Do Instituto Humanitas Unisinos:
Os cátaros constituíram, na clandestinidade, uma "Eglesia de Deu" própria, como autênticos discípulos de Cristo, na pobreza, com uma liturgia essencial própria, que tinha no consolamentum, o batismo espiritual, o seu sacramento principal.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal italiano, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura do Vaticano, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 05-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em uma primavera límpida e ventosa de 1317, ao longo da estrada para Pamiers, no Languedoc francês, que corria entre as montanhas de Sabartés, avançava um personagem forte e rijo, o cisterciense Jacques Fournier, destinado a se tornar bispo daquela cidade.
Cerca de 20 anos depois, em 1334, esse filho de um moleiro seria eleito papa em Avignon, durante o célebre "cativeiro", com o nome de Bento XII. Com a rudeza que o caracterizava, havia reagido assim com relação aos cardeais eleitores: "Mas, irmãos, o que vocês fizeram? Elegeram um asno!".
Seu desejo era o de levar a Sé Apostólica novamente para Roma, mas a oposição de Filipe de Valois e dos cardeais, habituados aos doces ócios de Avignon, haviam frustrado o sonho desse monge que se tornou papa, mas que permaneceu, na alma e estilo de vida, um fervoroso fiel e um asceta.
Sua figura havia se cruzado, no entanto, principalmente com os últimos cátaros, que haviam atiçado uma labareda espiritual poderosa durante o século anterior, que havia desembocado em um incêndio concreto, quando, no dia 16 de março de 1244, aos pés do altiplano de Montségur, seu último reduto, 220 tochas humanas, em um fogo impressionante, haviam selado um período histórico glorioso para essa heresia de molde dualista e rigorista.
Embora eles não se chamassem assim, o termo "cátaro" derivava do grego katharós, "puro", mas os seus adversários – como Alan de Lille, em seu De fide catholica contra hereticos – preferiam remeter depreciativamente a catus, "gato", um sinal diabólico, acusando-os de adorá-lo.
Conhecemos, na verdade, muito bem a sua doutrina e os seus ritos por meio de textos que chegaram até nós, como O livro dos dois princípios, a Ceia secreta, a Visão de Isaías e vários de seus rituais, ou por meio das contestações teológicas dos adversários como a Summa contra Catharos, um tratado sobre a sua dogmática, escrita por um ex-adepto como Raynier Sacconi, que passou depois para os dominicanos.
A sua reforma religiosa, que havia tomado percursos muitas vezes radicais, havia se envolvido em uma real crise espiritual e pastoral da Igreja, que São Bernardo assim descrveria em 1145: "As basílica estão sem fiéis; os fiéis, sem padres; os padres, sem honra. Nada mais há do que cristãos sem Cristo. Os sacramentos são vilipendiados; as festas solenes não são mais celebradas".
Nesse vácuo, os cátaros, particularmente na terra provençal, haviam constituído, na clandestinidade, uma "Eglesia de Deu" própria, como autênticos discípulos de Cristo, na pobreza, com uma liturgia essencial própria, que tinha no consolamentum, o batismo espiritual, o seu sacramento principal.
O espelho dessa comunidade, que havia reunido fiéis transversalmente de todas as classes sociais, pode ser retraçado ao vivo nos interrogatórios que os inquisidores – e entre estes destacava-se justamente o firme, mas não cruel, Jacques Fournier – conduziam, durante aquele reaparecimento que o catarismo teve na Provença nas primeiras décadas do século XIV, depois das fogueiras do século anterior.
Quem nos oferece esse emocionante testemunho em primeira pessoa é agora uma estudiosa de Milão (também são conhecidas as pesquisas do francês Michel Roquebert), Elena Bonoldi Gattermayer, que, em Il processo agli ultimi catari (Milão, Jaca Book, 2011, 316 páginas), traduz os autos daqueles interrogatórios, extraindo-os do manuscrito latino vaticano 4030, o que já foi feito integralmente em francês por Jean Duvernoy (Mouton, Paris, 1978).
A seleção de cerca de 20 interrogatórios é muito sugestiva, porque consegue tornar variado o espectro das figuras que desfilavam diante do Inquisidor, muitas vezes, expressando-se na língua de Oc, criando assim problemas para os redatores dos verbais latinos e para os próprios inquisidores (certamente não ao futuro Bento XII, que conhecia bem essa língua). Assim, ao lado de modestos camponeses e pastores, apresentavam-se um "oficial público", ou seja, um alto funcionário, uma mulher nobre, uma burguesa, um empresário, um médico notário, até mesmo um judeu chamado e o chefe do leprosário de Pamiers, acusado de elaborar poções mágicas e venenos.
Também entram em cena personagens que, por recompensa, denunciavam os cátaros às autoridades: com relação a eles, se procede com severidade para verificar seu comportamento. Em um caso, registra-se também o fluxo de cátaros para o exterior, em busca de abrigo, por exemplo na Lombardia.
Outras vezes, dado o caráter esotérico da fé cátara, remexe-se no interior de suas crenças: é interessante a investigação sobre o testemunho de uma viúva para isolar a sua concepção da alma. Os cátaros, de fato, distinguiam entre "alma" e "espírito", este último como sede de Deus na pessoa, enquanto a primeira era o princípio da sensibilidade, da afetividade e das paixões.
Nesse rastro, chega-se, também, em um outro caso, à visão do além. Revela-se, no entanto, a altivez de muitos desses inquiridos, que cruzam a fidelidade às suas convicções religiosas com uma consciência da dignidade da sua cultura, a ponto de surpreender o leitor de hoje. Por outro lado, o Inquisidor também mostra, no rigor da sua investigação, uma precisão e um certo respeito pelas regras, não contentando-se com um processo-farsa. Um retrato, portanto, de uma época, mas também de uma sociedade.
Quem eram os cátaros
O catarismo constituía um movimento herético entre os séculos XII e XIV. Sob o nome de "albigenses" (do nome da cidadela francesa de Albi), foram assim, depois, designadas as pessoas envolvidas no apoio religioso ao movimento que surgiu em torno do século XII na Provença.