domingo, 7 de julho de 2013

O Espiritismo ante os Problemas Sociais







Artigos Espíritas

Extraído da obra
Manuel S. Porteiro - Conceito Espírita de Sociologia

O Espiritismo ante o Problema Social

  I


As convulsões políticas e sociais do momento histórico em que vivemos nos obrigam a separar nossa atenção dos problemas de índole psicológica para fixá-la nos de índole econômica e social, que também ocupam uma das fases de nossos estudos e exigem ser tratados à luz do Espiritismo.

Vivemos uma hora de inquietação social, de incerteza política, de crises econômicas, em que as nações parecem ter perdido o controle de seus atos, nada se entende ou aparenta não entender-se, em que as ambições de mando e de poder romperam o freio das velhas democracias para tomar, pelo império da revolução, as rédeas do mundo, em que a defesa do atual regime social se mostra de cara lavada empunhando o fuzil da ditadura. Dizemos com a cara descoberta porque, de fato, sempre têm existido, ainda que disfarçadas com a máscara de uma falsa democracia. A esta ditadura dos de cima responde a ditadura dos de baixo e em torno destes dois extremos giram e se chocam as tendências em aparente confusão.

Estas convulsões que se notam em todas as ordens da vida social, no mundo inteiro, não são mais do que os sintomas do novo parto da história: os estertores de uma sociedade que agoniza e os anúncios de uma nova sociedade que nasce.

Ante o que vai e o que vem, acrescente-se que nós espíritas nos inclinamos decididamente pelo último. Somos evolucionistas, amamos a justiça, defendemos a verdade e trabalhamos ansiosos pelo bem, tanto individual como social: desejamos uma sociedade melhor e lutamos por seu pronto advento.

Careceria, portanto, de exato conhecimento do Espiritismo quem acreditasse que este tem por única missão ocupar-se das coisas do espírito, dos problemas da alma, fazendo dele uma ciência puramente experimental para estabelecer a certeza de nossa imortalidade e buscar a felicidade para depois desta vida. Se é este, certamente, seu objeto primordial, porquanto constitui a base sobre a qual repousa toda sua estrutura ideológica, não se circunscreve, nem poderia circunscrever-se somente a isto, sem deixar de cumprir sua função profundamente revolucionária em todas as ordens da vida, tanto individual como social.

O Espiritismo tem objetivos, horizontes mais dilatados: é, aparte de uma ciência experimental e filosófica, uma ideologia social, que persegue uma finalidade superior neste mundo onde, junto aos ideais mais generosos, mas sem base sólida, se encontram as tendências mais conservadoras e egoístas, os ódios mais perversos, as misérias morais, as ambições mesquinhas e repudiáveis.

O Espiritismo não considera seus adeptos desvinculados da sociedade, nem os concebe felizes e satisfeitos contemplando a dor e a miséria dos deserdados frente ao prazer desenfreado dos detentores de posses. Para o Espiritismo o homem é um ser social e, portanto, ensina-o a ser solidário com a sociedade em tudo que tenda ao seu melhoramento, à maior justiça e bem-estar de todos e de cada um.

Ainda que explique a razão de ser de muitos males individuais e sociais, baseando-se na lei de causalidade espírita – o que não significa justificá-los – não considera a sociedade em estado estático, mas dinâmico, ou seja, evoluindo continuamente para uma finalidade superior que se realiza com o tempo e em proporção aos esforços nesse sentido.

A doutrina espírita – que, por ignorância, muitos consideram conservadora e outros, por interesse, aceitam-na como apoio de todos os latrocínios e iniqüidades sociais – é tão profundamente revolucionária e ao mesmo tempo construtiva, que nada fica a seu passo de injusto, mau e imoral, que ela não o destrua e nada destrói que não seja capaz de substituir com edificações melhores, mais sólidas. Deste ponto de vista, encaramos, como espíritas, os problemas sociais.

Temos uma finalidade social que não difere dos ideais mais avançados, senão pelo conceito espiritual, indefinidamente progressivo que temos do ser humano.

