"A canção, que abre o lado “B” do LP Coração selvagem (Warner, 1977), ao criticar de forma feroz o regime militar no Brasil, começa com os versos pungentes “Eu tenho medo. E medo está por fora, medo anda por dentro do teu coração. Eu tenho medo de que chegue a hora em que eu precise entrar no avião. Eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão… Apertar o botão: cidade morta. Placa torta indicando a contramão.”. Aqui Belchior faz referência aos deslocamentos forçados pelo País e ao ato de ter de deixar o Brasil, exílio interno e externo vivido, de forma imposta, por políticos, artistas e intelectuais."
Do Justificando:
Segunda-feira, 5 de novembro de 2018
O medo em tempos autoritários: um “toque” de Belchior
No contexto do resultado das eleições presidenciais no maior país da América Latina, o medo do qual falou Belchior ameaça voltar ao coração e pensamento de milhões de brasileiros
No grande mapa da música brasileira, Belchior, que teria completado 72 anos no último dia 26 de outubro, foi sem nenhuma dúvida um dos principais compositores a denunciar a ditadura militar no Brasil. Do conjunto de canções do cantor cearense que externam a tirania desse regime governamental implementado no País entre 1964 e 1985, destacam-se “Como nossos pais”, “Como se fosse pecado” e “Galos, noites e quintais”, mas é “Pequeno mapa do tempo” a que evidencia de forma dilacerante o sentimento mais característico de uma ditadura: o medo.
Eu tenho medo!
A canção, que abre o lado “B” do LP Coração selvagem (Warner, 1977), ao criticar de forma feroz o regime militar no Brasil, começa com os versos pungentes “Eu tenho medo. E medo está por fora, medo anda por dentro do teu coração. Eu tenho medo de que chegue a hora em que eu precise entrar no avião. Eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão… Apertar o botão: cidade morta. Placa torta indicando a contramão.”. Aqui Belchior faz referência aos deslocamentos forçados pelo País e ao ato de ter de deixar o Brasil, exílio interno e externo vivido, de forma imposta, por políticos, artistas e intelectuais. Nesse cenário, em que exibe as angústias dos cidadãos no período ditatorial, o autor do clássico “Apenas um rapaz latino-americano”, por meio do gênero musical toada, canta essas palavras de forma suave, próxima a uma canção de ninar, certamente para amenizar a crueldade tratada na letra.
Dialogando com Alfred Hitchcock (especialmente no filme “Psicose”, de 1960), a composição segue com uma alusão aterrorizante aos mortos e desaparecidos nos porões do DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social criado em 1924 e implementado no Regime Militar pós-64 para controlar o cidadão e vigiar as manifestações políticas, bem como as atividades intelectuais, sociais e partidárias associadas ao Comunismo. O que se lê no trecho “(Faca de ponta e meu punhal que corta e o fantasma escondido no porão.)”.
Na construção do seu mapa dos tempos da ditadura, Belchior dá continuidade e vai então demarcando locais exatos da presença do medo, que se espalha por todas as regiões do País, instaurando-se a partir das capitais: “Eu tenho medo. Que Belo Horizonte! Eu tenho medo. Que Minas Gerais! Eu tenho medo. Que Natal! Vitória! Eu tenho medo Goiânia-Goiás. Eu tenho medo Salvador, Bahia. Eu tenho medo Bé-lém, Bé-lém do Pa-rá. Eu tenho medo: São Paulo. Eu tenho medo. Eu tenho medo: um Rio, um Porto Alegre, um Recife. Eu tenho medo: Paraíba, um medo Paraná-pá. Eu tenho medo: (Morte é certeza!) medo-Fortaleza, medo-Ceará.”.
Com isso, o compositor representa no mapa a circunscrição abrangente e a onipresença do terror no tempo da ditadura, que atingiu e matou brasileiros de Norte a Sul da nação.
Junto à questão espacial, o “medo”, protagonista da realidade denunciada por Belchior, aparece na canção, em seus 4 minutos e 54 segundos, repetido 38 vezes, o que salienta ao ouvinte a extensão temporal do amedrontamento experienciado pelos brasileiros à época, em uma ditadura que durou intermináveis 21 anos.
Encerrando a letra de “Pequeno mapa do tempo”, entre a tensão de quem já viveu e de quem tem medo de que nunca acabe, Belchior deseja explicitamente o fim do medo no verso “Morre o meu medo! Isto não é segredo.”, expressando também as incertezas do que vem depois, como constatamos no trecho “Eu tenho medo. E já aconteceu! Eu tenho medo. E inda está por vir! O que será de mim?”.
Eu tenho medo. E já aconteceu! Eu tenho medo. E inda está por vir!
No contexto do resultado das eleições presidenciais no maior país da América do Sul e da Latina, o medo do qual falou Belchior, personagem dominante dos tempos ditatoriais, ameaça voltar à tona de forma assombrosa, ao coração e pensamento de milhões de brasileiros. A exemplo do que ocorreu como resistência na ditadura militar e constrangidos por um projeto de governo que, desde sua candidatura, vem defendendo publicamente práticas autoritárias e antidemocráticas, hoje homens e mulheres, estudantes, trabalhadores, artistas, intelectuais e personalidades, de diversas áreas, saem novamente às ruas para promover atos e manifestações, reivindicando a manutenção de seus direitos e liberdades democráticas e exigindo que o estado de medo não se instale jamais.
Josely Teixeira Carlos é pós-doutora em Análise do Discurso e Música pela Paris X, doutora em Letras pela USP/Sorbonne, pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre Belchior.
CARLOS, Josely Teixeira. Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior. 2007. 278 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.
CARLOS, Josely Teixeira. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior. 686 p. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
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