Artigos Espíritas
Extraído da obra
Manuel S. Porteiro - Conceito Espírita de Sociologia
O
Espiritismo ante o Problema Social
I
As convulsões políticas e sociais do momento histórico em que
vivemos nos obrigam a separar nossa atenção dos problemas de índole psicológica
para fixá-la nos de índole econômica e social, que também ocupam uma das fases
de nossos estudos e exigem ser tratados à luz do Espiritismo.
Vivemos uma hora de inquietação social, de incerteza
política, de crises econômicas, em que as nações parecem ter perdido o controle
de seus atos, nada se entende ou aparenta não entender-se, em que as ambições
de mando e de poder romperam o freio das velhas democracias para tomar, pelo
império da revolução, as rédeas do mundo, em que a defesa do atual regime
social se mostra de cara lavada empunhando o fuzil da ditadura. Dizemos com a
cara descoberta porque, de fato, sempre têm existido, ainda que disfarçadas com
a máscara de uma falsa democracia. A esta ditadura dos de cima responde a
ditadura dos de baixo e em torno destes dois extremos giram e se chocam as
tendências em aparente confusão.
Estas convulsões que se notam em todas as ordens da vida social,
no mundo inteiro, não são mais do que os sintomas do novo parto da história: os
estertores de uma sociedade que agoniza e os anúncios de uma nova sociedade que
nasce.
Ante o que vai e o que vem, acrescente-se que nós espíritas
nos inclinamos decididamente pelo último. Somos evolucionistas, amamos a
justiça, defendemos a verdade e trabalhamos ansiosos pelo bem, tanto individual
como social: desejamos uma sociedade melhor e lutamos por seu pronto advento.
Careceria, portanto, de exato conhecimento do Espiritismo
quem acreditasse que este tem por única missão ocupar-se das coisas do
espírito, dos problemas da alma, fazendo dele uma ciência puramente
experimental para estabelecer a certeza de nossa imortalidade e buscar a
felicidade para depois desta vida. Se é este, certamente, seu objeto
primordial, porquanto constitui a base sobre a qual repousa toda sua estrutura
ideológica, não se circunscreve, nem poderia circunscrever-se somente a isto,
sem deixar de cumprir sua função profundamente revolucionária em todas as
ordens da vida, tanto individual como social.
O Espiritismo tem objetivos, horizontes mais dilatados: é, aparte
de uma ciência experimental e filosófica, uma ideologia social, que persegue
uma finalidade superior neste mundo onde, junto aos ideais mais generosos, mas
sem base sólida, se encontram as tendências mais conservadoras e egoístas, os
ódios mais perversos, as misérias morais, as ambições mesquinhas e repudiáveis.
O Espiritismo não considera seus adeptos desvinculados da
sociedade, nem os concebe felizes e satisfeitos contemplando a dor e a miséria
dos deserdados frente ao prazer desenfreado dos detentores de posses. Para o
Espiritismo o homem é um ser social e, portanto, ensina-o a ser solidário com a
sociedade em tudo que tenda ao seu melhoramento, à maior justiça e bem-estar de
todos e de cada um.
Ainda que explique a razão de ser de muitos males individuais
e sociais, baseando-se na lei de causalidade espírita – o que não significa
justificá-los – não considera a sociedade em estado estático, mas dinâmico, ou
seja, evoluindo continuamente para uma finalidade superior que se realiza com o
tempo e em proporção aos esforços nesse sentido.
A doutrina espírita – que, por ignorância, muitos consideram
conservadora e outros, por interesse, aceitam-na como apoio de todos os
latrocínios e iniqüidades sociais – é tão profundamente revolucionária e ao
mesmo tempo construtiva, que nada fica a seu passo de injusto, mau e imoral,
que ela não o destrua e nada destrói que não seja capaz de substituir com
edificações melhores, mais sólidas. Deste ponto de vista, encaramos, como
espíritas, os problemas sociais.
Temos uma finalidade social que não difere dos ideais mais
avançados, senão pelo conceito espiritual, indefinidamente progressivo que
temos do ser humano.
