Não deixemos que a imbecilidade alienada de alguns traga de volta a tragédia da violência para muitos!
Texto de Leonardo Boff
1964: Golpe militar a serviço de um Golpe de classe
Embora tardiamente, enfim, a
Comissão da Verdade foi instaurada para trazer à luz os crimes, as torturas, as
violências e os desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado de cunho
ditatorial. Deve fazer justiça às vítimas que sobreviveram e aos parentes e amigos
dos desaparecidos. Importa enfatizar a natureza diferente da violência
praticada pelo Estado de terror e aquela dos que resistiram, mesmo com
armas na mão. A do Estado é perpetrada em contradição à função do Estado como
Estado. Só ele tem o uso legítimo da violência (só a ele cabe prender, julgar e
punir). Mas é seu dever proteger a vida daqueles que estão sob sua guarda. Se
não o faz, seviciando, torturando e até assassinando, comete um crime e se
transforma num Estado de terror. Foi o que ocorreu no Brasil e em vários países
da América Latina. Aqui importa honrar a dignidade da Presidenta Dilma Rousseff
que foi torturada durante uma semana e hoje, sem rancor e mágoa, é comandante
em chefe das Forças Armadas que carregam pesada memória por aquilo que pela
força impuseram ao país.
1.O contexto maior da violência
do Estado
O objeto da Comissão
da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos. É sua tarefa
precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os
juízos serem pontuais e os casos derivarem numa casuística indesejada.
Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência
estatal e explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro a
perversidade que foi a banalização da suspeita, das denúncias, das espionagens
e da criação de um ambiente de medo generalizado e desencorajador.
Cabe, a meu ver, à
Comissão da Verdade, proceder a um trabalho complementar: depois de ter
levantado os dados da violência de Estado e de suas vítimas, cumpre fazer um
juízo ético-político sobre todo o período ditatorial que se prolongou por 21
anos (1964-1985). Por que tal tarefa é imprescindível e de grande relevância
moral? Porque vítimas não são apenas os que sentiram em seus corpos a truculência
dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação.
2.O “Golpe militar” como crime
lesa-pátria
Importa dizer com
todas as palavras que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição.
Foi rasgar as leis e em seu lugar instaurar o arbítrio. Foi uma ocupação
violenta de todos os aparelhos de Estado para a partir deles montar uma ordem
regida por atos institucionais, pela tirania, pela repressão e pela
violência.
Nada mais
dilacerador das relações sociais que a ruptura do contrato social. É este que
permite a todos conviverem com um mínimo de segurança e de paz. Quando este é
anulado, no lugar do direito entra o arbítrio e no lugar da segurança vigora o
medo. Basta a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal.
Mesmo detidos e sequestrados por engano, mas suspeitos como opositores, como
ocorreu com muitos inocentes camponeses, para logo serem submetidos a sevícias
e a sessões intermináveis de torturas. Muitos não resistiram e sua morte
equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos
dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre
1964-1979. Esperamos que a Comissão da Verdade traga sua paixão e morte à luz
da verdade.
Retomando o tema: o
que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de
uma guerra civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a
ordem democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou
uma ameaça real. Na histeria da guerra-fria, todos os que queriam reformas na
perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes maiorias
operárias e camponesas – eram logo acusados de comunistas e e de marxistas,
mesmo que fossem bispos como Dom Helder Câmara. Contra eles não cabia apenas a
vigilância, mas a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o
pau-de-arara feroz, os afogamentos desesperador e os alegados “suicídios” que
camuflavam o puro e simples assassinato. Em nome de combater o perigo
comunista, assumiram a lógica comunista-estalinista da brutalização dos
detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres
como admitiu o ex-agente do Dops Cláudio Guerra.
3. O capitalismo selvagem
como o grande inimigo
O grande perigo no
Brasil e na América Latina sempre foi o capitalismo selvagem que criou o maior
fosso de desigualdades entre ricos e pobres, sem paralelos no mundo até
os dias atuais. Esse capitalismo sugou a população brasileira por séculos. No
dizer de Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, “capou e recapou,
sangrou e ressangrou” as multidões de nossa população, sem direitos e sem
defesa.
O Estado ditatorial
militar, por mais obras que tenha feito, fez regredir política e
culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências mais
brilhantes como Paulo Freire, Josué de Castro, Álvaro Oliveira Pinto, Darcy
Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Betinho, Leandro Konder, Luiz Alberto
Gómes de Souza, Luis Gonzaga de Souza Lima só para citar alguns nomes
entre dezenas de outros notáveis.
Que perigo poderiam
representar jornalistas como Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, Ziraldo,
Heitor Cony, Miriam Leitão e os cantores Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico
Buarque, novamente para citar alguns entre tantos, para serem detidos e
interrogados?
4. Os danos causados à
nação
A repressão e o medo
abortaram o desenvolvimento de nossa intelectualidade que começava, de forma
promissora, a pensar o Brasil a partir do Brasil. Abafaram lideranças políticas
e condenaram a muitos, sem princípios éticos e sem sentido de brasilidade, a
serem seus súcubos, recompensados com benesses desde estações de rádio, jornais
e canais de televisão.
