Sobre o modo de governo bolsonarista está alinhado a preceitos do neoliberalismo e implementa uma agenda moralizadora cristã patriarcal e racista, empreendida por meios persecutórios e militaristas.
Do site Justificando:
Sexta-feira, 17 de abril de 2020
A tecnologia da crueldade na teopolítica neocolonial bolsonarista
Arte: Ivy Frizo/Justificando
Por Tatiana Lionço
O modo de governo bolsonarista está alinhado a preceitos do neoliberalismo e implementa uma agenda moralizadora cristã patriarcal e racista, empreendida por meios persecutórios e militaristas.
A retomada de valores cristãos na retórica estatal remete a um modelo de moralização no neoliberalismo constituído nos Estados Unidos da América, que faz coincidir os interesses do Capital à retórica moral de base religiosa. Pode-se compreender que a chamada Direita Cristã, tal como organizada transnacionalmente, é um ator/movimento político que conjuga o autoritarismo religioso às novas práticas de violência estatais do capitalismo neoliberal. Requerem (1) o Estado mínimo; (2) a segurança por meio da força policial e militar; (3) a liberdade para odiar a oposição/diferença, e (4) a censura das vozes críticas à hegemonia do patriarcado branco patrimonialista por meios legais e cumprindo ritos burocráticos da democracia.
Tenho compreendido este modo de governo como teopolítica neocolonial, implementada por meio de tecnologias de crueldade que ecoam (1) a demonização das alteridades tal como empreendida na colonização cristã do território brasileiro, bem como (2) a descrição de grupos sociais dissidentes ao projeto de dominação como terrorismo ou risco civilizatório a ser suprimido para a garantia da ordem social e estatal. A retórica bolsonarista visa legitimar o empreendimento de medidas estatais de destruição/supressão de inimigos políticos, a partir da violência moralmente justificada contra estas alteridades.
Essa teopolítica, conceito adotado por Ernesto Araújo em seu artigo Trump e o Ocidente [1], consiste em legitimar moralmente medidas estatais cruéis e autoritárias por meio da adesão explícita ao cristianismo. Deus é usado como argumento para justificar moralmente medidas governamentais autoritárias e violentas, não passíveis de crítica ou de negociação no pacto social. O desmonte das políticas públicas pautadas na laicidade e no respeito aos direitos humanos como saúde mental e educação, por um lado, e a criminalização dos movimentos sociais e da população pobre, por outro, se operacionalizam por meio da retórica governamental de superioridade moral cristã. O caráter neocolonial pode ser depreendido a partir da adoção de medidas governamentais favoráveis ao mercado financeiro internacional e contrárias aos interesses da população brasileira. As técnicas de crueldade implementadas por este governo autoritário ecoam, ainda, representações históricas de justificação moral da violência racista e sexista pautadas em uma suposta superioridade moral ocidental de base cristã higienista, patriarcal e patrimonialista.
A crueldade é aqui compreendida como tecnologia de governos autoritários. Trata-se de um dispositivo estratégico, que se transmite transgeracionalmente por meio de representações e discursos associados a práticas de perseguição e extermínio. Colonização/Inquisição; ditadura militar; segurança nacional no Estado neoliberal: as técnicas de crueldade são muito parecidas, se repetindo na necropolítica racista e na manutenção de uma retórica moral que supostamente justificaria a destruição de alteridades e a censura das dissidências políticas.
A tecnologia da crueldade na teopolítica neocolonial bolsonarista recupera as táticas de imposição de sofrimento (tortura física e moral/psicológica; censura; extermínio), mas também o imaginário compartilhado na produção de inimigos a serem combatidos (erros de fé na heresia e na bruxaria; indígenas e africanos não passíveis de conversão/dominação; comunistas, terroristas, feministas). No bolsonarismo, o ataque frontal às universidades e os ataques morais a movimentos sociais, por meio da criminalização da luta pelo direito à terra dos povos tradicionais e da demonização dos feminismos e povos tradicionais, denotam uma retórica conspiratória que visa identificar e descrever inimigos: todos aqueles contrários aos interesses da “Nação, da Igreja e da Família” patrimonialista.
Medidas adotadas pelo Governo Bolsonaro, mas também o documento que institui o programa do partido político proposto por Jair Bolsonaro – Aliança pelo Brasil [2] – denotam o caráter teopolítico neocolonial do bolsonarismo. A tecnologia da crueldade que vem sendo empreendida hoje é a da imposição das fake news, o assassinato de reputações, o massacre de povos indígenas e quilombolas, a conivência com o machismo feminicida e LGBTfóbico, além do acirramento da agonia penal e carcerária. O processo de colonização brasileiro, tal como marcado pelo racismo e pela imposição da moralidade cristã, legou imaginários demonizadores contra grupos sociais historicamente marginalizados, e tecnologias de imposição do sofrimento como tática de instauração da ordem social e moral.
Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora da Universidade de Brasília.
Notas:
[1] ARAÚJO, Ernesto. Trump e o ocidente. Cadernos de Política Exterior, IPRI: Fundação Alexandre de Gusmão, ano III, n. 6, pp. 323-358, 2017.
[2] O Programa da Aliança pelo Brasil pode ser acessado por meio do link: https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2019/11/PROGRAMA-DA-ALIANC%CC%A7A-PELO-BRASIL-1.pdf
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