaginem o escândalo mediático que ocorreria se se soubesse que o Presidente da Síria acabara de nomear um ministro iraniano a quem dias antes concedera a nacionalidade síria. Ou que comparem o modo como foram noticiados e analisados os protestos em Kiev em fevereiro passado e os protestos em Hong Kong das últimas semanas. Ou ainda que avaliem o relevo dado à declaração de Henri Kissinger de que é uma temeridade estar a provocar a Rússia. 

Outro grande jornalista, John Pilger, dizia recentemente que, se os jornalistas tivessem resistido à guerra de propaganda, talvez se tivesse evitado a guerra do Iraque em que morreram até ao fim da semana passada 1.455.590 iraquianos e 4801 soldados norte-americanos. Quantos ucranianos morrerão na guerra que está a ser preparada? E quantos não-ucranianos?

Estamos em democracia quando 67% dos norte-americanos são contra a entrega de armas à Ucrânia e 98% dos seus representantes votam a favor? Estamos em democracia na Europa quando países da UE membros da NATO podem estar a ser conduzidos, à revelia dos cidadãos, a travar uma guerra contra a Rússia em benefício dos EUA, ou quando o parlamento europeu segue nas suas rotinas de conforto enquanto a Europa está a ser preparada para ser o próximo teatro de guerra, e a Ucrânia, a próxima Líbia?

As razões da insanidade 

 Para entender o que se está a passar é preciso ter em conta dois fatos: o declínio dos EUA enquanto país hegemônico; o negócio altamente lucrativo da guerra. O declínio do poder econômico-financeiro é cada vez mais evidente. Depois do 11 de Setembro de 2001, a CIA financiou um projeto chamado “projeto profecia” destinado a prever possíveis novos ataques aos EUA a partir de movimentos financeiros estranhos e de grande envergadura. Sob diferentes formas, esse projeto tem continuado, e um dos seus participantes prevê o próximo crash do sistema financeiro com base nos seguintes sinais: a Rússia e a China, os maiores credores dos EUA, têm vindo a vender os títulos do tesouro e em troca têm vindo a adquirir enormes quantidades de ouro; estranhamente, este títulos têm vindo a ser comprados em grandes quantidades por misteriosos investidores belgas e muito acima da capacidade deste pequeno país (especula-se se o próprio banco de reserva federal não estará envolvido nesta operação); aqueles dois países estão cada vez mais a usar as suas moedas e não os petrodólares nas transações de petróleo (todos se recordam que Saddam e Kadafi  procuraram usar o euro e o preço que pagaram pela ousadia); finalmente, o FMI (o cavalo de Troia) prepara-se para que o dólar deixe de ser nos próximos anos a moeda de reserva e seja substituída por uma moeda global, os SDR (special drawing rights).

Para os autores do projeto profecia, tudo isto indica que um ataque aos EUA está próximo e que para este se defender tem de manter os petrodólares a todo o custo, assegurando o acesso privilegiado ao petróleo e ao gás, tem de conter a China e tem de debilitar a Rússia, idealmente provocando a sua desintegração, tipo Jugoslávia. Curiosamente, os “especialistas” que veêm na venda da dívida uma atitude hostil por parte de potências agressoras são os mesmos que aconselham os investidores norte-americanos a procederem da mesma maneira, isto é, a desfazerem-se dos títulos, a comprar moedas de ouro e a investirem em bens sem os quais os humanos não podem viver: terra, água, alimentos, recursos naturais, energia.

Transformar os sinais óbvios de declínio em previsões de agressão visa justificar a guerra como defesa. Ora a guerra é altamente lucrativa devido à superioridade dos EUA na condução da guerra, no fornecimento de equipamentos e nos trabalhos de reconstrução. E a verdade é que, como escreveu Howard Zinn, os EUA têm estado permanentemente em guerra desde a sua fundação. Acresce que, ao contrário da Europa, a guerra nunca será travada em solo norte-americano, salvo, claro, o caso de guerra nuclear. Em 14 de Outubro de 2014, o New York Times divulgava o relatório da CIA sobre o fornecimento clandestino e ilegal de armas e financiamento de guerras nos últimos 67 anos em muitos países, entre eles, Cuba, Angola e Nicarágua. Esta notícia serviu para que Noam Chomsky dissesse em “The Laura Flanders Show” que aquele documento só podia ter o seguinte título: “Yes, we declare ourselves to be the world´s leading terrorist state. We are proud of it” (“Sim, declaramos que somos o maior estado terrorista do mundo e temos orgulho nisso”).