Repudiamos o regime de exploração e de desprezíveis
privilégios em que vivemos, a moral hipócrita e interesseira que dela se
desprende, a justiça unilateral e ajustada às prerrogativas econômicas, o
latrocínio dos governantes e a atitude dos governos que, amparados em leis
constitucionais injustas e anacrônicas – quando não em forças arbitrárias a
estas mesmas leis – crêem-se senhores dos povos, quando só deveriam ser seus
servidores e que, sob pretexto de administrar os interesses gerais das nações,
asseguram o monopólio e a riqueza desmedida de uns, à custa do trabalho e da
miséria de outros; repudiamos também a falsa educação que se ajusta às
convenções sociais e às leis que as defendem, e estas mesmas leis que fazem do
crime legalizado uma virtude patriótica e da verdadeira virtude, um delito
punível que ampara, enfim, o assassinato, o roubo e as imoralidades e, como uma
missão, castiga sem piedade delitos menores, que derivam da mesma injustiça e
imoralidade que a lei ampara. Não concordamos com a política de rapina
internacional que faz com que os países mais fortes se apossem dos mais débeis
e exerçam hegemonia sobre eles, nem com as guerras fratricidas, que não têm
outra finalidade por parte dos que as fazem que a de assegurar o império
capitalista de umas nações sobre outras, de satisfazer ambições econômicas ou,
quando não, afiançar o regime de exploração humana, impedindo que outros, mais
em concordância com a justiça e o direito natural, abram caminhos.
Enfim, o espírita – pelo menos o que o é de verdade – não
pode deixar de repudiar tudo isso e o pior que existe neste mundo, por
ignorância ou maldade dos homens. E, ao repudiá-lo, aspira, naturalmente, a um
regime de liberdade, de igual economia e de verdadeira fraternidade, onde a
justiça não seja um mito, o direito natural não seja preterido pelo direito do
mais forte e do mais astuto, onde o bem-estar seja comum, a paz do mundo seja
uma verdade, a democracia não seja um ardil, a caridade não seja uma aviltante
esmola, nem o amor uma veleidade, nem a solidariedade uma especulação.
Mas, será possível que neste mundo destinado, segundo crença
geral, à dor e à expiação, neste inferno de provas, neste presídio de almas
condenadas ao suplício, possa realizar-se tal progresso? Nele caberão tantas
coisas boas? Não se opõem ao desejo de conquistá-las os ensinamentos do
Espiritismo?
Creio que tudo isto é exeqüível pela evolução da sociedade
humana, pode chegar a realizar-se e tal realização, em tempo mais ou menos
próximo, depende dos esforços que os homens de bons sentimentos e mais
capacitados e decididos na obra da transformação social façam para consegui-lo.
E que, longe de ser contrário aos ensinamentos do Espiritismo, é a essência
mesma de sua doutrina. Mas, ainda quando não fosse realizável, sempre seria uma
nobre aspiração, uma função elevada de nossa vida, o tender a eles e ao fazê-lo
poderemos estar seguros de não haver confundido nosso caminho.
Para demonstrar que o que vimos sustentando não é uma simples
opinião pessoal concebida à margem da doutrina espírita, vou expor, o mais
simplesmente possível, alguns conceitos sociológicos extraídos das obras de
Allan Kardec, porque o ensinamento nelas exposto não leva o selo de uma só
personalidade; é o conteúdo filosófico de muitas opiniões que, ainda que não sejam
possíveis, refletem unanimemente a essência da doutrina. Ainda porque, Kardec,
o mais humanitário dos mestres espiritistas, que fez dos evangelhos seu estandarte,
da caridade a maior virtude e a atitude mais nobre da humanidade, não pode ser
suspeito de “anarquista perigoso”.
Tomarei, pois, do mencionado autor, somente o que se relaciona
com o problema social, tirado das páginas de seus livros, que se encontra
exposto junto a outros ensinamentos de ordem moral.
II
Allan Kardec, respondendo [i]
à pergunta: “É lei da natureza a desigualdade das condições sociais?”, diz:[ii]
“Não, é obra do homem e não de Deus.” (Item 806).
– Algum dia essa desigualdade
desaparecerá?
“Eternas somente as leis de Deus o são. Não vês que
dia a dia a desigualdade se apaga? Desaparecerá quando o egoísmo e o orgulho
deixarem de predominar. Restará apenas a desigualdade do merecimento...” (Idem).
– Que se deve pensar dos que
abusam da superioridade de suas posições sociais para, em proveito próprio,
oprimir os fracos?
“Merecem anátema! Ai deles! Serão, a seu turno, oprimidos...”
(Item 807).
– A desigualdade das riquezas
não se originará da das faculdades...?
“Sim e não. Da velhacaria e do roubo, que dizes?” (Item
808).
