segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Era dos Coletivos de Solidão, por Boaventura de Sousa Santos



A dominação social deste século só sobreviverá se criar novos sujeitos. Sociedades, onde os diferentes se relacionam, precisam ser reduzidas a massas inertes de indivíduos-dados. Esta distopia é, também, o calcanhar de aquiles do projeto
Por Boaventura de Sousa Santos | Imagem: Andrzej Krauze
A combinação tóxica entre capitalismo, colonialismo e patriarcado que caracteriza este início de século, longe de ser apenas uma dominação tricéfala particularmente virulenta nos modos de exploração e de discriminação que privilegia, está assumindo a dimensão de um novo modelo civilizatório, uma nova era que, muito além de desfigurar as instituições, as representações e as ideologias preexistentes, propõe-se criar novas subjetividades para quem o novo modelo é o único modo imaginável de vida. É um processo em construção e obviamente só se consolidará se não houver resistência eficaz. Para que tal resistência ocorra é necessário fazer um diagnóstico radical do que está em causa. Como qualquer outro processo histórico, tem uma longa e sinuosa evolução. Sendo uma evolução civilizacional, contou com cumplicidades de forças ideológica e politicamente muito díspares. Foram essas conivências que tornaram possível o consenso de que o processo era irreversível e não havia alternativa.
Podemos ver hoje as principais fases por que foi avançando. A primeira fase consistiu numa crítica radical do Estado e na afirmação da sociedade civil como única fonte de virtude e de eficácia. A sociedade civil forte, que antes era a outra face do Estado democraticamente forte, passou a ser o oposto do Estado forte e, por isso, só possível se o Estado fosse fraco. Numa segunda fase, uma vez neutralizado o Estado, a sociedade passou a ser questionada em nome da autonomia do indivíduo. Ou seja, começou por virar a sociedade contra o Estado para depois virar o indivíduo autônomo contra a sociedade. Mas a autonomia que proclama é uma autonomia uberizada, isto é, a autonomia de indivíduos que não têm condições para ser autônomos. A autonomia da auto-escravatura.
O objetivo deste modelo civilizacional é substituir o conceito de responsabilidade social pelo conceito de culpa. Os problemas que isso pode suscitar não são problemas políticos. São problemas de polícia ou de terapia. Estamos às portas de uma era não relacional em que os atributos que definem grupos de população são naturalizados e separados entre si de modo a não ser visível a relação que há entre eles. Criam-se assim segregações que não se tomam como tal e antes parecem o resultado natural de diferenças que não suscitam outro sentimento que não o da indiferença.  Assim, diferenças e hierarquias, que até há pouco eram consideradas chocantes e revoltantes, tendem hoje a ser percebidas como triviais e até aceitáveis porque expressão de características inatas em relação às quais a sociedade pouco pode fazer. Por exemplo, a concentração da riqueza aumentou escandalosamente nas últimas quatro décadas e a ostentação da riqueza convive indiferentemente com a mais abjeta pobreza. Por sua vez, as discriminações por motivos raciais, sexuais, religiosos ou outros ganham crescente aceitação entre públicos insensíveis às lutas dos movimentos anti-racistas, anti-sexistas, anti-homofóbicos, anti-fundamentalistas, os mesmos públicos que estão sempre disponíveis para ignorar ativamente as conquistas contra a discriminação que esses movimentos têm obtido. Assim, quem é rico merece ser rico porque tem as qualidades para o ser, tal como quem é pobre merece ser pobre por não ter as qualidades necessárias para deixar de o ser. Na construção deste modelo civilizatório estão envolvidos vários processos. Muitos dos quais parecem nada ter a ver com ele.
1. Do conhecimento à informação. O novo modelo civilizatório assenta na produção aparentemente ilimitada de informação e na confusão entre informação e conhecimento. É cada vez mais comum a ideia de que vivemos numa sociedade de informação. A abundância de informação não é um bem incondicional. Lembremos que em caso de inundação o recurso mais escasso é água potável. Semelhantemente, vivemos hoje inundados por informação, mas carecemos cada vez mais de informação potável, isto é, confiável. Por outro lado, informação não é conhecimento (qualquer que seja o tipo de conhecimento). A informação fornece dados, enquanto o conhecimento visa compreender ou explicar a origem, o significado e as implicações dos dados. A informação é o presente simultaneamente eterno e efêmero, enquanto o conhecimento é a ponte entre o passado, o presente e o futuro. Estas diferenças tornam-se cada vez menos evidentes quando, para sonho de uns e pesadelo de outros, parece próximo o tempo em que um supercomputador desvendará o segredo da vida e do universo ao prever a estrutura tridimensional das proteínas em todas as suas (infinitas) sequências. E, não por acaso, a mais poderosa biomáquina, um ícone exemplar da inteligência artificial, chama-se Mente Profunda (deep mind) e os seus processos designam-se como tecnologia de aprendizagem profunda. A verdade é que, mesmo que tal seja possível, a máquina nunca poderá explicar ou entender os resultados a que chegar. Mas para o novo modelo civilizatório o significado dos dados está cada vez mais reduzido à utilidade econômica que eles possam ter para quem os detenha.
