segunda-feira, 3 de junho de 2024

Francisco: Um Papa Consciente Vindo do Sul Global?

 

Há uma dimensão geopolítica pouco notada, no papado de Francisco. Ele deseuropetizou a igreja – da composição do Colégio dos Cardeais ao comando das ordens católicas. Sua aposta: Velho Continente, “criança mimada”, não pode comandar mais nada


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Loup Besmond de Senneville, no La Croix International, com tradução no IHU

Em seus 10 anos na cátedra de Pedro como primeiro papa latino-americano da história, Francisco ajudou a mudar o equilíbrio geográfico dentro da Igreja Católica.

Dezenas de milhares de pessoas inundaram a Praça São Pedro, convocadas pela famosa fumaça branca que, apenas uma hora antes, subia do telhado da Capela Sistina. Um novo papa havia sido eleito! Naquela noite fria e chuvosa – no dia 13 de março de 2013 – o homem que apareceu na varanda da Basílica de São Pedro era desconhecido da maioria das pessoas presentes na praça embaixo.

Tratava-se de Jorge Mario Bergoglio, o então cardeal jesuíta de Buenos Aires, que escolheu “Francisco” para ser seu nome papal. “Vocês sabem que o dever do conclave era dar um bispo a Roma”, disse ele em suas primeiras palavras como papa. “Parece que os meus irmãos cardeais foram pegá-lo quase no fim do mundo”, acrescentou ele, uma clara referência à sua Argentina natal, na América do Sul.

E esse novo papa era de fato um estrangeiro ou forasteiro – de três maneiras diferentes.

Primeiro, ele não era da Europa.

Segundo, ele não era da Itália.

E, terceiro, era um estranho à cultura da Cúria Romana, antipatia que ele nunca disfarçou como cardeal-arcebispo na capital argentina.

De fato, os sentimentos de Bergoglio em relação à burocracia vaticana eram tão conhecidos que algumas pessoas esperavam – e outras temiam – que ele seria o responsável pela grande mudança da Igreja Católica do Norte para o Sul.

Europa, uma criança mimada

A relação do Papa Francisco com a Europa tem sido tema de discussões intermináveis nesses últimos 10 anos.

“Ele vê a Europa como uma criança mimada”, confidenciou um de seus amigos. Francisco também se referiu à Europa como uma “velha senhora cansada”, onde não há grande futuro para a Igreja. O papa jesuíta não faz nada para esconder isso: ele teme um fechamento muito grande da Igreja no Ocidente, onde não vê mais dinamismo.

Por considerar que o Velho Continente foi “mimado” no passado, sobretudo pelas numerosas viagens de seus antecessores, Francisco prefere fazer suas próprias visitas pastorais a países da periferia, como a Albânia ou o Chipre.

Ele se afastou de nações com tradição católica antiga, como Espanha e França. É verdade que ele visitará a Marselha por algumas horas em setembro, mas deixou claro que seu tempo na cidade portuária do sul da França não será uma viagem à França propriamente dita. Em vez disso, será apenas um pit stop, permitindo que ele se junte a uma reunião de bispos europeus antes de seguir para a Mongólia.

“Sem dúvida, ele sente que seu papel não é organizar visitas para compensar a falta de iniciativa das Igrejas europeias”, disse um dos assessores mais próximos do papa.

Uma mudança de paradigma

Em contraste, cada vez mais escritórios da Cúria e as principais ordens religiosas do mundo fizeram a mudança de suas lideranças para o Sul global. O padre-geral da Companhia de Jesus (jesuítas), a ordem do próprio papa, é atualmente um padre venezuelano chamado Arturo Sosa. E o mestre da Ordem dos Pregadores (dominicanos), o Pe. Gerard Timoner, é das Filipinas.

As principais congregações missionárias também fizeram essa mudança, como mostra a eleição em 2010 do ganense Richard Baawobr como primeiro superior geral africano dos Padres Brancos.