Repudiamos o regime de exploração e de desprezíveis privilégios em que vivemos, a moral hipócrita e interesseira que dela se desprende, a justiça unilateral e ajustada às prerrogativas econômicas, o latrocínio dos governantes e a atitude dos governos que, amparados em leis constitucionais injustas e anacrônicas – quando não em forças arbitrárias a estas mesmas leis – crêem-se senhores dos povos, quando só deveriam ser seus servidores e que, sob pretexto de administrar os interesses gerais das nações, asseguram o monopólio e a riqueza desmedida de uns, à custa do trabalho e da miséria de outros; repudiamos também a falsa educação que se ajusta às convenções sociais e às leis que as defendem, e estas mesmas leis que fazem do crime legalizado uma virtude patriótica e da verdadeira virtude, um delito punível que ampara, enfim, o assassinato, o roubo e as imoralidades e, como uma missão, castiga sem piedade delitos menores, que derivam da mesma injustiça e imoralidade que a lei ampara. Não concordamos com a política de rapina internacional que faz com que os países mais fortes se apossem dos mais débeis e exerçam hegemonia sobre eles, nem com as guerras fratricidas, que não têm outra finalidade por parte dos que as fazem que a de assegurar o império capitalista de umas nações sobre outras, de satisfazer ambições econômicas ou, quando não, afiançar o regime de exploração humana, impedindo que outros, mais em concordância com a justiça e o direito natural, abram caminhos.

Enfim, o espírita – pelo menos o que o é de verdade – não pode deixar de repudiar tudo isso e o pior que existe neste mundo, por ignorância ou maldade dos homens. E, ao repudiá-lo, aspira, naturalmente, a um regime de liberdade, de igual economia e de verdadeira fraternidade, onde a justiça não seja um mito, o direito natural não seja preterido pelo direito do mais forte e do mais astuto, onde o bem-estar seja comum, a paz do mundo seja uma verdade, a democracia não seja um ardil, a caridade não seja uma aviltante esmola, nem o amor uma veleidade, nem a solidariedade uma especulação.

Mas, será possível que neste mundo destinado, segundo crença geral, à dor e à expiação, neste inferno de provas, neste presídio de almas condenadas ao suplício, possa realizar-se tal progresso? Nele caberão tantas coisas boas? Não se opõem ao desejo de conquistá-las os ensinamentos do Espiritismo?
Creio que tudo isto é exeqüível pela evolução da sociedade humana, pode chegar a realizar-se e tal realização, em tempo mais ou menos próximo, depende dos esforços que os homens de bons sentimentos e mais capacitados e decididos na obra da transformação social façam para consegui-lo. E que, longe de ser contrário aos ensinamentos do Espiritismo, é a essência mesma de sua doutrina. Mas, ainda quando não fosse realizável, sempre seria uma nobre aspiração, uma função elevada de nossa vida, o tender a eles e ao fazê-lo poderemos estar seguros de não haver confundido nosso caminho.

Para demonstrar que o que vimos sustentando não é uma simples opinião pessoal concebida à margem da doutrina espírita, vou expor, o mais simplesmente possível, alguns conceitos sociológicos extraídos das obras de Allan Kardec, porque o ensinamento nelas exposto não leva o selo de uma só personalidade; é o conteúdo filosófico de muitas opiniões que, ainda que não sejam possíveis, refletem unanimemente a essência da doutrina. Ainda porque, Kardec, o mais humanitário dos mestres espiritistas, que fez dos evangelhos seu estandarte, da caridade a maior virtude e a atitude mais nobre da humanidade, não pode ser suspeito de “anarquista perigoso”.

Tomarei, pois, do mencionado autor, somente o que se relaciona com o problema social, tirado das páginas de seus livros, que se encontra exposto junto a outros ensinamentos de ordem moral.

II


Allan Kardec, respondendo [i] à pergunta: “É lei da natureza a desigualdade das condições sociais?”, diz:[ii]
“Não, é obra do homem e não de Deus.” (Item 806).

– Algum dia essa desigualdade desaparecerá?

“Eternas somente as leis de Deus o são. Não vês que dia a dia a desigualdade se apaga? Desaparecerá quando o egoísmo e o orgulho deixarem de predominar. Restará apenas a desigualdade do merecimento...” (Idem).

