sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Fundamentalismo, a Hipocrisia e a Politicagem no auto intitulado Encontro da Consciência "Cristã" de Campina Grande



Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Por mais que a sociedade se volte ao laicismo, que adote uma visão mecanicista e por mais - e talvez por isso mesmo - o sistema econômico transforme tudo e todos em mercadorias e elementos de produção e consumo, no ser humano haverá sempre a ansiedade pelo espiritual, pela busca de sentido, pelo transcendente. O vazio de espiritualidade, contudo, não significa que será preenchido e muito menos que aquilo que se proponha a preenché-lo seja formado por algo realmente espiritual, especialmente se o "mercado da religião" se apresente com "produtos" de "fácil" adoção.

As promessas da tecnociência e da globalização se mostraram mais ilusórias que factíveis e o vazio existencial causado pela atomização das relações sociais, a compartimentalização dos contatos humanos e a ênfase na competitividade, levaram as pessoas à desconfiança de seu semelhante. O discurso consumista, imediatista, também separou Deus ou a reflexão do espiritual dos momentos de meditação e as pessoas, desamparadas, sentem-se cada vez mais perdidas em um mundo desencantado. 

A tradicional forma de amparo e coesão social não conseguem acompanhar o processo de "coisificação" e "descartabilidade" em que ideias, valores e pessoas que representavam, cultural e afetivamente, significado e orientação e enchiam de motivação e bem-estar em um momento histórico não muito distante, com menos tecnologia e mais contato, agora se vêem desenraizadas e isoladas, desorientando pessoas que buscam preencher sua sensação de desamparo correndo atrás de metas impostas e de distrações técnicas em seus quartos, mesas de trabalho ou funções impessoais. 

O espaço aberto diante de um niilismo materialista da era neoliberal, então, passou a ser preenchido por sistemas, seitas e organizações que, adotando o discurso do imediatismo e vantagem pessoal do capitalismo neoliberal globalizado, usam das táticas da sedução fácil, através de promessas de salvação, de vantagens, de domínio único da "verdade" para, no vácuo de sentido espiritual atual, mesmerizar consciências que não tiveram ou oportunidade ou meios de fortalecer a alma através do estudo e da busca espiritual sadia. Ou seja, o niilismo incentivou o surgimento ou fortalecimento de seu retrato ao reverso, o fundamentalismo.

O campo, então, estava aberto no Brasil de inícios do anos 90, aos aventureiros espirituais que, adotando a vertente pentencostal-capitalista-midiática, advindo de seitas dos Estados Unidos, para adquirir poder, dinheiro e força política na exploração do vazio deixado pela modernidade tecnicista. Para tanto, os lideres pentecostais e neopentecostais usaram de espetacularizações  e táticas pensadas de pressão midiática aos gritos, através da televisão, apelando para cenas emocionais, descarte da razão e apelo a ganhos materiais e sociais individuais, comprados com dízimos, na tão mercantil "teologia da prosperidade" (Jesus alguma vez cobrou alguma coisa a alguém para fazer o bem? Prometeu riquezas materiais e poder político? Não foi ele mesmo quem disse "dai de graça o que de graça recebeste"?)

Ao lado deste caminho nocivo, igrejas e correntes filosóficas históricas e mais equilibradas, como as Igrejas Católica, Luterana, Metodista e algumas outras denominações históricas, buscavam cultivar em seus adeptos uma visão mais equilibrada, espiritual e humanista de religiosidade, até serem atingidas, também, pela ênfase mercadológica e competitiva das seitas pentecostais. Isso porque a religião pode ser qualquer coisa, desde um caminho para a busca de paz e sentido quanto um instrumento de uso de poder e alienação (veja, ao final deste artigo, o vídeo onde o historiador e filósofo Leandro Karnal discute sobre Religião e Fundamentalismo). Ainda assim, haviam saudáveis expressões de dialogicidade, na mudança de milênio, com tentativas de encontros ecumênicos, de fraternal dialogicidade e respeito às diferenças, entre as tradições espirituais. Uma destas tentativas, das mais belas, era o chamado Encontro da Nova Consciência, realizado em Campina Grande, Paraíba, desde 1992. 

Neste encontro, tradições religiosas, espirituais do oriente, ocidente e a ciência podiam dialogar e trazer um pouco de luz às milhares de pessoas que participavam do citado evento. Contudo, desde o início, o sucesso do Encontro para a Nova Consciência (depois, Encontra da Nova Consciência e, atualmente, Consciência Nova), havia uma mancha sombria: a reação dos evangélicos mais fundamentalistas que, desde o início, buscavam acabar com este evento. Ao se verem frustrados para isso, começaram a se organizar, estimulando a bancada evangélica, para formar um encontro próprio que, após 17 anos, passou a concorrer com o evento original. A expressão de competição e refutação ficou patente mesmo no nome dado ao evento evangélico: Encontro da Consciência "Cristã".