2. Das relações sociais aos dados. A confusão entre conhecimento e informação é fundamental para ocultar ou trivializar as relações sociais e as desigualdades de poder que estão por detrás dos dados. As formas de dominação modernas reproduzem-se por via da extração de recursos assente em relações de poder desigual que tornam possíveis decisões unilaterais e a apropriação indevida de valor. Historicamente, essa extração teve duas formas principais: os recursos naturais (a exploração da natureza) e os recursos humanos (de que o trabalho escravo é a forma mais brutal). Hoje, a estas duas formas juntam-se uma terceira: a extração de dados. Esta extração é cada vez mais massiva em função da imensa agregação de dados tornada possível pelas novas tecnologias de informação e comunicação, os big data. Aliás, a obtenção destes dados tem a mesma designação que o extrativismo mineiro: escavação de dados (data digging). O próprio termo “dados” contém em si toda a ambivalência da armadilha digital. Os dados são efetivamente roubados; mas, depois de manipulados e vendidos a utilizadores comerciais ou políticos, são devolvidos ao público como sendo oferecidos e, de fato, propriedade comum. O país com o maior número de utilizadores do facebook é a Índia, mas os centros de dados obtidos por este meio estão localizados nos EUA, na Europa e em Singapura. A apropriação do valor dos dados está concentrada numa empresa, mas quem é que se sente ao serviço de uma empresa quando o uso, a entrada e a saída da empresa são livres?
A manipulação destes dados por parte das grandes empresas de comunicação eletrônica é a grande responsável pela progressiva substituição das relações sociais pelos dados enquanto explicação, fundamento, sentido e valorização da vida coletiva. Os dados são obtidos por instrumentos tecnológicos cujos parâmetros e critérios não são do domínio público por estarem protegidos por patentes. Esta opacidade é a condição essencial da suposta transparência dos dados e, portanto, da sua utilização aparentemente neutra. A sociedade métrica em que estamos a entrar visa transformar o caráter relacional da vida social em desempenhos individuais quantificados e sem outra relação entre si senão as diferenças numéricas e as agregações que são feitas a partir delas. Tudo o que não é quantificável é desqualificado mesmo que seja a felicidade ou sentido da vida e da morte.
3. Da política à polícia e à terapia. As relações sociais e as desigualdades de poder que podem explicar os dados deixam de ser visíveis e relevantes enquanto causas. São tratadas quando muito como consequências. Os conflitos que fatalmente geram são despolitizados. Passam a ser assunto de polícia e nisso consiste a criminalização crescente do protesto social. Em alternativa, são temas para terapia contra a depressão, a alienação, a fadiga crônica, o impulso suicidário. A terapia permite que indivíduos solitários não se sintam sós. Fazem parte de comunidades imaginadas de consumidores de ansiolíticos, de álcool, de drogas, de medicinas alternativas, de academias de prontidão física, de meditação. São coletivos de partilha de destino sem esperança ou cuja esperança reside em perder o medo de viver sem ela.
4. Das redes à solidão coletiva. Os big data não visam individualmente os indivíduos (passe o pleonasmo); visam coletivos homogêneos de indivíduos, organizados invisivelmente segundo os seus gostos de consumo, de política ou de religião. Desta forma, os big data permitem combinar a máxima personalização com a máxima massificação. Os indivíduos, longe se sentirem sós ou isolados, sentem-se auto-escolhidos por grupos mais ou menos vastos com quem não têm outras relações senão as que a internet permite. As redes sociais são a expressão mais acabada da nova solidão, a pertença superficial, seletiva, isenta de compromissos extra-comunicacionais a colecivos cada vez mais organizados pelo mercado comercial, político ou religioso dos big data. Claro que as redes sociais também permitem intensificar a comunicação que começou por ser física e presencial, mas do ponto de vista dos big data a única dimensão comunicacional que conta é a digital. E é mesmo crucial que entre o indivíduo massivamente personalizado e o objeto de consumo não existam intermediários. O indivíduo tem à sua disposição um mundo que considera feito por si, apesar de ter sido feito por outros, e que pensa ser seu, apesar de ser propriedade, muitas vezes patenteada, de outros.
5. Do pensamento crítico à peritagem. O estudo crítico, livre e independente das assimetrias sociais não é bem-vindo neste mundo da sociedade métrica. Os dados são “tratados” por especialistas que aparentemente não têm nenhuma lealdade ou preferência senão a que se espelha nos dados. São considerados objetivos por serem tidos por neutros e não por serem conhecidos os critérios e os métodos que mobilizam as suas análises. Enquanto no caso do liberalismo científico a neutralidade (que, de fato, nunca existiu) era o resultado da aplicação de metodologias que garantiam a objetividade, na ação dos especialistas a objetividade é o resultado da suposta neutralidade. O especialista é o juiz sempre parcial na farsa da imparcialidade da era não-relacional.
Este tipo de especialização é um híbrido entre informação e conhecimento, e traduz-se em análises e relatórios preparados por encomenda de quem tem interesse em que os dados sustentem certas conclusões, e não outras. Este híbrido dificilmente pode ser produzido nas universidades e centros de investigação, pelo menos enquanto umas e outros se pautarem pelo princípio de que o valor do conhecimento nunca é redutível ao valor de mercado que possa ter ou não ter. Não admira, pois, que a ação dos especialistas seja cada vez mais um monopólio de empresas de consultoria. Estas empresas nunca podem oferecer conclusões desconfortantes para os clientes e nunca podem prever os piores cenários sob pena de os seus próprios acionistas as desertarem. Foi por isso que nenhuma dela previu a crise financeira de 2008 nem preverá qualquer crise futura. Na era dos coletivos de solidão, a consultoria é a voz dos poderes que criam os coletivos e o silenciamento dos indivíduos coletivamente solitários.
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