Ante a afirmação: “Mas, a riqueza herdada, essa não é
fruto de paixões más.”, responde:
“Que sabes a esse respeito? Busca a fonte de tal
riqueza e verás que nem sempre é pura. Sabes, porventura, se não se originou de
uma espoliação ou de uma injustiça? Mesmo, porém, sem falar da origem, que pode
ser má, acreditas que a cobiça da riqueza, ainda quando bem adquirida, os
desejos secretos de possuí-la o mais depressa possível, sejam sentimentos louváveis?...”
(Idem).
À pergunta: “Será possível e já terá existido a
igualdade absoluta das riquezas?”, diz:
“Não; nem é possível. A isso se opõe a diversidade
das faculdades e dos caracteres.” (Item 811).
Entenda-se bem que Kardec se refere aqui à “igualdade
absoluta” que temos sublinhado de propósito para que não se confunda com a
igualdade relativa ou proporcional, ou melhor, com a igualdade de deveres para
produzir a riqueza em proporção às forças e atitudes de cada um e à igualdade
de direitos para satisfazer as necessidades e gozar das riquezas na mesma
proporção. É o que, em Sociologia, se entende por igualdade econômica e social,
as tendências socialistas perseguem, o Espiritismo sustenta em seus princípios
e nós espíritas proclamamos como finalidade social e seguimos de perto nossa
moral superior e com a crítica sadia, fecunda, da sociedade atual.
A palavra “riqueza” tem aqui um significado também muito
relativo, se se analisa à luz meridiana da seguinte sentença de Kardec:
“Propriedade legítima só é a que foi adquirida sem
prejuízo de outrem.” (Item 884).
E desta outra não menos luminosa:
“Proibindo-nos que façamos aos outros o que não
desejáramos que nos fizessem, a lei de amor e de justiça nos proíbe, ipso
facto, a aquisição de bens por quaisquer meios que lhe sejam contrários.”
(Idem).
Deste ponto de vista, não há riqueza propriamente bem
adquirida e o único que, em tal sentido, pode considerar-se legítimo é o
relativo bem-estar que cada um possa conquistar com o próprio esforço e sem
prejuízo dos demais, o que de nenhum modo constitui uma riqueza.
– Por não ser possível a
igualdade (absoluta) das riquezas, o mesmo se dará com o bem-estar?
“Não, mas o bem-estar é relativo e todos poderiam
dele gozar, se se entendessem convenientemente...” (Item 812).
E logo acrescenta:
“Os homens se entenderão quando praticarem a lei de
justiça.” (Idem).
Vejamos agora como Kardec – por cujo intermédio se
expressam seus colaboradores espirituais – entende esse relativo bem-estar do
homem, considerado como membro da sociedade:
“... porque o verdadeiro bem-estar consiste em cada
um empregar o seu tempo como lhe apraza e não na execução de trabalhos pelos
quais nenhum gosto sente. Como cada um tem aptidões diferentes, nenhum trabalho
útil ficaria por fazer. Em tudo existe o equilíbrio; o homem é quem o perturba.”
(Item 812).
Neste último parágrafo está exposto com toda clareza
e perfeitamente de acordo com as mais avançadas tendências socialistas,[iii]
o conceito ideológico da distribuição do trabalho, segundo as aptidões de cada
um e sem imposição de tempo, conceito que temos exposto mais de uma vez na
imprensa espiritualista e que constitui um dos princípios fundamentais da
justiça social, agregado ao trabalho “útil”, material ou intelectual, imposto
pela necessidade de viver e pela mesma lei de associação a todos os homens por
igual, segundo suas forças e suas aptidões; conceito que emana da infinidade de
passagens das obras citadas, em tudo concordante com a essência da Doutrina.
Agreguemos, todavia, ao exposto, algumas idéias
complementares que se referem à justiça social e ao direito natural:
“A justiça consiste em cada um respeitar os direitos
dos demais.” (Idem 875).
“Está de tal modo em a natureza, que vos revoltais à
simples idéia de uma injustiça.” (873).
“Os direitos naturais são os mesmos para todos os homens,
desde os de condição mais humilde até os de posição mais elevada.” (Item 878).
Entenda-se bem que Kardec se refere aos direitos
naturais, cuja igualdade reconhece, e não aos concedidos pela lei civil,
segundo suas próprias palavras,
“... (o homem) não raro há criado direitos e deveres
imaginários,[iv]
que a lei natural condena e que os povos riscam de seus códigos à medida que
progridem.” (Item 795).