Não foi tão fácil aos  evangélicos fundamentalistas formular seu evento paralelo. A maior parte da população de Campina Grande percebeu o golpe e se mostrou favorável ao encontro original da Nova Consciência e viam a reação dos evangélicos como expressão de despeito, o que era verdade. Contudo, os pastores se articularam com outros colegas de cidades do interior e de outros estados, e se comprometeram a fazer um evento de nível nacional ao mesmo tempo que pressionavam os políticos, além dos da própria bancada, com a chantagem dos votos eleitorais, traço constante nos últimos anos no Brasil, do fundamentalismo religioso elevado à força política. A chantagem e a movimentação deram certo.

Aos poucos, deputados e vereadores evangélicos foram impondo verbas oficiais ( em um pais que oficialmente deveria ser laico) para o encontro opositor da Nova Consciência. Campanhas e dizimos compraram outdoors e faixas. Panfletagens agressivas eram feitas para expor a "força" dos evangélicos e diárias em hotéis eram compradas com antecedência para impedir ao máximo a vinda dos turistas e simpatizantes do ecumênico. Mesmo o patrocínio da prefeitura, com a chegada de um vice-prefeito evangélico, foi praticamente desviado todo apenas para o encontro neopentecostal. À medida que a sangria era feita contra o democrático Encontro da Nova Consciência, mais aumentavam as provocações públicas dos evangélicos ao ponto de alguns fundamentalistas acharem pouco o que já era feito e apelarem para um ensaio de terrorismo a, vestido de pretos e com tochas, tocarem fogo em penes em frente ao Teatro Municipal onde eram realizados os principais eventos do laico e ecumênico Encontro da Nova Consciência.

A tomada de espaços em Campina Grande estimulou ainda mais a ambição de pastores e, infelizmente, reduziram a possibilidades de novos eventos ecumênicos que, aliás, são tachados de eventos do demônio ou à serviço do anticristo, segundo os mentores iniciais da tal evangélica "consciência cristã" (imaginem o que diriam, então, se tais mentores não fossem conscientes e nem cristãos). Diante disso, o grupo de Diversidade Religiosa da Paraíba vem patrocinando uma campanha com assinaturas pela criação oficial do Comitê de Diversidade Religiosa, para garantia dos direitos e respeito a todas as denominações religiosas e frear o avanço do uso político de certas doutrinas que ameaçam tanto o estado laico quanto o espírito democrático.


Sobre as implicações sociais e culturais negativas desta movimentação fundamentalista alçada à força política de cunho reacionário e policialesco, vejamos o que diz o filósofo, teólogo e sociólogo Frei Betto e que serve para entender as pretensões políticas dos organizadores do tal Encontro da Consciência Cristã:

A religião goza, sim, do direito de expressão pública e de recusar ao Estado o monopólio do controle da sociedade.Porém, assim como o Estado, à luz da laicidade moderna, não tem o direito de “professar” uma religião e atuar contra o pluralismo religioso, não se pode admitir que a religião se aproprie do Estado para universalizar, via legislação civil e mecanismos de controle, seus princípios e normas doutrinários.


O fundamentalismo religioso nasceu nos EUA, no início do século XX, com o objetivo de evitar a erosão, pelo secularismo, das crenças fundamentais da tradição protestante, como a expiação substitutiva realizada pela morte de Jesus e o seu iminente regresso para julgar e governar o mundo, e a infalibilidade da Bíblia tomada em sua literalidade, como a criação direta do mundo e da humanidade por Deus, em oposição ao evolucionismo e ao darwinismo.
 Em meados do século passado, os fundamentalistas cristãos se convenceram de que não bastava pregar no interior dos templos e converter corações e mentes. Era preciso impor à sociedade tudo isso que concorre para o “bem dela”, como a criminalização do aborto e da homossexualidade, do uso do álcool e do fumo, do entretenimento pornográfico, e até mesmo de projetos que visam a reduzir a desigualdade social, considerada reflexo da vontade divina.
 Tal empreitada só é possível pelo controle das instituições políticas que, de fato e de direito, decidem o que é legal (bem) e o que é ilegal (mal) ao conjunto da sociedade. Um pastor ou padre pode convencer seus fiéis de que ingerir bebidas alcoólicas é contrário ao mandamento divino. Um governante pode muito mais: decretar a lei seca e entregar às garras da Justiça todos que produzirem e comercializarem produtos etílicos.
 Nos nichos religiosos fundamentalistas do Brasil, se choca o ovo da serpente, à semelhança do que ocorre em países em que princípios derivados de tradições religiosas dispensam a formalidade de um texto constitucional e nos quais não se concebe uma laicidade independente da religiosidade.
Bem, como se vê as atitudes fundamentalistas são bem diferentes, portanto, das características democráticas, fraternas e ecumênicas do Encontro para Nova Consciência, onde ateus, muçulmanos, cristãos e cultos afros se irmanavam em prol do diálogo e da paz.
  O Encontro da Consciência Cristã visa e expressa a imposição de uma determinada e exclusivista interpretação da espiritualidade, a deles, onde os demais são vistos como erros e aberrações a serem refutadas, destruídas. Tal atitude fundamentalista foi constatada por líderes evangélicos lúcidos, entre os quais, Ed René Kivtz, Caio Fábio e Ricardo Gondim, entre outros pertecentes à vertente protestante histórica. 