– Que se deve pensar dos que abusam da superioridade de suas posições sociais para, em proveito próprio, oprimir os fracos?

“Merecem anátema! Ai deles! Serão, a seu turno, oprimidos...” (Item 807).

– A desigualdade das riquezas não se originará da das faculdades...?
“Sim e não. Da velhacaria e do roubo, que dizes?” (Item 808).

Ante a afirmação: “Mas, a riqueza herdada, essa não é fruto de paixões más.”, responde:

“Que sabes a esse respeito? Busca a fonte de tal riqueza e verás que nem sempre é pura. Sabes, porventura, se não se originou de uma espoliação ou de uma injustiça? Mesmo, porém, sem falar da origem, que pode ser má, acreditas que a cobiça da riqueza, ainda quando bem adquirida, os desejos secretos de possuí-la o mais depressa possível, sejam sentimentos louváveis?...” (Idem).

À pergunta: “Será possível e já terá existido a igualdade absoluta das riquezas?”, diz:

“Não; nem é possível. A isso se opõe a diversidade das faculdades e dos caracteres.” (Item 811).

Entenda-se bem que Kardec se refere aqui à “igualdade absoluta” que temos sublinhado de propósito para que não se confunda com a igualdade relativa ou proporcional, ou melhor, com a igualdade de deveres para produzir a riqueza em proporção às forças e atitudes de cada um e à igualdade de direitos para satisfazer as necessidades e gozar das riquezas na mesma proporção. É o que, em Sociologia, se entende por igualdade econômica e social, as tendências socialistas perseguem, o Espiritismo sustenta em seus princípios e nós espíritas proclamamos como finalidade social e seguimos de perto nossa moral superior e com a crítica sadia, fecunda, da sociedade atual.

A palavra “riqueza” tem aqui um significado também muito relativo, se se analisa à luz meridiana da seguinte sentença de Kardec:

“Propriedade legítima só é a que foi adquirida sem prejuízo de outrem.” (Item 884).

E desta outra não menos luminosa:

“Proibindo-nos que façamos aos outros o que não desejáramos que nos fizessem, a lei de amor e de justiça nos proíbe, ipso facto, a aquisição de bens por quaisquer meios que lhe sejam contrários.” (Idem).
Deste ponto de vista, não há riqueza propriamente bem adquirida e o único que, em tal sentido, pode considerar-se legítimo é o relativo bem-estar que cada um possa conquistar com o próprio esforço e sem prejuízo dos demais, o que de nenhum modo constitui uma riqueza.

– Por não ser possível a igualdade (absoluta) das riquezas, o mesmo se dará com o bem-estar?
“Não, mas o bem-estar é relativo e todos poderiam dele gozar, se se entendessem convenientemente...” (Item 812).

E logo acrescenta:
“Os homens se entenderão quando praticarem a lei de justiça.” (Idem).

Vejamos agora como Kardec – por cujo intermédio se expressam seus colaboradores espirituais – entende esse relativo bem-estar do homem, considerado como membro da sociedade:

“... porque o verdadeiro bem-estar consiste em cada um empregar o seu tempo como lhe apraza e não na execução de trabalhos pelos quais nenhum gosto sente. Como cada um tem aptidões diferentes, nenhum trabalho útil ficaria por fazer. Em tudo existe o equilíbrio; o homem é quem o perturba.” (Item 812).
Neste último parágrafo está exposto com toda clareza e perfeitamente de acordo com as mais avançadas tendências socialistas,[iii] o conceito ideológico da distribuição do trabalho, segundo as aptidões de cada um e sem imposição de tempo, conceito que temos exposto mais de uma vez na imprensa espiritualista e que constitui um dos princípios fundamentais da justiça social, agregado ao trabalho “útil”, material ou intelectual, imposto pela necessidade de viver e pela mesma lei de associação a todos os homens por igual, segundo suas forças e suas aptidões; conceito que emana da infinidade de passagens das obras citadas, em tudo concordante com a essência da Doutrina.

Agreguemos, todavia, ao exposto, algumas idéias complementares que se referem à justiça social e ao direito natural:

“A justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais.” (Idem 875).

“Está de tal modo em a natureza, que vos revoltais à simples idéia de uma injustiça.” (873).