Em outra passagem, diz:
“Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física
e moralmente: embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na
justiça deve prover à vida do fraco,
sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem
trabalhar, sem lhes deixar a vida à
mercê do acaso e da boa-vontade de alguns.” (Item 888).
E completa o pensamento com este outro não menos
revolucionário na ordem das idéias sociológicas. Referindo-se à civilização,
diz que unicamente pode existir povo mais civilizado
“... onde as leis nenhum privilégio consagrem e sejam
as mesmas, assim para o último, como para o primeiro; onde com menos
parcialidade se exerça a justiça; onde o fraco encontre sempre amparo contra o
forte; onde a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam mormente
respeitadas; onde exista menor número de desgraçados; enfim, onde todo homem de
boa-vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário.” (Item 793).
Em outra passagem, diz:
“Quanto mais se aproximam da verdadeira justiça,
tanto menos instáveis são as leis humanas, isto é, tanto mais estáveis se vão
tornando, conforme vão sendo feitas para todos e se identificam com a lei
natural.” (795).
“Infelizmente, essas leis (refere-se às que ainda
existem) mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a
fonte.” (796).
Para terminar esta exposição de conceitos
sociológicos extraídos das obras fundamentais do Espiritismo e não cansar mais
a atenção do leitor, me contentarei em citar os parágrafos que servem de
corolário ao exposto e cujos conceitos são, para o caso que nos ocupa, de valor
inestimável:
“...suponhamos uma sociedade de homens bastante
desinteressados, bastante bons e benévolos para viverem fraternalmente, sem
haver entre eles nem privilégios, nem direitos excepcionais, pois de outro modo
não haveria fraternidade. Tratar a alguém de irmão é tratá-lo de igual para
igual; é querer quem assim o trate, para ele, o que para si próprio quereria.
Num povo de irmãos, a igualdade será a conseqüência de seus sentimentos, da
maneira de procederem, e se estabelecerá pela força mesma das coisas. Qual,
porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que faz queira o homem ter em toda
parte a primazia e o domínio, que vive de privilégios e exceções...” (Obras Póstumas – “Liberdade, Igualdade,
Fraternidade”).
“Será possível a destruição do orgulho e do egoísmo?
Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do contrário, forçoso seria
determinar um ponto de parada ao progresso da Humanidade...” (Idem).
“... A aspiração do homem por uma melhor ordem de coisas
é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos que são progressistas cabe
acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização dos meios mais eficientes.”
(Idem).
III
Como se vê, o Espiritismo não é uma ideologia conservadora,
adaptável aos interesses econômicos mesquinhos que servem de fundamento ao
atual regime social.
Nas citações que acabamos de fazer acham-se expressos, com
admirável simplicidade, os conceitos da nova Sociologia que deverá servir de
base à sociedade do porvir, para a qual tendem todos os homens de ideais
sadios, amantes da verdade e da justiça.
Eis aqui a exposição sintética destes princípios
emanados da doutrina espiritista:
reconhecimento do direito natural;
reconhecimento da igualdade social;
reconhecimento da igualdade econômica, proporcional às
necessidades e aptidões de cada um;
reconhecimento da igualdade de deveres na produção útil,
seja no trabalho material ou intelectual;
distribuição do trabalho social em concordância com as
aptidões e gostos de cada um e liberdade na escolha do trabalho, bem como na
duração do tempo;
supressão de todo castigo legal e implantação de novos
métodos corretivos, em concordância com o conceito espiritual da vida;
educação moral fundada na justiça e no direito natural igual
para todos;
respeito mútuo, sem distinção de classe social,
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não como meros decretos institucionais,
mas como direitos sociais, derivados da justiça econômica e social e da nova
moral espírita.
Se a tudo isto juntamos a igualdade de direitos da
mulher em relação ao homem: a liberdade de consciência e de idéias; a proteção
da sociedade para o livre desenvolvimento das faculdades e aptidões dos
indivíduos de ambos os sexos; a tolerância, sem prejuízo à educação e ao
exercício das atividades; a caridade, no sentido de amor, de piedade e de
sacrifício; a propensão por parte das forças dirigentes da sociedade, para que
o trabalho seja cada vez mais agradável, menos forçado, mais intelectual e,
acima de tudo, a certeza de nossa imortalidade, de nosso progresso indefinido,
que emana da doutrina espiritista e que estão expressos em suas obras fundamentais;
vemos que o Espiritismo, longe de ser uma tendência conservadora, é a mais
revolucionária, a mais humana e a mais espiritual de todas quantas existem.