Sobre isso, vejamos as seguintes colocações de Ricardo Gondim em seu texto "Deus nos livre de um Brasil evangélico":

Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. Antes explico: eu gostaria de ver o Brasil permeado com a elegância, solidariedade, inclusão e compaixão do Evangelho. Mas a mensagem subliminar dos outdoors, para quem conhece a cultura do movimento evangélico, é outra. Os evangélicos sonham com o dia em que cidade, estado e país se convertam em massa, e a terra dos tupiniquins tenha a cara de suas denominações.
 Afirmo que o sonho é que haja um “avivamento” religioso que leve uma enxurrada de gente para os templos evangélicos. Não reside entre os teólogos do movimento qualquer  desejo de que valores cristãos influenciem a cultura brasileira. Eles anelam tão somente que o subgrupo, descendente distante dos protestantes, prevaleça. A eles não interessa que haja um veloz crescimento numérico entre católicos romanos; que ortodoxos sírios, russos, armênios ou gregos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que virar “crente”, com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).
 Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se acontecesse a tal levedação radical do Brasil.
 Imagino uma Genebra calvinista brasileira e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo não inglês, mas moreno. Caso acontecesse, como os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Respondo: seriam execrados como diabólicos, devassos e pervertedores dos bons costumes. Não gosto nem de pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Um Brasil evangélico empobreceria, já que sobrariam as péssimas poesias do cancioneiro gospel. As rádios tocariam sem parar músicas horrorosas como  “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em Fé”.
 Uma história minimamente parecida com a dos puritanos calvinistas provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de Andrade?
 Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse Charles Darwin como “alucinado inimigo da fé”. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges loucos. Derridá nunca teria uma tradução para o português. O que dizer de rebeldes como Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, seriam pesquisados como desajustados. Ganhariam rótulos para serem desmerecidos a priori como loucos, pederastas, hereges.
 Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. A alegria do futebol morreria; alguma lei proibiria ir ao estádio ou ligar televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada de várzea, aconteceria quando? Haveria multa ou surra para palavrão? 
Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político prevaleceu. Basta uma espiada no histórico de Suas Excelências da bancada evangélica nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para se apavorar. Se, ainda minoria, a bancada evangélica na Câmara Federal é campeã em faltas e em processos no STF, imagina dominando o parlamento. 
Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura estadunidense. Obcecados em implementar os “valores da família”, tão caros ao partido republicano dos Estados Unidos, recrudesceria a teologia de causa-e-efeito, cármica, do “quem planta, colhe”. Vingaria o sucesso como aferidor da bênção de Deus. 
Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica. Uma nova elite religiosa (os ungidos) destilaria maldição contra os “inimigos da fé”, os “idólatras”, os “hereges”, com mais perversidade do que aiatolás iranianos. Ficaria mais fácil falar de inferno e mandar para lá todo mundo que rejeitasse algumas lógicas tidas como ortodoxas.
Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro perguntando: Como seria uma emissora liderada por evangélicos? Adianto: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.
Prefiro, sem pestanejar, os textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado, a qualquer livro da série “Deixados para Trás” do fundamentalista de direita, Tim LaHaye. O demagogo Max Lucado (que abençoou a decisão de Bush bombardear o Iraque) não calça o chinelo de Mário Benedetti.  
Toda a teocracia um dia se tornará totalitária. Toda a tentativa de homogeneizar a cultura precisa se valer de obscurantismo. Todo o esforço de higienizar os costumes é moralista e hipócrita.  
O projeto cristão visa preparar para a vida. Jesus jamais pretendeu anular os costumes de povos não-judeus. Daí ele celebrar a fé em um centurião, adorador no paganismo romano, como especial e digna de elogio. Cristo afirmou que, entre criteriosos fariseus, ninguém tinha uma espiritualidade tão única e bela como daquele soldado que se preocupou com o escravo.  
Levar a Boa Notícia – Evangelho – não significa exportar cultura, criar dialeto ou forçar critérios morais. Na evangelização, fica implícito que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, como sempre fizeram. O evangelho convoca à pratica da justiça; cria meios de solidariedade; procura gestar homens e mulheres distintos; imprime em pessoas o mesmo espírito que moveu Jesus a praticar o bem.  
Há estudos sociológicos que apontam estagnação quando o movimento evangélico chegar a 35% da população brasileira. Esperemos que sim. Caso alcançasse a maioria, com os anseios totalitários e teocráticos que já demonstra, o movimento desenvolveria mecanismos para coibir a liberdade. Acontece que Deus não rivaliza a liberdade humana, mas é seu maior incentivador.
Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.

Segue, agora, a célebre entrevista de Caio Fábio a Danilo Gentili sobre a indústria religiosa neopentecostal:



Veja, agora, o vídeo do historiador Leandro Karnal sobre a questão da Religião e o Fundamentalismo, e suas ligações com a globalização:


Leia também: Cresce o fascismo fundamentalista que se diz "Cristão" mas demonstra ser o oposto

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