Um país em declínio tende a tornar-se caótico e errático na sua política internacional. Immanuel Wallerstein refere que os EUA se transformaram num canhão descontrolado (a loose canon), um poder cujas ações são imprevisíveis, incontroláveis e perigosas para ele próprio e para os outros. A consequência mais dramática é que esta irracionalidade se repercute e intensifica na política dos seus aliados. Ao deixar-se envolver na nova guerra fria, a Europa, não só atua contra os seus interesses econômicos, como perde a relativa autonomia que tinha construído no plano internacional depois de 1945. A Europa tem todo o interesse em continuar a intensificar as suas relações comerciais com a Rússia e em contar com esta como fornecedora de petróleo e gás. As sanções contra a Rússia podem a vir a afetar mais a Europa que a Rússia. Ao alinhar-se com o militarismo da OTAN onde os EUA têm total preponderância, a Europa põe a economia europeia ao serviço da política geoestratégica dos EUA, torna-se energeticamente mais dependente dos EUA e dos seus estados satélites, perde a oportunidade de se expandir com a entrada da Turquia na União Europeia. E o mais grave é que esta irracionalidade não é o mero resultado de um erro da avaliação dos interesses dos europeus. É muito provavelmente um ato de sabotagem por parte das elites neoconservadoras europeias no sentido de tornar a Europa mais dependente dos EUA, tanto no plano energético e econômico, como no plano militar.

Por isso, o aprofundamento do envolvimento na OTAN e o tratado de livre comércio entre a UE e os EUA (parceria transatlântica de investimento e comércio) são os dois lados da mesma moeda.  

Pode argumentar-se que a nova guerra fria, tal como a anterior, não conduzirá a um enfrentamento total. Mas não esqueçamos que a primeira guerra mundial foi considerada, quando começou, uma escaramuça que não duraria mais de uns meses. Durou quatro anos e custou entre 9 e 15 milhões de mortos.  

Fonte: Carta Maior

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Leonardo Boff: "Apoio ao Papa Francisco contra seus detratores"

 As propostas de abertura e maior justiça social e modernização da Igreja, voltada para os mais pobres e em apoio aos oprimidos, levadas adiante pelo Papa Francisco vem encontrado cada vez maior resistência por parte dos reacionários da cúria e dos elitistas e conservadores de fora da Igreja. Segue, sobre o assunto, artigo de Leonardo Boff publicado em Carta Maior:





Está se articulando em várias partes do mundo, mas principalmente na Itália entre cardeais e pessoas da Cúria mas tambem entre grupos leigos conservadores uma dura resistência e demolição da figura do Papa Francisco. Escondendo-se atrás de um escritor leigo famoso, convertido, Vittorio Messori, mostram seu mal-estar.


Assim que com tristeza li um artigo de Vittorio Messori, no Corriere della Sera de Milão com o titulo:”As opções de Francisco: dúvidas sobre a virada do Papa Francisco”(24/12-2014). Esperou a véspera do Natal para atingir mais profundamente o Papa. O que lhe critica é especilmente a sua “imprevisibilidade que continua perturbando a tranquilidade do católico médio”. Ele admira a perspectiva linear “do amado Joseph Ratzinger”. E sob palavras piedosas instila insidiosamente muito veneno. E o faz, como confessa, em nome de muitos que não têm coragem de expor-se.


Quero propor um contraponto às dúvidas de Messori. Este não percebe os novos sinais dos tempos trazidos por Francisco de Roma. Ademais demonstra três insuficiências: duas de natureza teológica e uma de interpretação da relevância da Igreja do Terceiro Mundo.


