terça-feira, 4 de agosto de 2020

Tradição da Casa Grande ou Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo. Artigo de Gabriel de Aguiar Tajra, advogado



A capacidade de apropriação das instituições públicas pela elite política era imensa. Impossibilitou a conquista do direito político às mulheres, enquanto aos marginalizados o direito ao voto era manuseado pelo coronelismo. Na máquina estatal, o patrimonialismo sobrepunha o interesse privado ao público e expunha o patronato político nacional.

Do site Justificando:


Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo

Gabriel de Aguiar Tajra

Liberalismo à brasileira: do conservadorismo ao militarismo

Arte: Caroline Oliveira
Os limites do liberalismo político, no Brasil, estão fundados nos conservadorismos das raízes históricas nacionais, gerando este excêntrico liberalismo à brasileira
O discurso político liberal sempre foi oratória capaz de agregar grande adesão popular. À época da independência do Brasil Colônia, a elite política nacional – formada por latifundiários donos de escravos, comerciantes, membros da igreja e profissionais liberais –, influenciada pelos ideais europeus, fora responsável pela defesa da liberdade, igualdade, soberania política do povo e outros aspectos que buscavam a garantia da luta contra o sistema colonial.
Não obstante o discurso político de origem elitizada, a retórica foi aceita pela classe ascendente, que buscava a efetivação de seus direitos civis e políticos, e mesmo pela camada popular marginalizada, vez que escravos brasileiros creditavam na falsa garantia da liberdade. Conquistada a independência, rapidamente a oratória liberal foi cedida aos conservadorismos locais. A aristocracia responsável pela reestruturação do sistema político – em sua maioria brancos, de carreira política, donos de terras–, perpetuou a escravidão, restringiu os direitos políticos aos homens, e com exigência de “renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego” para votar, demonstrando o caráter paliativo do sistema eleitoral instaurado (BRASIL, CPIB, 1824, art. 94, I).
A institucionalização dos interesses da elite à maquina estatal fora tamanha ao ponto de ser superada apenas 67 anos depois, no contexto da própria queda da monarquia – em concomitância às conquistas da laicidade do Estado, mediante a separação formal com a Igreja, superação da escravização do povo negro, bem como da limitação censitária ao voto –, quando um militar amigo do Imperador dirigiu-se ao centro da cidade, junto de sua tropa, para proclamar a República. Desta vez, o discurso capaz de agregar aceitação da população urbana crescente, dos comerciantes e profissionais liberais, foi baseado no progresso econômico capitalista, com a valorização da livre concorrência e trocas comerciais, correspondente aos interesses de exportação do café e desenvolvimento da indústria no país.
Entretanto, a potencialidade do discurso liberal de suposta ruptura às continuidades da organização política e social brasileira, enraizadas desde a origem, era, mais uma vez, um discurso teórico sem realidade prática. Em verdade, “isso de república é coisa de estudantes e liberais”, como bem observou autoridade da aristocracia paulista poucos anos antes da proclamação da República[1]. A capacidade de apropriação das instituições públicas pela elite política era imensa. Impossibilitou a conquista do direito político às mulheres, enquanto aos marginalizados o direito ao voto era manuseado pelo coronelismo. Na máquina estatal, o patrimonialismo sobrepunha o interesse privado ao público e expunha o patronato político nacional.
No âmbito social, as marcas de um longo período de escravidão, associadas ao ruralismo brasileiro e suas origens latifundiárias conservavam as raízes do Brasil, em concomitância a uma urbanização desregulada, dependente do processo de industrialização nacional, sem qualquer regulamentação trabalhista. Raízes estas que não seriam superadas senão “pela completa libertação dos trabalhadores agrícolas” e por um Estado “capaz de esmagar os privilégios dos atuais dominadores e sustentar as reivindicações revolucionárias”[2], como revindicado por Luiz Carlos Prestes em carta datada de maio de 1930. Porém, o manifesto político não passara de objetivos utópicos, às vésperas da tomada do poder por Getúlio Vargas.