Ante esta perspectiva grandiosa que o Espiritismo nos oferece
para a sociedade do futuro, e que não é, como se costuma dizer, uma concepção
utópica, “produto de cérebro anarquizado”, como poderíamos nós espíritas
permanecer indiferentes diante dos crimes sociais, da exploração de uma classe
dominante, que garante seu poderio e o monopólio da riqueza social na razão da
força, sobre a ignorância dos povos e o falso ensinamento de uma moral
interesseira? Como poderíamos concordar com esta ordem social estabelecida
sobre a desordem dirigida pelo império da força? Como poderíamos contemplar a
imoralidade, o vício, a injustiça, a exploração e o roubo sociais – que se
querem fazer passar por coisas muito justas, boas, morais – sem manifestar
nosso repúdio? Como poderíamos conviver com a hipocrisia e a mentira, se os
princípios que sustentamos a elas se opõem? Como, enfim, poderíamos nos
conformar com a situação do regime atual criado sobre privilégios iníquos, se o
Espiritismo nos fala de uma sociedade melhor, de paz, de amor, de fraternidade
e de justiça, e da possibilidade de realizá-la? Quem há de realizá-la, admitida
sua possibilidade, se não os homens que nela crêem, por seu esforço contínuo,
com a prédica perseverante, com o propósito declarado à paz do mundo, com a
ação constante no impulso moralizador nessa direção e pelos meios mais eficazes
e convincentes?
Para o espírita, a sociedade humana é um dinamismo espiritual
que se move por impulsos de idéias e sentimentos no sentido progressivo; mas
como o progresso não se efetua em linha reta, senão como dizem certos
filósofos, em forma de espiral, tem seus aparentes decessos, que correspondem
ao final de cada civilização, caracterizados pela crise geral em todas as
ordens da vida, cuja civilização ao final da curvatura de seu ciclo evolutivo,
com o impulso das forças que a determina, dá nascimento a outras. E assim
sucessivamente, de ciclo em ciclo, a humanidade vai-se elevando para formas
sociais mais perfeitas, passando sempre pelas mesmas fases de nascimento,
apogeu, decadência e morte aparentes. Mas este impulso dinâmico social se deve
sempre a novas tendências ideológicas, às tendências individuais ou coletivas
que, pela lei da mesma evolução, tendem a separar-se das tendências gerais, ou
seja, das velhas ideologias conservadoras, arraigadas aos interesses materiais
que se criaram na sociedade.
Eis o motivo pelo qual os homens mais evoluídos moral e espiritualmente,
os que formam parte das novas tendências ideológicas e os que se sentem
afinados com elas, “os homens amantes do progresso”, como diz Kardec, são os
que devem dar impulso a este novo ciclo da evolução humana, porque suas
ideologias são – o diremos – as novas células da sociedade, chamada a fortalecer
seu organismo em decadência e dar-lhe nova vitalidade.
É um alívio dizer que o Espiritismo se encontra a uma altura
muito superior às demais ideologias, porque não somente crê na justiça, como a
faz emanar de um Princípio eterno, justo e onisciente, manancial de todas as
virtudes e de todos os sentimentos que exaltam e enobrecem o homem e, portanto,
é capaz de infundir à sociedade essa nova vitalidade de que carece, de
imprimir-lhe novos rumos em direção a uma nova era de paz, amor e justiça. E ao
dizer o Espiritismo, entendo dizer os espíritas, já que, como diz o Evangelho,
ao que muito foi dado, muito será pedido.
Para chegar à realização mais rápida desta finalidade social,
nós espíritas nos vemos impelidos, por força dos mesmos acontecimentos que se
desenvolvem no mundo neste momento transitório da história, a intensificar
nossa ação moralizadora e transformadora dos valores sociais, ação construtiva
e ao mesmo tempo destrutiva, esta no sentido de neutralizar a falsa educação, a
moral interesseira e discordante, que se dá ao homem desde sua infância e o
ensina a cumprir deveres e a respeitar direitos que não são senão disposições
arbitrárias, que estão em conflito com a justiça e com o direito natural e, por
conseguinte, com os princípios morais do Espiritismo. É uma educação que se
inculca com o propósito de manter esta sociedade de privilégios, fonte de
ódios, de guerras, de roubos e imoralidades.
