quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A onda hipócrita fanática que ascende com a direita


Camacho, forte protagonista do golpe de Estado na Bolívia, ilustra o importante papel das igrejas neopentecostais no xadrez geopolítico latino-americano. Como a “teologia da prosperidade” ajuda a consolidar o neoliberalismo

Por Bruno Reikdal Lima, no GGN
Em entrevistas como as concedidas a Estela Fernández e a Germán Gutiérrez, o economista e filósofo alemão Franz Hinkelammert, que trabalhava nos movimentos de apoio à Unidade Popular e ao governo de Salvador Allende, relembra dos acontecimentos subsequentes ao golpe militar de Pinochet, em 1973. Hinkelammert comenta que foi no dia seguinte, acompanhando as notícias nas rádios e televisões, que compreendeu o papel ideológico que a religião cumpria na legitimação da violência e do laboratório neoliberal que ali nascia. Ouvia as celebrações e os discursos ufanistas de líderes religiosos como os de padre Raúl Hasbún (a quem considerava o golpista mais extremado) e concluía que havia uma estrutura teológica que realizava a justificativa ideológica para o golpe e, mais ainda, a legitimação das reformas neoliberais. Em um país majoritariamente católico, a disputa teológica era campo de uma guerra ideológica. Nessa situação, em contato com teólogos da libertação que conhecera nos movimentos sociais, Hinkelammert se reencontrou com a máxima de Marx em 1844: “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”.
O filósofo e economista alemão desenvolveria a partir de então o campo teórico peculiar de sua produção: a ideologia da economia, que para ele encontrava seu ponto de partida na crítica da religião. Passaria a trabalhar junto com teólogos da libertação e cientistas sociais do pensamento crítico latino-americano. O traço marcante de seu trabalho é a capacidade de demonstrar como teologia e economia se encontram no desenvolvimento de conteúdos ideológicos que legitimam tomadas de decisão, rupturas e mesmo a manutenção de instituições e ordenamentos sociais. Exatamente aquilo que talvez tem nos faltado ao tentarmos interpretar as afinidades eletivas entre movimentos religiosos conservadores e programas liberais e neoliberais. Afinidade eletiva é uma categoria utilizada por Weber aproveitando uma expressão de Goethe para expressar as conexões históricas não necessariamente intencionais entre determinados conteúdos religiosos e político-econômicos (como por exemplo a relação entre protestantismos e o capitalismo na Europa e nos Estados Unidos).
Ao nos depararmos com as recorrentes aproximações entre evangélicos e neoliberais nos Estados Unidos e na América Latina, em geral, não podemos tratar nem como coincidência e nem como um plano detalhadamente arquitetado. E nesse sentido a categoria weberiana de “afinidade eletiva” nos ajuda bastante. Há uma relação historicamente construída, não intencional, mas recentemente aproveitada e coordenada para a concretização de projetos políticos claros. Os dois mais recentes são a eleição de Bolsonaro no Brasil e o golpe de Estado contra Evo Morales na Bolívia. Tendo-os em mente, gostaria de propor algumas pistas para compreendermos melhor os papéis desenvolvidos pelas igrejas evangélicas na legitimação do programa neoliberal, de modo semelhante ao percebido por Hinkelammert ao acompanhar as celebrações e discursos ufanistas de clérigos chilenos em 1973.
As igrejas pentecostais chegaram e começaram sua história de expansão na América Latina no início do século XX. No Brasil, por exemplo, a partir da década de 1910. Os missionários vindos para cá eram em geral europeus que vivenciaram os preparativos e o próprio evento das Grandes Guerras, assim como a ascensão das brigadas e movimentos fascistas. Os hinos e ritos religiosos tinham tom bélico, escatológico e, especialmente, eurocêntricos. Houveram disputas a respeito de “raça” (quem poderia ou não participar das comunidades), de gênero (se haveria ou não ordenamentos de mulheres, já que compunham a maioria das comunidades desde sua gênese) e de classe (as distinções entre igrejas e populações da periferia, onde nasceram e se enraizaram, e de centro, onde eram instaladas as sedes das denominações). A vitória seguiu o padrão social geral: brancos, homens e elite controlaram as tomadas de decisão e reprimiram dissidentes. As disputas levaram mais ou menos 40 anos até a consolidação das convenções de distintas denominações e a estabilização das instituições. Os grupos evangélicos chamados “históricos” ou “tradicionais”, em sua maioria, passaram por menos crises, dado que iniciavam suas atividades em regiões centrais e majoritariamente frequentadas pela classe média dos centros urbanos.
A partir do final dos anos de 1970, ampliam-se a quantidade de denominações e rachas internos nas instituições começam a despontar, visando “modernizações” dos ritos, dos cultos e maior liberdade para os fiéis, que agora já não encontravam nos ritos bélicos e no discurso majoritariamente escatológico conteúdo suficiente – afinal, passadas as Guerras e a demora na concretização da promessa do um fim de tudo encontravam um mundo voltado cada vez mais para o consumo de massas e o discurso de liberdades individuais, que seriam garantidas pelo mercado. Ser gente é consumir e poder “optar” entre objetos de desejo. Os ritos rígidos e retrógrados impediam essa participação dos fieis nas relações sociais que começavam a se reorganizar sob um novo regime geral – que se concretizaria na instituição dos Estados neoliberais em todo o continente a partir do final dos anos de 1980.