Ele se escandalizou com a “imprevisibilidade” deste Pastor “que continua perturbando a tranquilidade do católico médio”. Há de se perguntar pela qualidade da fé deste “católico médio” que sente dificuldade de entender um pastor que tem “odor de ovelhas” e anuncia “a alegria do evengelho”. São geralmente católicos culturais, habituados à figura faraônica de um Papa com todos os símbolos do poder dos imperadores romanos pagãos. Agora comparece um Papa “franciscano”que confere centralidade aos pobres, não “veste Prada”, critica corajosamente o sistema econômico que produz tantos pobres no mudo, que abre a Igreja a todos os seres humanos sem julgá-los, mas acolhendo-os no espírito que ele chamou de “revolução da ternura”, falando aos bispos latinoamericanos.


Há um notável vazio no pensamento de Messori. Estas são as duas insuficiências teológicas: a quase ausência do Espírito Santo e o cristomonismo. Quer dizer: só Cristo conta. Não há proriamente um lugar para o Espírito Santo. Tudo na Igreja se resolve unicamente com Cristo, coisa que não corresponde ao que ensinou Jesus. Por que digo isso? Porque o que ele deplora na ação pastoral do Papa é a “imprevisibilidade”. Ora, esta é a caracterítisca do Espírito no dizer de São João:”Ele sopra onde quer e lhe ouves voz mas não sabes de onde vem nem para onde vai”(3,8). Sua natureza é a irrupção imprevista.


Messori é refém de uma visão linear, própria de seu “amado Joseph Ratzinger” e de outros Papas anteriores. Ora, importa reconhecer que foi exatamente esta visão linear que transformou a Igreja numa fortaleza, incapaz de comprender a complexidade do mundo moderno, isolada no meio das demais Igrejas e caminhos espirituais, sem dialogar e aprender dos outros, também iluminados pelo Espírito Santo. Seria blasfemar contra o Espírito imaginar que os outros somente pensaram erros. Por isso é sumamente importante uma Igreja aberta, como o quer o Papa Francisco, para perceber as irrupções imprevistas do Espíprito na história. Não sem razão alguns teólogos o chamam a “fantasia de Deus”, em razão de sua criatividade e novidade para a história e a Igreja. 


Sem o Espírito Santo a Igreja se tornaria uma instituição pesada, e sem criatividade. No fundo, teria pouco a dizer ao mundo a não ser doutrinas sobre doutrinas, sem levar a um encontro vivo com Cristo e sem suscitar esperança e alegria de viver.


Significa um dom do Espírito o fato de que este Papa tenha vindo fora da velha e cansada cristandade européia. Não se apresenta como refinado teólogo, mas como um zeloso Pastor que realiza o mandato de Jesus a Pedro:”confirma os irmãos e as irmãs na fé”(Lc 22,31). Carrega consigo a esperiência das Igrejas do Terceiro mundo, particularmente, da América Latina.


Esta é outra insuficiência de Messori: o de não ter dimensionado o fato de que hoje por hoje, o Cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, como tantas vezes o tem enfatizado o teólogo alemão J. B. Metz. Na Europa os católicos não chegam a 25%, enquant que no Terceiro Mundo alcançam quase 73% e na América Latina cerca de 49%.


Por que não acolher a novidade que se deriva destas Igrejas já que não são mais Igrejas-espelho das velhas Igrejas européias, mas Igrejas-fonte com seus mártires, confessores e teólogos?


Podemos imaginar que num futuro não muito distante a sede do primado não continue mais em Roma com a Cúria, com todas as contradições recentemente denunciadas com coragem pelo Papa Francisco com palavras somente ouvidas da boca de Lutero e no meu livro Igreja: carisma e poder (1984), que lido na ótica de hoje é antes um livro inocente que crítico. Faria sentido que a sede primacial estivesse lá onde se encontra a maioria dos católicos que está na América Latina, Africa e Ásia. Seguramente seria um sinal inequívoco da verdadeira catolicidade da Igreja dentro da nova fase globalizada da humanidade.


Esperava, sinceramente, uma maior inteligência de fé e mais abertura de Vittorio Messori, não obstante seus méritos de católico, fiel a um modelo clássico de Igreja e de notório escritor. Este Papa trouxe esperança e ar fresco para tantos católicos e a outros cristãos que se orgulham dele.


Não percamos esse dom do Espírito por causa de análises antes negativas que positivas e que não reforçam a “alegria do evangelho” para todos.


(*) Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Idéias, Rio, 2014.