“Os direitos naturais são os mesmos para todos os homens, desde os de condição mais humilde até os de posição mais elevada.” (Item 878).

Entenda-se bem que Kardec se refere aos direitos naturais, cuja igualdade reconhece, e não aos concedidos pela lei civil, segundo suas próprias palavras,
“... (o homem) não raro há criado direitos e deveres imaginários,[iv] que a lei natural condena e que os povos riscam de seus códigos à medida que progridem.” (Item 795).

Em outra passagem, diz:

“Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente: embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na justiça deve prover à vida do fraco, sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa-vontade de alguns.” (Item 888).

E completa o pensamento com este outro não menos revolucionário na ordem das idéias sociológicas. Referindo-se à civilização, diz que unicamente pode existir povo mais civilizado
“... onde as leis nenhum privilégio consagrem e sejam as mesmas, assim para o último, como para o primeiro; onde com menos parcialidade se exerça a justiça; onde o fraco encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam mormente respeitadas; onde exista menor número de desgraçados; enfim, onde todo homem de boa-vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário.” (Item 793).

Em outra passagem, diz:

“Quanto mais se aproximam da verdadeira justiça, tanto menos instáveis são as leis humanas, isto é, tanto mais estáveis se vão tornando, conforme vão sendo feitas para todos e se identificam com a lei natural.” (795).

“Infelizmente, essas leis (refere-se às que ainda existem) mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a fonte.” (796).

Para terminar esta exposição de conceitos sociológicos extraídos das obras fundamentais do Espiritismo e não cansar mais a atenção do leitor, me contentarei em citar os parágrafos que servem de corolário ao exposto e cujos conceitos são, para o caso que nos ocupa, de valor inestimável:

“...suponhamos uma sociedade de homens bastante desinteressados, bastante bons e benévolos para viverem fraternalmente, sem haver entre eles nem privilégios, nem direitos excepcionais, pois de outro modo não haveria fraternidade. Tratar a alguém de irmão é tratá-lo de igual para igual; é querer quem assim o trate, para ele, o que para si próprio quereria. Num povo de irmãos, a igualdade será a conseqüência de seus sentimentos, da maneira de procederem, e se estabelecerá pela força mesma das coisas. Qual, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que faz queira o homem ter em toda parte a primazia e o domínio, que vive de privilégios e exceções...” (Obras Póstumas – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”).

“Será possível a destruição do orgulho e do egoísmo? Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do contrário, forçoso seria determinar um ponto de parada ao progresso da Humanidade...” (Idem).
“... A aspiração do homem por uma melhor ordem de coisas é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos que são progressistas cabe acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização dos meios mais eficientes.” (Idem).




III


Como se vê, o Espiritismo não é uma ideologia conservadora, adaptável aos interesses econômicos mesquinhos que servem de fundamento ao atual regime social.

Nas citações que acabamos de fazer acham-se expressos, com admirável simplicidade, os conceitos da nova Sociologia que deverá servir de base à sociedade do porvir, para a qual tendem todos os homens de ideais sadios, amantes da verdade e da justiça.

Eis aqui a exposição sintética destes princípios emanados da doutrina espiritista:

reconhecimento do direito natural;
reconhecimento da igualdade social;
reconhecimento da igualdade econômica, proporcional às necessidades e aptidões de cada um;
reconhecimento da igualdade de deveres na produção útil, seja no trabalho material ou intelectual;
distribuição do trabalho social em concordância com as aptidões e gostos de cada um e liberdade na escolha do trabalho, bem como na duração do tempo;
supressão de todo castigo legal e implantação de novos métodos corretivos, em concordância com o conceito espiritual da vida;
educação moral fundada na justiça e no direito natural igual para todos;
respeito mútuo, sem distinção de classe social, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não como meros decretos institucionais, mas como direitos sociais, derivados da justiça econômica e social e da nova moral espírita.

