O texto discute como analisar características do tempo presente, desafios humanos, sociais, ambientais, geopolíticos e limites das ideologias
Tempos sombrios!(?)
por Sandro Luiz Bazzanella e Cintia Neves Godoi, no Jornal GGN
É tentador (e também cômodo e reconfortante) no tempo em curso apresentá-lo como um tempo marcado por um lado por paradoxos e contradições. Esta estratégia argumentativa nos permite ato contínuo, argumentar que é neste contexto que se apresentam as melhores oportunidades.
A aceitabilidade deste argumento vincula-se a posicionamento analítico epidérmico, superficial, aligeirado. Ou talvez, em função do benefício da dúvida, pode-se reconhecê-lo como manifestação de certa ideologia do desenvolvimento, que parte do pressuposto de que estamos destinados como espécie humana necessariamente a progredir ad infinitum. Percalços, dificuldades, contradições, paradoxos são apenas manifestações circunstanciais à serem superadas pela capacidade de inovação, de empreendedorismo constantes no estoque de capital humano e social presente em maior ou menor grau nas mais distintas sociedades.
Mas, deparar-se com o argumento de que o tempo em curso apresenta-se sombrio é incômodo. Requer que aceitemos colocar em debate crenças, as verdades da ideologia do desenvolvimento, que conferiram e conferem sentido a existência de indivíduos e sociedades constituídas pela racionalidade moderna, política, jurídica e econômica burguesa, animada pelos ideais de revoluções políticas e, no campo econômico por relações de produção articuladas na constituição da relação entre capital e trabalho fundamental para a eclosão da revolução industrial e do estabelecimento da sociedade de plena produção e consumo vigente até a atualidade. É seguramente incômodo pois requer que se coloque em debate as homilias (discursos de fé) dos economistas, estes sacerdotes do mundo moderno na defesa dos cálculos supostamente “objetivos” e pragmáticos da economia elevada a condição de transcendência.
De fato, um dos movimentos determinantes da modernidade foi ter elevado à economia a centralidade da vida humana. Ou dito de outra forma, ter submetido as mais diversas formas de vida, inclusive a humana a cálculos “racionais” e “pragmáticos” atribuídos ao campo analítico e normativo advindo da economia.
Sob tais pressupostos, a economia (reduzida a “econometria”), que nascera como “economia política” foi elevada a condição de transcendência quase divina (ou quem sabe mais apropriadamente, diabólica). Retirada do uso comum de comunidades e povos, passou a decidir a vida e a morte dos recursos naturais e humanos à disposição do Estado, do Capital, a partir de cálculos de custo e benefício especificamente “econômico” de concentração de capital necessário a sua reprodução. A econometria (economia) elevada à condição de transcendência desconsidera o fato de que a riqueza é socialmente produzida e, como tal seria desejável, senão suficientemente compreensível seu compartilhamento humano e social. A concentração da riqueza socialmente produzida na forma do capital como fim em si mesmo não encontra amparo “racional” entre a diversidade de formas de vida que coabitam este mundo com os seres humanos.
Nesta direção, é interessante observar que a economia que nasce como “economia-política” e, na atualidade é classificada como uma “Ciência Humana”, e por interesses de suporte às demandas do capital transforma-se em econometria.
É por meio do discurso que a econometria e é elevada a condição de transcendência. São características de uma condição transcendente a intocabilidade, a inquestionabilidade, bem como sua dogmaticidade.
O discurso econométrico retira do uso comum o entendimento da dimensão política e, portanto social, pública da economia. O discurso econométrico privatiza a economia. Expropria-lhe sua condição ontológica e política de um bem público determinante no contexto das sociedades modernas.
Diante de tais condições sobre-humanas (transcendência da economia) resta apenas o culto cotidiano, a obediência, a observância dos preceitos morais advogados pelos guardiões de interesses transcendentes. Investidos de poderes pastorais necessários a reprodução de discursos justificam o fato de a economia ter sido retirada do uso comum de localidades, comunidades e povos e, ter sido transferida para especialistas, operadores de uma lógica de mercado que se expressa por meio da manifestação dos humores da economia elevada à transcendência.
Destas reflexões acima decorre a percepção de que nossos tempos são sombrios, pois tudo parece indicar que perdemos a capacidade (considerando a pretensão de que em algum momento a tivemos) de pensar e agir em prol de um mundo humanamente e vitalmente compartilhado.
