O então Secretário da Cultura do governo de Bolsonaro, Roberto Alvim, participara de mais uma manobra da extrema direita para, simultaneamente, testar e naturalizar discursos de regimes autoritários no Brasil com raízes em pensamentos fascistas e nazistas.
Do Justificando:
Quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Imagem ao fundo: German Federal Archives/Wikimedia Commons – Arte: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Rochester Oliveira Araújo
O Secretário da Cultura do governo de Bolsonaro participa de mais uma manobra da extrema direita para, simultaneamente, testar e naturalizar discursos de regimes autoritários no Brasil com raízes em pensamentos fascistas e nazistas.
Me lembra uma marcha sobre areia de dunas, do período que passeava pelas montanhas de areia de Natal. Em uma marcha de quem sobe dunas de areia, cada passo para cima dá a sensação de um imediato recuo posterior que nos voltaria à posição inicial. Um passo pra cima, a areia sob os pés cede e nos trás de volta pra baixo. Parece uma subida impossível. Mas não é isso que acontece, pois a cada passo, mesmo que haja esse recuo obrigatório com a areia que desliza sob os pés, ainda assim há um avanço e uma escalada. Nesse caso, o avanço e a escalada são no sentido de um regime autoritário e violento contra minorias diversas, trazendo não só os tons fascistas já identificados no comportamento antidemocrático do governo Bolsonarista, mas também outros tons nazistas.
Na manobra da vez, o então Secretário da Cultura Ricardo Alvim plagiou em parte de seu discurso um pronunciamento do Ministro da Propaganda do Regime Nazista, Joseph Goebbels. Em uma “coincidência retórica” que envolvia inclusive uma sincronia sonora com Goebbels, já que Roberto Alvim fala ao som de uma obra de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler, este anunciava que seu projeto de governo seria baseado em uma “arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa (…) ou então não será nada”, parafraseando o Ministro da propaganda Nazista.
A reação ao vídeo publicado foi imediata e a repercussão negativa provocou aquele recuo obrigatório da areia que cede sob os pés da marcha, mas não deixa de permitir um pequeno avanço e uma naturalização dos discursos do governo. Ricardo Alvim foi exonerado, fazendo parte dessa manobra as respostas públicas onde falsamente se deixam pelo caminho quem comete equívocos, num falacioso desvio de intenção do comando central e das ideias conjugadas.
Contudo, o que é interessante de ponderar é que a reação imediata, após a identificação do plágio do discurso e de sua fonte odiosa se resumiu em um sentimento de indignação – ainda que inflamado – pela audácia do Secretário em fazer de forma tão descarada essa referência e esse aceno ao regime nazista. Pra além da coincidência retórica, para além da obviedade dessa continência que o Secretário fez ao regime nazista, para além do trecho plagiado, o que nos afetou? Será que se o discurso do Secretário não fosse tão evidente na sua menção e alusão ao regime nazista, teríamos percebido ou a indignação teria sido inflamada? Ou será que a marcha sob a duna teria encontrado um piso mais firme para avançar?
No discurso do Secretário há uma soberba cultural evidente que julga seu projeto de governo como capaz de construir um novo projeto civilizatório para o Brasil a partir da construção de uma cultura baseada em “mitos fundantes” como a pátria, a família, Deus e a coragem do povo, destacando elementos como a fé, a lealdade, o autosacrifício e a luta contra o mal como fundamentais para esse projeto.
Como já havia se manifestado anteriormente, a ideia de Alvim sobre a cultura é que esta funcionasse como uma “máquina de guerra”, e talvez por isso mesmo seu nome tenha sido escolhido para a pasta do governo Bolsonarista. O funcionamento de um braço do governo – que adquiriu natureza de secretaria, não mais de Ministério – voltado diretamente para a propaganda das suas concepções e ideologias, não tratando a cultura como uma expressão popular que merece respeito e revela a diversidade da formação nacional, mas sim como um instrumento de imposição de um pensamento e propagandista. Em seu discurso, o secretário destaca a necessidade de artistas que percebam sentimentos novos que brotam na sociedade brasileira, destacando a ideia de um porvir que quer construir como projeto de governo, funcionando como propaganda positiva.
Dando ares de regimes autoritários, o principal dessa função propagandista, contudo, – para além da propaganda positiva – é a destruição ou aniquilação do que lhe é contrário ou diferente. É o não reconhecimento da possibilidade de uma cultura expressiva baseada nos afloramentos da sociedade. Ao final da fala escolhida para ser parafraseada pelo secretário, fica tal evidência onde se anuncia que a cultura ou será tal projeto ou não será nada. É essa ameaça que denota o tom autoritário e o projeto de governo. É o avanço mínimo da marcha da duna que permanece, sobretudo quando para além da coincidência retórica que foi reprimida, permanece a coincidência ideológica que não é contraposta.
É esse tom de propaganda negativa que se herda do regime nazista. Goebbels foi o responsável por políticas como a de queimar livros que não fossem adequados ao projeto de cultura do regime nazista, fazendo arder em 451 graus fahrenheit tudo que fosse considerado subversivo. Em um país em que as obras culturais como o cinema e o teatro dependem do suporte financeiro público, o posicionamento do Secretário Alvim já era bem próximo ao de Goebbels, anunciando os cortes à tais financiamentos e disfarçando sua censura como uma “curadoria”.
A soberba do projeto cultural implica em um não reconhecimento da cultura como uma expressão plural e diversa, e tal discurso tem vasto campo de aceitação na nossa sociedade. Infelizmente, tanto por pessoas que se posicionam à direita como por pessoas que se posicionam à esquerda, politicamente. É o discurso que busca ser capaz de taxar e identificar o que é culturalmente merecedor de fomento, de incentivo e de aplauso a partir das suas concepções individuais que torna esse discurso viável. Foi o discurso ouvido, por exemplo, após o massacre de Paraisópolis, quando se condenou o funk como uma expressão cultural.
É esse o pequeno avanço da marcha da duna que podemos identificar. É notar que o discurso, revestido de correspondência com o discurso do propagandista do regime nazista só dispara o alerta e as reprovações em razão da sua estética depravada e do seu flerte. Que as indignações se concentram mais na existência de uma referência ao regime nazista, na ideia de que alguém foi capaz de fazer essa alusão do que no conteúdo de um discurso que igualmente é repugnante.
Rochester Oliveira Araújo é mestre em Direito Constitucional e Defensor Público do Estado do Espírito Santo.
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