Se a tudo isto juntamos a igualdade de direitos da mulher em relação ao homem: a liberdade de consciência e de idéias; a proteção da sociedade para o livre desenvolvimento das faculdades e aptidões dos indivíduos de ambos os sexos; a tolerância, sem prejuízo à educação e ao exercício das atividades; a caridade, no sentido de amor, de piedade e de sacrifício; a propensão por parte das forças dirigentes da sociedade, para que o trabalho seja cada vez mais agradável, menos forçado, mais intelectual e, acima de tudo, a certeza de nossa imortalidade, de nosso progresso indefinido, que emana da doutrina espiritista e que estão expressos em suas obras fundamentais; vemos que o Espiritismo, longe de ser uma tendência conservadora, é a mais revolucionária, a mais humana e a mais espiritual de todas quantas existem.

Ante esta perspectiva grandiosa que o Espiritismo nos oferece para a sociedade do futuro, e que não é, como se costuma dizer, uma concepção utópica, “produto de cérebro anarquizado”, como poderíamos nós espíritas permanecer indiferentes diante dos crimes sociais, da exploração de uma classe dominante, que garante seu poderio e o monopólio da riqueza social na razão da força, sobre a ignorância dos povos e o falso ensinamento de uma moral interesseira? Como poderíamos concordar com esta ordem social estabelecida sobre a desordem dirigida pelo império da força? Como poderíamos contemplar a imoralidade, o vício, a injustiça, a exploração e o roubo sociais – que se querem fazer passar por coisas muito justas, boas, morais – sem manifestar nosso repúdio? Como poderíamos conviver com a hipocrisia e a mentira, se os princípios que sustentamos a elas se opõem? Como, enfim, poderíamos nos conformar com a situação do regime atual criado sobre privilégios iníquos, se o Espiritismo nos fala de uma sociedade melhor, de paz, de amor, de fraternidade e de justiça, e da possibilidade de realizá-la? Quem há de realizá-la, admitida sua possibilidade, se não os homens que nela crêem, por seu esforço contínuo, com a prédica perseverante, com o propósito declarado à paz do mundo, com a ação constante no impulso moralizador nessa direção e pelos meios mais eficazes e convincentes?

Para o espírita, a sociedade humana é um dinamismo espiritual que se move por impulsos de idéias e sentimentos no sentido progressivo; mas como o progresso não se efetua em linha reta, senão como dizem certos filósofos, em forma de espiral, tem seus aparentes decessos, que correspondem ao final de cada civilização, caracterizados pela crise geral em todas as ordens da vida, cuja civilização ao final da curvatura de seu ciclo evolutivo, com o impulso das forças que a determina, dá nascimento a outras. E assim sucessivamente, de ciclo em ciclo, a humanidade vai-se elevando para formas sociais mais perfeitas, passando sempre pelas mesmas fases de nascimento, apogeu, decadência e morte aparentes. Mas este impulso dinâmico social se deve sempre a novas tendências ideológicas, às tendências individuais ou coletivas que, pela lei da mesma evolução, tendem a separar-se das tendências gerais, ou seja, das velhas ideologias conservadoras, arraigadas aos interesses materiais que se criaram na sociedade.

Eis o motivo pelo qual os homens mais evoluídos moral e espiritualmente, os que formam parte das novas tendências ideológicas e os que se sentem afinados com elas, “os homens amantes do progresso”, como diz Kardec, são os que devem dar impulso a este novo ciclo da evolução humana, porque suas ideologias são – o diremos – as novas células da sociedade, chamada a fortalecer seu organismo em decadência e dar-lhe nova vitalidade.

É um alívio dizer que o Espiritismo se encontra a uma altura muito superior às demais ideologias, porque não somente crê na justiça, como a faz emanar de um Princípio eterno, justo e onisciente, manancial de todas as virtudes e de todos os sentimentos que exaltam e enobrecem o homem e, portanto, é capaz de infundir à sociedade essa nova vitalidade de que carece, de imprimir-lhe novos rumos em direção a uma nova era de paz, amor e justiça. E ao dizer o Espiritismo, entendo dizer os espíritas, já que, como diz o Evangelho, ao que muito foi dado, muito será pedido.