Portanto, a nação
inteira foi agredida e exposta à irrisão internacional. Os que deram o golpe de
Estado que, como logo veremos, foi principalmente um golpe de classe, devem ser
responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.
Não foram seus benfeitores mas aqueles que os mantiveram na ignorância, na
minoridade e numa atmosfera de permanente medo.
Permito-me referir
um caso pessoal: quando publiquei meu livro Jesus Cristo Libertador em
princípios de 1972 tive que me esconder por uma semana. A palavra “libertador”
e “libertação” era oficialmente proibida. Por causa disso já era procurado para
me explicar. O advogado da Vozes, um ex-pracinha, portanto um militar
competente e moderado, teve muito trabalho para convencer os órgãos de
repressão de que havia um equívoco, pois se tratava de teologia e não de política.
Bastava ver os longos rodapés quase todos citando literatura alemã
(acabava de regressar de meus estudos na Alemanha) para provar a minha
inoperância subversiva. Escapei de ser interrogado, embora a vigilância
continuasse forte, a ponto de sempre ter que viajar acompanhado e falando com o
companheiro numa língua estrangeira para despistar os seguidores. A
estupidez oficial era tanta que em Porto Alegre deu-se ordem de busca e prisão
ao Senhor Medellin. Mal sabia o oficial que nunca existiu um Senhor Medellin.
Tratava-se dos documentos de viés libertador da Conferência Latino-Ameriana de
Bispos realizada na cidade colombiana de Medelin em 1969.
5. Golpe de
classe com apoio do golpe militar
Os militares
abandonaram o poder e pelos acertos da Anistia Geral e Irrestrita para ambos os
lados (ainda sujeita à análise de sua validade jurídica) garantiu sua
impunidade e intangibilidade. Em nome deste status resistem ao que foi aprovado
pelo Parlamento e feito ação de Estado e não de Governo: a instauração da
Comissão da Verdade. E ainda, como se tivessem algum poder que, na verdade é
inexistente e vazio, através de porta-vozes desafiam a Presidenta e outras
autoridades civis. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para
a vergonha internacional deles.
Os militares que
deram o golpe se imaginam que foram eles os principais protagonistas desta nada
gloriosa história. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, na
verdade, usados por forças muito maiores que as deles. René Armand Dreifuss escreveu
sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A
conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes
1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos
originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil
não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força
militar.
A partir dos anos 60
do século passado se constituiu o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico:
o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES fundado em 29 de novembro de
1961), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Grupo de
Levantamento de Conjuntura (GLC) e mais tarde, oficiais da Escola
Superior de Guerra (ESG), formando uma rede nacional composta por grandes
empresários multinacionais, nacionais, banqueiros, órgãos de imprensa,
intelectuais e alguns militares, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que
os unificava, diz o autor “eram suas relações econômicas multinacionais e
associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e
reformular o Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses
corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva
que já em “em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao
poder”(p.186).
A conspiração pois
estava em marcha, há bastante tempo, levada avante, não diretamente pelos
militares mas pelo complexo IPES/IBAD/GLC, articulados com a CIA e com a
embaixada norte-americana que repassava dinheiros e acompanhava o desenrolar de
todos os fatos.
Aproveitando-se a
confusão política criada ao redor do Presidente João Goulart identificado como
o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para
realizarem seu projeto. Chamaram os militares para darem o golpe e tomarem de
assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante multinacional
associada à nacional, usando o poder militar. Conclui Dreifuss: “O ocorrido em
31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um
movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG organizaram
a tomada do poder do aparelho de Estado”(p. 397). Especifica Dreifuss: ”O
Estado de 1964 era de fato umEstado classista e, acima de tudo,
governado por um bloco de poder”(p. 488). E especificamente afirma: ”A história
do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964,
quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e
o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus
objetivos”(p.489).
Para sustentar a
ditadura por tantos anos criou-se uma forte articulação de empresários, alguns
dos quais financiavam a repressão, os principais meios de comunicação,
magistrados e intelectuais anticomunistas declarados, entre outros. A Doutrina
de Segurança Nacional não era outra coisa que a Doutrina da Segurança do
Capital.
Os militares
inteligentes e nacionalista de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados
não contra uma presumida causa – o combate ao perigo comunista – mas a serviço
do capital multinacional e nacional que estabeleceu relações de alta exploração
e de grande acumulação para as elites oligárquicas, articuladas com o poder
militar. O golpe não serviu aos interesses nacionais globais, mas aos
interesses corporativos de grupos nacionais articulados com os internacionais
sob a égide do poder ditatorial dos militares.
A Comissão da
Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta
trama. Ela simplesmente cumpria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não
apenas da Verdade de fatos individualizados de violência de Estado mas da
Verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa,
nacional associada à multinacional que usou o poder discricionário dos
militares para operar, tranquilamente, sua acumulação privada à custa da
maioria do povo brasileiro.
Os 21 anos de regime
ditatorial nos privaram da liberdade, causaram muitas mortes e
desaparecimentos, um atraso político e um oneroso padecimento a todos.
Leonardo
Boff é teólogo, filósofo, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra
e escritor.
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