Uma ação destrutiva, enfim, no sentido de criticar e combater, franca e abertamente, todas as injustiças, crimes e prerrogativas sociais, ensinando a não reconhecer outras riquezas nem outros títulos de superioridade senão aqueles que tenham sido adquiridos com o esforço próprio e sem prejuízo de outrem. Uma ação construtiva no sentido de ensinar a moral espírita em toda sua força, que se sobrepõe a todas as ambições materiais, a todos os egoísmos e orgulhos – que formam o fundamento do privilégio –, o amor, a igualdade e a fraternidade.
Uma ação destrutiva, enfim, no sentido de criticar e combater, franca e abertamente, todas as injustiças, crimes e prerrogativas sociais, ensinando a não reconhecer outras riquezas nem outros títulos de superioridade senão aqueles que tenham sido adquiridos com o esforço próprio e sem prejuízo de outrem. Uma ação construtiva no sentido de ensinar a moral espírita em toda sua força, que se sobrepõe a todas as ambições materiais, a todos os egoísmos e orgulhos – que formam o fundamento do privilégio –, o amor, a igualdade e a fraternidade.
Nós espíritas, que temos penetrado no sentido evolutivo da
vida, tanto individual como social, marchamos cheios de sadio otimismo em
direção a essa nova sociedade que se vislumbra, mas não como simples espectadores,
nem obrigados pela força dos acontecimentos – como muitos supõem – mas como
propulsores desse grande movimento social que se gera nas idéias e se desenvolve
no mundo factual, levando a tocha de nosso ideal a maior altura e tornando-a
mais capaz de iluminar a humanidade e conduzi-la com maior prudência e menos
sacrifício. Não queremos chegar a ela com as mãos sujas de sangue, porque esse
sangue é nosso próprio sangue e os delitos que combatemos são também nossos próprios
delitos. Por outro lado, ainda que em última instância a violência fosse
necessária – dada a resistência do egoísmo contra a justiça e o direito –, ela
seria completamente estéril e de resultados negativos, não estando a
consciência dos povos suficientemente evoluída para afiançar o novo regime
sobre as bases da igualdade econômica e social que, como bem disse Kardec, não
poderia existir sem verdadeira fraternidade.
A revolução se realiza nas idéias e nos sentimentos morais,
sobre uma base espiritual e positiva, porque sem ela não pode haver emancipação
social nem justiça, aperfeiçoamento individual ou coletivo.
Quando os homens se derem exata conta do que são, para que
vêm à Terra e da finalidade que perseguem como espíritos, não como bestas
insaciáveis e egoístas; quando, pelos ensinamentos do mundo espiritual, se
convençam do ínfimo valor das riquezas materiais se estas não servem para
aumentar as riquezas do espírito e satisfazer a todas as necessidades da vida
social, quando, enfim, estas e outras coisas que o Espiritismo ensina
penetrarem nas consciências obscurecidas por interesses mesquinhos da vida
material, então a fraternidade, o reinado da igualdade e da justiça será um
fato, não serão necessárias revoluções sangrentas para impô-las.
Enquanto isso, cabe aos que temos abraçado este ideal, aos
que amam a verdade e a justiça, trabalhar assiduamente para que esta finalidade
social se realize, porque sua realização depende do esforço e também do sacrifício
dos que nela crêem.
[i] Allan Kardec – O Livro dos Espíritos. (*)
(*) Os
textos de O Livro dos Espíritos
inseridos na presente obra foram extraídos da 76ª edição em português, da
editora FEB. (Nota do Tradutor.)
[ii] Com maior propriedade, deveria dizer o
autor, estas são respostas dos espíritos ante as perguntas formuladas por
Kardec. (Nota da Ediciones Cima).
[iii] Para compreender adequadamente as
referências que Porteiro faz com freqüência aos ideais socialistas recomendamos
o estudo do livro O Pensamento Vivo de
Porteiro, do psicólogo e economista Jon Aizpúrua, no qual se aclara o
contexto histórico e social em que Porteiro viveu e escreveu, assim como sua
identificação com uma proposta socialista de natureza democrática, humanista e
espiritualista, com diferença das tendências socialistas de cunho materialista
e ditatorial. (Nota da Ediciones Cima).
[iv] Diríamos mesmo direitos e deveres iníquos,
extremamente injustos.
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