A epidemia só tem evidenciado a tragédia e o abandono vivido pelas favelas há décadas
Por Carol Pires
Distanciamento social, lavar as mãos frequentemente, capacidade de fazer testes massivos de diagnóstico e isolamento dos infectados: as recomendações para deter o avanço do coronavírus são relativamente fáceis. Mas não para 13 milhões de pessoas que vivem nas favelas do Brasil: com uma alta densidade demográfica, serviços básicos — como água e luz — deficientes e, muitas vezes, sem nenhum sistema de esgoto.
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“Aqui na favela só cai água duas vezes na semana. Nós economizamos água não só por consciência, mas também por sobrevivência. Lavar a mão o tempo inteiro, não é uma possibilidade”, escreveu o ativista Raull Santiago, que vive no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O Ministério da Saúde prevê que primeiro auge de infectados ocorra nas próximas semanas. Mas, até agora, não tem um plano de combate especial para os bairros menos favorecidos do Brasil.
Nas favelas do meu país há um vazio do poder Estatal que foi ocupado por milícias e narcotraficantes. Nas milhares de pequenas construções, vivem cinco ou até dez pessoas, para quem um distanciamento social é impossível. A maioria vive de trabalhos informais e tampouco podem se dar ao luxo de ficar em casa sem correr o risco de passar fome.
Desde que Jair Bolsonaro chegou à presidência, em janeiro de 2019, esse vazio se aprofundou: seu governo tem favorecido políticas de austeridade que reduziu benefícios sociais e aumentou a desigualdade. Mas enquanto especialistas asseguram que a COVID-19 golpeará desproporcionalmente os mais pobres, Bolsonaro não apenas não tem um plano estratégico para enfrentar a emergência nas favelas, como sequer admite que o país está passando por uma crise de saúde pública.
No dia 29 de março, o presidente desdenhou das recomendações do Ministério da Saúde e saiu nas ruas de Brasília. Na semana passada, já tinha criticado as medidas de confinamento decretadas por alguns governadores e insistiu que “o Brasil não pode parar”.
No Centro de São Paulo, onde eu vivo, e em várias cidades do país, a resposta a essas declarações foram um ruidoso e prolongado panelaço, que se tornou rotina nas noites de quarentena. Mas em muitas favelas, o discurso incentivou que as pessoas voltasse às ruas. (Em outras, a displicência do governo federal recebeu uma resistência inesperada: grupos do crime organizado decretaram toque de recolher à noite para enfrentar a COVID-19.)
A pandemia atingiu o Brasil em um momento em que o governo tentava incentivar o crescimento econômico com políticas de austeridade. Em um ano na presidência, Bolsonaro reduziu o número de novos beneficiários do Bolsa Família, programa-chave de distribuição de renda. E o Instituto Nacional de Segurança Social, o INSS, acumulou uma fila de quase dois milhões de requerentes.
Depois da reforma trabalhista de 2017, o Brasil alcançou um recorde histórico de 41 por cento de empregos informais. Nas favelas, a situação é ainda mais precária: só 19 por cento têm trabalho com carteira assinada, o que garante, por exemplo, o pagamento de seguro desemprego. Desde o início da pandemia, 70 por cento das famílias que vivem em favelas já sofreram com queda dos rendimentos. A grande maioria — 86 por cento — vive mês a mês e dizem que não conseguirão comprar comida se faltam a um dia de trabalho.
Mas, paradoxalmente, apesar de o presidente insistir que a economia brasileira não pode parar, sua equipe econômica parece ignorar o setor mais vulnerável da economia. Até agora, Bolsonaro está mais preocupado com as empresas do que com os trabalhadores, formais ou informais. No dia 22 de março, ele anunciou um plano para ajudar as empresas em que incluiu a possibilidade de que suspendessem os salários de seus empregados por até quatro meses. Bolsonaro se viu forçado a revogar a medida horas depois de uma reação furiosa da sociedade.
Alguns de seus seguidores organizaram carreatas para exigir que as atividades econômicas fossem retomadas (apesar de não terem se arriscado a sair dos carros). E um punhado de empresas também apoiou Bolsonaro. “O que é morrer de 10 a 15 por cento dos mais velhos se comparado com o estrago na economia?”, perguntou Roberto Justus, um dos homens mais ricos do país. Junior Durski, dono da rede de restaurantes Madero, publicou um vídeo em que diz que o Brasil não pode parar porque “cinco ou sete mil pessoas vão morrer”.
Mas essa emergência de saúde pública e de crise econômica que afetará com mais força as favelas exige uma mudança de foco urgente. Até economistas liberais têm defendido a necessidade de um aumento do gasto público para salvar vidas. Também há empresários que optaram pelos seus trabalhadores. Luiza Trajano, da rede Magazine Luiza, fechou todas as suas lojas sem demitir os funcionários, dobrou o auxílio-creche para as funcionárias que não podem trabalhar de casa, e doou 10 milhões de reais para combater a epidemia.
O Congresso aprovou o pagamento de um auxílio de 600 reais por três meses para os trabalhadores sem renda fixa — o triplo do que o governo queria inicialmente. Mas ainda não será suficiente. É urgente que o governo Bolsonaro atenda o que pede a Central Única das Favelas: distribuir água, sabão, álcool em gel e comida para os moradores de comunidades desassistidas, suspender a cobrança das contas de água e luz e assignar locais para que os grupos vulneráveis possam fazer quarentena sem estar expostos em suas casas abarrotadas.
O governo deve colocar as vidas à frente da economia. A epidemia só tem evidenciado a tragédia e o abandono vivido pelas favelas há décadas. Se o governo os ignorar nesse momento de emergência, só provará que a falta de atenção sempre foi deliberada. Mais do que nunca, esse descaso precisa ser reparado.
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