Esta perda de referencial analítico, compreensivo, humano e vital se manifesta na reprodução de neologismos discursivos que anunciam o “novo”. Novas propostas, novos projetos, novas oportunidades, enfim um novo mundo. Porém, quando analisados mais atentamente apenas revelam a pavorosa precariedade da ideologia do desenvolvimento. Nesta direção, consideremos estes dois neologismos: “neoliberalismo” e “neodesenvolvimentismo”.
Tudo se passa como se na atualidade diante dos desafios humanos, sociais, ambientais, geopolíticos e, dos limites da ideologia do desenvolvimento em apresentar condição compreensiva, bem como respostas suficientemente adequadas a estes desafios, recorra-se a estratégia de ressignificação de corpus de ideias e ideologias historicamente situadas. No entanto, tudo indica que a retomada destas teorias e práticas revestidas pelo prefixo “neo”(novo), para além de situar estratégias consistentes para os desafios atuais, se apresentam como iniciativas “niilistas”, desesperadas, com o intuito de conferir sobrevida a um modelo econômico, político e social, à forma de vida e de mundo insustentável, promotora de violência, da miséria, da morte de milhões em benefícios de minorias privilegiadas.
Nesta perspectiva, o neoliberalismo apresenta-se em fins do século XX como retomada dos preceitos liberais sob novas perspectivas diante dos avanços do Estado de bem-estar social ao longo do século XX, sobretudo no Pós-Segunda Guerra Mundial aos anos 1970 nos países de capitalismo central.
Nos países periféricos e, neste caso o Brasil e grande parte da América Latina, o continente estava amargando golpes militares, perseguições, torturas e embrutecimentos políticos de toda ordem. Sob tais condições, o neoliberalismo chegou de forma mais intensa por volta dos anos 1990. Os resultados das agendas neoliberais se fazem presentes e incômodas, mundo afora. Abandono por parte dos Estados de sua capacidade de planejamento e soberania; atuação do Estado como suporte à concentração da riqueza socialmente produzida; desemprego estrutural; aumento da pobreza; migrações em massa; violência generalizada; perda de sentido existencial e de futuro para parcelas significativas da população mundial; emergência climática dentre outros trágicos desdobramentos da disseminação da agenda neoliberal. O “neo” do liberalismo apresenta-se como estratégia agressiva do capital financeiro global sobre povos e países.
Por sua vez o neodesenvolvimentismo apresenta-se com a pretensão de retomada das estratégias do desenvolvimentismo das décadas de 1950, 1960, em que o Estado assumiu o protagonismo no planejamento e implementação de projetos nacionais de desenvolvimento, procurando articular a burguesia industrial e os trabalhadores em torno de um pacto de desenvolvimento nacional.
No entanto, o neodesenvolvimento abandonou prerrogativas do desenvolvimentismo, entre elas o equilíbrio entre a relação Capital e Trabalho. A desregulamentação das leis trabalhistas é avassaladora. A democracia foi reduzida a processos procedimentais e normativos ditados pelos interesses majoritários do capital que controla o poder legislativo. A participação popular (embora sempre em manifestações por existir e ampliar sua ação) foi higienizada quando em torno das questões e dos debates políticos e econômicos estratégicos e, remetida aos burocratas da política em diálogos com os técnicos do mercado. Tais decisões são posteriormente justificadas em cadeia nacional em linguagem incompreensível a quase totalidade da população.
Tempos sombrios … e que venham os carros elétricos, pois somente estes podem nos livrar dos efeitos da emergência climática. Carros elétricos? Não seriam neoelétricos? Esta “inovação” já havia sido apresentada anteriormente. Mas, para ser elétrico é preciso considerar o uso do lítio dentre outros elementos, que se colocam também como delicados. Sim, toda a produção necessita do que temos de natureza, ou segunda natureza …
Frente as tantas dificuldades e desigualdades, alguns dizem que a melhor saída ainda é a da Avestruz que diante do perigo coloca a cabeça embaixo da areia para não ver nada … No entanto, os que estudam o comportamento de animais apontam que ao colocar a cabeça no chão, o animal escuta melhor a aproximação de um possível inimigo, bem como busca se camuflar e parecer um arbusto.
Assim, pensar estes tempos que se apresentam sombrios exige considerar com seriedade, transparência e compartilhamento de visões de mundo e de possibilidades em relação ao que fazemos, o que necessitamos, e como e o que de fato precisamos mudar.
Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia
Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.