O questionamento da confiança na imprensa
Por Carlos Castilho em 12/02/2014
Durante décadas a confiança do público na imprensa era uma questão acima de qualquer suspeita, mas desde a virada do século a quase unanimidade está desaparecendo rapidamente.
Não se trata de uma discussão estatística sobre oscilações dos índices
de confiança no noticiário, mas de verificar em que medida mudou o
contexto que envolve o que é publicado ou transmitido.
A questão a ser vista não é se a cobertura de eventos como o da morte do cinegrafista Santiago Andrade está
sendo isenta ou enviesada, mas de analisar a conjuntura em que o
trabalho da imprensa vem sendo desenvolvido. O foco é menos uma
preocupação com erros ou acertos e mais com a constatação de que os
mesmos problemas que estamos sentindo em matéria de desorientação
informativa, no caso do cinegrafista da TV Bandeirantes, tendem a se
repetir sempre que um evento provocar comoção pública.
A identificação de manipulações do noticiário é essencial, mas as
investigações da morte de Santiago ainda estão carregadas de muita
emoção, o que aconselha mais cuidado e equilíbrio na hora de apontar os
responsáveis e as consequências possíveis. O que, sim, já pode ser
analisado é que cada fato, número ou evento noticiado pela imprensa
contempla inevitavelmente várias versões – até porque o ditado popular
garante: “Em cada cabeça, uma sentença”.
Na era da abundância noticiosa, onde cada versão pode se tornar viral
na internet, não é mais possível falar de um único enfoque ou abordagem.
A dúvida e incerteza passam a ser as sensações mais comuns em que assiste a telejornais,
lê revistas, jornais e paginas Web. A maioria das pessoas não gosta de
conviver com a dúvida e incerteza porque isso as obriga a pensar e
admitir que os outros podem ter mais razão.
A imprensa alimentou durante décadas essa confortável posição de milhões de leitores e telespectadores ao prometer-lhes só a verdade e
apenas a verdade. Era uma questão de princípio e também uma necessidade
comercial, porque as pessoas pagam pela verdade, mas dificilmente fazem
o mesmo com a dúvida.
Acontece que hoje é impossível oferecer a certeza absoluta. Não
há como se prometer algo que não existe. O máximo que a imprensa pode
oferecer são versões, que inevitavelmente são parciais, na reconstrução
do que aconteceu. Se há um equívoco na postura da imprensa, este é o de
induzir o público a acreditar que existe algo inquestionável quando o
mais adequado seria assumir a relatividade de todos os depoimentos,
fotografias e vídeos.
No caso da morte de Santiago Andrade, a única coisa certa é que ele
pagou com a vida o preço de ser um profissional que não fugiu dos
desafios de seu trabalho. Mas com relação às investigações, em especial a
indicação de autoria, as empresas jornalísticas transmitem ao público a
ideia de que tudo vai ser resolvido rapidamente quando de fato estão atropelando a dúvida e a incerteza.
A morte de mais um jornalista não está sendo aproveitada para
discutirmos mais profundamente as causas e consequências das
manifestações de rua que se espalharam de forma viral pelas cidades
grandes e médias do país. A cobertura da imprensa está toda focada na
apresentação de um ou mais culpados, num processo cirúrgico cuja
preocupação é minimizar toda e qualquer controvérsia e apontar
responsáveis exclusivos, num cenário onde o componente político eleitoral não pode ser desprezado.
A imprensa está perdendo uma oportunidade fundamental para transformar a morte de Santiago em algo realmente histórico.
Em vez de empenhar-se na pressa por punições pouco convincentes e
decidisse jogar o que lhe resta de confiança junto ao público para
mostrar-lhe como conviver com a dúvida, com a controvérsia e com a
incerteza, porque elas são a marca dos tempos que começamos a viver.
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