Os anos de 1990 vem com a expansão das recém-nascidas igrejas neopentecostais que aderiam à tão falada “teologia da prosperidade”, das quais se destacam, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça. Estas definitivamente conseguiam se adequar ao receituário de consumo, garantindo que a expectativa em melhorias nas capacidades de compra das famílias se encontrasse com uma organização político-econômica que girava em torno da expansão de crédito a massas cada vez maiores da população. Esse fenômeno, em maior ou menor escala nos países latino-americanos, é excepcional no Brasil, onde estas igrejas alcançam proporções gigantescas e, em 20 anos, realizam um projeto de expansão internacional, no qual “exportam religião”, abrindo sucursais em todo o continente e em outros lugares do mundo, incentivando inclusive o surgimento de novos movimentos como estes nesses países.
As massas que nos anos 2000 conseguem melhorias de vida nas periferias dos centros urbanos, tem a explicação de seu êxito não nas políticas econômicas de governos ou no mercado mundial de commodities, mas na bênção de Deus e nos ritos que cumpriam em seus cultos semanais (quando não, diários). Ou seja: a fé era testada no domingo e a realização material chegava na segunda. As antigas igrejas pentecostais das periferias e as mais tradicionais não desaparecem, mas são obrigadas a realizar reformas internas tanto teológicas quanto em seus ritos para se adequar a esse novo mundo e atender aos fiéis. Essas decisões, contudo, já não nascem das periferias e rumam aos centros, mas partem dos centros já organizados e institucionalizados para serem replicadas nas periferias. Esta inversão é fundamental, pois já não se trata de uma disputa para institucionalizar uma comunidade em formação, e sim de uma instituição que passa a formar (e reformar) de modo planejado uma comunidade de fiéis.
Todo esse processo ocorre de maneira semelhante em todo o continente latino-americano, com maior ou menor impacto. De todo modo, um último elemento que precisamos destacar é o papel do mercado religioso estadunidense, que passa a ser fonte de conteúdo assimilado e importado pelas igrejas evangélicas daqui a partir dos anos de 1980. O “Capitol Ministries” fundado no final dos anos de 1990 surge como centro formador e orientador político para lideranças religiosas nos Estados Unidos e, hoje, passa a desempenhar um papel internacional, aproveitando o mercado religioso estabelecido e as afinidades entre evangelicalismo e o projeto neoliberal.
Por fim, Hinkelammert chama o regime da sociedade neoliberal que teve como laboratório o Chile pós golpe de “totalitarismo de Mercado”, no qual todas as relações devem ser estabelecidas, mediadas e mantidas por mercados. As afinidades estabelecidas entre evangélicos e movimentos neoliberais encontram nesse ponto sua maior convergência: o desejo das massas periféricas de serem incluídas socialmente, ou seja, em uma sociedade de “Mercado total”, de serem consumidoras – que é reafirmado e estruturado por uma teologia da prosperidade, que coloca na promessa da realização financeira cotidiana o sinal do projeto divino de salvação escatológica dos fiéis. A socialização deseja é por consumo no Mercado, a salvação encontra garantias em uma sociedade de Mercado e, portanto, o único mundo desejável é aquele que seja mediado pelo Mercado. E esse Mercado em nada atrapalha as tomadas de decisão de usos e costumes religiosos da comunidade.
Assim como na vitória de Bolsonaro, o apoio das comunidades pentecostais e neopentecostais ao golpe de Estado na Bolívia é praticamente integral. Camacho é um religioso fanático e, nas eleições vencidas por Evo, Chi Hyun Chung era a expressão tosca desse grupo que, em geral, é muito coeso em suas crenças, preferências e interpretações do mundo. E o papel que desempenharam nas massas urbanas para o golpe e agora para o processo subsequente é fundamental: legitimar ideologicamente a violência e as rupturas institucionais. Deus e a liberdade serão os temas utilizados pelos ideólogos de plantão, assim como são os pontos centrais do conteúdo propagado nas pregações, vídeos e textos de pastores e pastoras brasileiras sobre a necessidade de se proteger o governo Bolsonaro. A igreja de Jesus e o Livre Mercado se aproximaram, mas isso não significa que sejam necessariamente parceiros. Está aí a Teologia da Libertação para mostrar que durante os anos de 1960 e 1970 houve disputa pelo território religioso – e no qual progressistas e revolucionários conseguiram vencer batalhas. O campo religioso é um campo popular em constante disputa. Então, tentar entender esse processo de modo crítico como procuramos indicar com alguns apontamentos, é caminho para tentar sua transformação.

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