Para chegar à realização mais rápida desta finalidade social, nós espíritas nos vemos impelidos, por força dos mesmos acontecimentos que se desenvolvem no mundo neste momento transitório da história, a intensificar nossa ação moralizadora e transformadora dos valores sociais, ação construtiva e ao mesmo tempo destrutiva, esta no sentido de neutralizar a falsa educação, a moral interesseira e discordante, que se dá ao homem desde sua infância e o ensina a cumprir deveres e a respeitar direitos que não são senão disposições arbitrárias, que estão em conflito com a justiça e com o direito natural e, por conseguinte, com os princípios morais do Espiritismo. É uma educação que se inculca com o propósito de manter esta sociedade de privilégios, fonte de ódios, de guerras, de roubos e imoralidades.

Uma ação destrutiva, enfim, no sentido de criticar e combater, franca e abertamente, todas as injustiças, crimes e prerrogativas sociais, ensinando a não reconhecer outras riquezas nem outros títulos de superioridade senão aqueles que tenham sido adquiridos com o esforço próprio e sem prejuízo de outrem. Uma ação construtiva no sentido de ensinar a moral espírita em toda sua força, que se sobrepõe a todas as ambições materiais, a todos os egoísmos e orgulhos – que formam o fundamento do privilégio –, o amor, a igualdade e a fraternidade.

Nós espíritas, que temos penetrado no sentido evolutivo da vida, tanto individual como social, marchamos cheios de sadio otimismo em direção a essa nova sociedade que se vislumbra, mas não como simples espectadores, nem obrigados pela força dos acontecimentos – como muitos supõem – mas como propulsores desse grande movimento social que se gera nas idéias e se desenvolve no mundo factual, levando a tocha de nosso ideal a maior altura e tornando-a mais capaz de iluminar a humanidade e conduzi-la com maior prudência e menos sacrifício. Não queremos chegar a ela com as mãos sujas de sangue, porque esse sangue é nosso próprio sangue e os delitos que combatemos são também nossos próprios delitos. Por outro lado, ainda que em última instância a violência fosse necessária – dada a resistência do egoísmo contra a justiça e o direito –, ela seria completamente estéril e de resultados negativos, não estando a consciência dos povos suficientemente evoluída para afiançar o novo regime sobre as bases da igualdade econômica e social que, como bem disse Kardec, não poderia existir sem verdadeira fraternidade.
A revolução se realiza nas idéias e nos sentimentos morais, sobre uma base espiritual e positiva, porque sem ela não pode haver emancipação social nem justiça, aperfeiçoamento individual ou coletivo.

Quando os homens se derem exata conta do que são, para que vêm à Terra e da finalidade que perseguem como espíritos, não como bestas insaciáveis e egoístas; quando, pelos ensinamentos do mundo espiritual, se convençam do ínfimo valor das riquezas materiais se estas não servem para aumentar as riquezas do espírito e satisfazer a todas as necessidades da vida social, quando, enfim, estas e outras coisas que o Espiritismo ensina penetrarem nas consciências obscurecidas por interesses mesquinhos da vida material, então a fraternidade, o reinado da igualdade e da justiça será um fato, não serão necessárias revoluções sangrentas para impô-las.

Enquanto isso, cabe aos que temos abraçado este ideal, aos que amam a verdade e a justiça, trabalhar assiduamente para que esta finalidade social se realize, porque sua realização depende do esforço e também do sacrifício dos que nela crêem.





[i]     Allan Kardec – O Livro dos Espíritos. (*)
      (*) Os textos de O Livro dos Espíritos inseridos na presente obra foram extraídos da 76ª edição em português, da editora FEB. (Nota do Tradutor.)
[ii]    Com maior propriedade, deveria dizer o autor, estas são respostas dos espíritos ante as perguntas formuladas por Kardec. (Nota da Ediciones Cima).
[iii]    Para compreender adequadamente as referências que Porteiro faz com freqüência aos ideais socialistas recomendamos o estudo do livro O Pensamento Vivo de Porteiro, do psicólogo e economista Jon Aizpúrua, no qual se aclara o contexto histórico e social em que Porteiro viveu e escreveu, assim como sua identificação com uma proposta socialista de natureza democrática, humanista e espiritualista, com diferença das tendências socialistas de cunho materialista e ditatorial. (Nota da Ediciones Cima).
[iv]    Diríamos mesmo direitos e deveres iníquos, extremamente injustos.

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