Nas universidades pontifícias, a “mudança de paradigma” provocada pela chegada de Francisco à liderança da Igreja Católica foi percebida por todos.

“O fato de ele vir do Sul é um teste para a Igreja, especialmente porque questiona a relação dos católicos do Ocidente com a Igreja não ocidental”, observou Paul Béré, um jesuíta biblista de Burkina Faso.

Em 2019, Béré recebeu o Prêmio Ratzinger, uma espécie de “Prêmio Nobel de Teologia”. Mas ele disse que há muito tempo sofre críticas de colegas europeus que veem nele “um teólogo de segunda categoria”.

“Quando ouço as críticas de certos cardeais ocidentais a respeito do papa, reconheço-me nele”, disse o jesuíta africano. “Fui submetido às mesmas críticas durante anos. Muitas vezes me olhavam com pena, fazendo-me entender que nada de bom ou sério podia sair da África, porque era uma teologia que não se baseava nos cânones ocidentais”, lembrou.

Os efeitos da colonização

Além de uma abordagem teológica clássica, Francisco também se concentrou em novos temas e questões. A ecologia é obviamente um deles, como evidenciado por sua encíclica Laudato si’, de 2015.

“Ele ampliou o perímetro do papado”, disse um veterano observador do Vaticano. “A partir de agora, não se pode mais dizer que o papel do papa se limita à liturgia e à moral.”

Isso também tem a ver com a atenção inédita que ele tem dispensado aos povos indígenas e originários, principalmente da Amazônia e do Canadá, com cujos representantes ele já se encontrou várias vezes em Roma.

Francisco viajou para a cidade de Quebec, Edmonton e Iqaluit, no extremo norte do Canadá, em julho passado, para pedir desculpas pelos abusos e pelos crimes cometidos em internatos católicos no século XIX. Condenando os “terríveis efeitos da colonização”, ele insistiu que a Igreja não é europeia.

É em nome desse mesmo princípio que ele tem resistido, desde o início da guerra na Ucrânia, à tentação de ser visto como o “capelão do Ocidente”.

“Não resta nada, exceto os argentinos”

Sua desconfiança nos Estados Unidos também alimentou a ideia de que seu posicionamento se deve em grande parte à história de seu país. A Argentina manteve uma relação desigual com o gigante norte-americano, e o papa culpa este último em parte pela quase falência de seu país no início dos anos 2000.

“Não resta nada, exceto os argentinos”, reclamou um membro da velha guarda do Vaticano. Na verdade, Francisco fez de um número impressionante de seus compatriotas altas autoridades da Cúria Romana ou membros de seu círculo interno de conselheiros.

Eles incluem Emilce Cuda, secretária de 57 anos da Pontifícia Comissão para a América Latina em Roma, assim como Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata, de 60 anos, que atuou como escritor fantasma de alguns dos documentos mais importantes do papa. Há também o ex-padre lefebvriano, Pablo Enrique Suarez. Membro argentino da Fraternidade de São Pio X até 2019, ele mora na residência papal Santa Marta e assessora Francisco nas questões tradicionalistas.

A grande presença de argentinos não é nada fora do comum, dizem pessoas próximas a Francisco. Elas apontam que o número de poloneses trabalhando no Vaticano, inclusive no serviço diplomático, realmente disparou durante o longo reinado de João Paulo II como papa. Alguns reclamam que, mesmo hoje, eles ainda estão super-representados.

Em uma Roma que permanece muito italiana, Francisco também trouxe uma mudança clara, alterando profundamente o equilíbrio geográfico dentro do Colégio dos Cardeais.

Quando foi eleito em 2013, havia 60 europeus em um total de 117 cardeais eleitores. Desde então, Francisco duplicou o número de asiáticos que podem votar no próximo conclave, reduzindo em um terço o número de italianos na mesma situação. O número de eleitores norte-americanos caiu de 20 para 16 eleitores, enquanto os latino-americanos passaram de 13 para 19.

Esse reequilíbrio tem um objetivo claro: ancorar o deslocamento da Igreja rumo ao Sul global.


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