Em 1889, um marechal cansado. Em 1930, o representante da “Aliança Liberal”, derrotado nas urnas, mas capaz de representar os interesses conflitantes do proletariado rural, urbano e também da classe econômica hegemônica insatisfeita com a política predominantemente voltada ao café e ao leite, além de conseguir casar, harmoniosamente, o liberalismo ao militarismo. De um lado a garantia dos direitos trabalhistas básicos ao âmbito urbano, bem como o direito ao voto secreto, tanto para homens, quanto para mulheres, resguardados por uma justiça eleitoral autônoma; por outro lado, um Estado orientador-intervencionista, capaz de propiciar uma política econômica destinada aos interesses industriais. Ora, não apenas o “pai dos pobres”, mas também “mãe dos ricos”.
A fachada liberal adotada desapareceria sob o pretexto emergencial de preservação da ordem, ante a suposta “ameaça vermelha”, arquitetada pelo Partido Comunista Brasileiro, conforme documento exposto pelo governo – e notadamente forjado por ele próprio, como comprovado anos depois –, denominado Plano Cohen, justificando a instauração de novo golpe militar, em novembro de 1937.  “Os golpistas já foram antigolpistas e vice-versa, e os antigolpistas não são mais que ultragolpistas”[3]. A máxima, atemporal, bem exemplifica as idas e vindas do autoritarismo brasileiro, assim como o constante flerte à falsa ideia de ordem, mediante imposição militar.
Não bastassem as incoerências do Liberalismo em seu espectro político – que durante anos rejeitou os direitos políticos às mulheres e a liberdade ao povo negro –, a sua relação com o militarismo é, igualmente, essencialmente paradoxal. Sem base nas teorias clássicas de John Stuart Mill e Jeremy Bentham, é evidente que não é um fardo teórico carregado pelos liberais modernos ou contemporâneos, como John Ralws e Jürgen Habermas. A retórica liberal, quando em prática no Brasil, mais remonta o cenário de 1984, de Orwell: ou a ironia do duplipensar de Winston, capaz de aceitar, simultaneamente, duas ideias contraditórias, ou a dominação exercida pelo Big Brother (Grande Irmão), constantemente prolongando a realidade presente pelo esquecimento do passado. Ou mesmo a conjugação de ambos.
Pelo discurso político, quer-se sempre “partir para o liberalismo” – como esclareceu o futuro presidente eleito, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, do Paraná –, encontrando respaldo nos interesses econômicos hegemônicos, mas como prática, quer-se sempre retomar suas raízes de regalias e proveitos, perpetuando um sistema político pautado pela exclusão social e falsa percepção das liberdades individuais. “O discurso é o meio por excelência da ação política”[4], e o discurso liberal, no Brasil, sempre foi capaz de agregar grande apelo popular. Entretanto, neste lapso entre o discurso e prática está todo o conservadorismo brasileiro.
A retórica liberal, adotada no cenário eleitoral, sequer é capaz de reconhecer a autonomia particular da mulher acerca do aborto, ou mesmo assegurar a igualdade e os direitos básicos da personalidade ao grupo LGBT, negando a própria essência da autopreservação liberal. Contudo, impulsiona um plano de privatizações de empresas, com a respectiva flexibilização dos direitos trabalhistas, além de buscar facilitar o comércio internacional, mediante a “redução de muitas alíquotas de importação e das barreiras não-tarifárias”[5].
Novamente, não bastassem as contradições do liberalismo em seu espectro político, sua relação com o militarismo é essencialmente paradoxal. Não faltaram militares que ameaçassem a ordem institucional, exaltassem a tortura contra a oposição política ou mesmo depreciassem o sistema democrático-representativo. No entanto, a valorização da imagem militar é fundamental como programa de governo atual, “afinal, elas são o último obstáculo para o socialismo”[6].
“O fato é que o presente está repleto de passado e vice versa”[7], e o atual contexto político não apenas expõe as potencialidades do discurso liberal, mas o projeto sistemático de limitação de sua ordem prática aos interesses hegemônicos. Os limites do liberalismo político, no Brasil, estão fundados nos conservadorismos das raízes históricas nacionais, gerando este excêntrico liberalismo à brasileira.

Gabriel de Aguiar Tajra é estudante do 5º semestre de Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), com atuação acadêmica em direito eleitoral, filosofia do direito e presença ativa em organizações estudantis e da juventude municipal.

________________
[1] SANTOS, José Maria dos. Os republicanos paulistas e a abolição. São Paulo: Martins, 1942. P. 137.
[2] SILVA, Hélio. 1930 – A revolução traída. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. P. 230. 
[3] COUTINHO, Lorival. O general Goés depõe. Rio de Janeiro: Ed. Coelho Branco, 1955. P. 282.
[4] MIGUEL, Luis Felipe. Kitsch e o discurso político na mídia. In: BIROLI, Flávia; Miguel, Luis Felipe. Notícias -em disputa: mídia, democracia e formação de preferências no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017. P. 147-169. 
[5] Plano de governo do futuro presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, disponível em: https://www.bolsonaro.com.br/
[6] Plano de governo do futuro presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, disponível em: https://www.bolsonaro.com.br/
[7] BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Um país de muitas faces. In: Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 10-18.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.