domingo, 17 de janeiro de 2016

Heráclito de Éfeso e a Uni-diversidade dos contrários...






texto de 

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

 I - O Homem

 Da vida do filósofo pré-socrático Heráclito, originário da ilha grega de Éfeso, e que viveu na virada do século VI e V antes de Cristo, temos uma ideia tão fragmentária quanto do conjunto de suas ideias - o que sabemos advém de trechos e fragmentos sobrevividos por meio de pedaços, até numerosos, de seu livro Sobre a Natureza, e/ou de citações sobre sua pessoa feita por outros.... Situação não muito diferente de outros luminares da antiguidade - e, ironicamente, de certos autores bem mais recentes, na atual era da modernidade líquida e fast-food, onde se conhece mais de alguns autores por "se ouvir dizer ou falar, ou que se viu na tv" do que por se os ler e conhecer, realmente....

  Do pouco que sabemos, a visão do homem Heráclito parece ser uma mistura aproximada de sábio "hippie" e de poeta com o pé no chão: parece ter sido um homem um tanto fechado, embora discutisse sobre física e filosofia com seus concidadãos de um modo que os encantavam. Isso o levou a ser admirado por alguns, mas o conhecimento que tinha das multidões o deixava desgostoso com o grau de acomodação ou falta de senso crítico e de responsabilidade de grande parte das pessoas, que se recusavam, de fato, a pensar em termos de coletividade. Por isso, parece ter se recusado a participar da vida pública. Um fragmento antigo afirma que, embora "solicitado pelos concidadãos a elaborar as leis da cidade, recusou-se, porque elas já haviam caído no arbítrio por sua má constituição" (cit. in Reale & Antiseri, p. 35).

 Diante dos numerosos fragmentos que nos chegaram de sua obra Sobre a Natureza, parece que o estilo sapiencial de Heráclito era constituído de citação de aforismas, afirmações curtas e parábolas, que exerceriam um grande impacto séculos depois em filósofos tão diferentes quanto Hegel e Nietzsche, entre outros. Em vários pontos o conteúdo e estilo lembram Pitágoras, Buda, Lao-Tsé e Jesus e não se pode desconsiderar a influência das religiões de mistérios gregas, em especial o orfismo, no seu pensamento e estilo literário.

 II - As ideias

 O contexto cultural em que viveu Heráclito era comum aos demais filósofos pré-socráticos. Em sua maioria, eles haviam percebido um dinamismo universal onde tudo se transforma em seu contrário, em um processo contínuo, cíclico: tudo surge (ou nasce), cresce, se transforma, envelhece e morre - incluindo o próprio mundo e o universo, bem como pessoas e sociedades. A transformação de tudo, portanto, salta aos olhos, do mesmo modo como salta aos olhos que é esta transformação que permite a existência das coisas.  Estrelas, hoje sabemos, explodem e neste processo liberam os átomos diversos que constituem novos mundos. Estes, por sua vez, se transformam ambientalmente ao ponto em que, ao menos em alguns deles, se permite a eclosão da vida a partir de seus compostos e relacionamento sistêmico-ambiental que, após usados e reciclados pelos organismos, voltam ao mundo para que novos organismos surjam, em uma linha evolutiva continua, etc.

Em última instância, há uma espécie de razão de ser do dinamismo universal, constituindo-se em um "princípio" do mundo ou da realidade. Mas, embora percebido, os pré-socráticos anteriores o contemporâneos a Heráclito não trabalharam ou o tematizaram de modo mais visível. Isto foi feito, de modo bastante impactante, por Heráclito.


 De forma figurada, o próprio Heráclito deixou estas ideias em foco: "Tudo se move", "tudo flui", "tudo se transforma", gerações se sucedem e nada jamais permanece imóvel, fixo. A contínua transformação, o devir, o crescimento, a reciclagem, as alternâncias e a unidade dos opostos, enfim, fazem da contínua mudança um contínuo princípio (aliás, um dos poucos realmente universais e constantes), embora, dentro das limitações perceptuais e nos intervalos de tempo acessíveis ao ser humano, as transformações possam parecer sutis ou leves. Por essas e outras é que Heráclito é considerado o Pai da Dialética - embora sua visão seja ainda mais sutil do que a conceitualização ordinária do termo dialética parece conter.


 Tudo isto fica patente em um dos mais conhecidos aforismas de Heráclito (adaptado do fragmento número 40 de Sobre a Natureza):

  "Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes algo mortal do mesmo modo, pois, por conta da impetuosidade e velocidade da mudança, algo se dispersa e se reúne, vem e vai. Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, pois tanto o rio quanto nós mesmos já não seremos mais igualmente os mesmos."

 Mas o pensamento de Heráclito não se resume a uma simples "contatação da mudança" universal. Ficar nesta interpretação é mutilar a amplidão que seu pensamento parece abarcar. O devir é um aspecto que pode nos levar a uma tolerância e profundidade de pensamento e ação, já que fica claro que mesmo um situação de tirania ou opressão com o tempo acabará por incentivar o surgimento de seu contrário e caberá a nós escolher se queremos trabalhar para ajudar ou prejudicar esta transformação.

  Do mesmo modo como o ponto mais escuro da noite é indício de que as trevas atingiram seu ápice e deverão se afastar para que ressurja a luz, nada é o que aparenta ser: o contrário da morte não é a vida, mas o nascer... A vida permanece para além da dualidade de opostos (que, aliás, são necessários, neste plano de existência, para a manifestação da vida). Por isso, o paradoxo da necessidade dos contrários, que o taoismo oriental tão bem representa nas figuras arquetípicas opostas, mas complementares, do Yin e do Yang.

 O fluxo natural das coisas apresenta estes opostos, mas o homem, em sua ação, pode transformar algo natural em violência destrutiva, antinatural. O conflito aparente de opostos na natureza promove a paz: a paz do equilíbrio ecológico, a paz do plantar e do colher, a paz do fluir das estações...  Por querer artificializar, por seu intelecto, o fluxo da natureza, o homem embevecido com seus espelhos e imediatismos, traz o desequilíbrio e hoje temos a destruição ambiental, cidades com pessoas infelizes e isoladas e uma falsa busca de permanência que leva à neurose e à psicose...

 Como apontam os autores Giovanni Reale e Dario Antiseri (op. cit., pp. 36-37),

"O perene correr de todas as coisas e o devir universal revelam-se como harmonia de contrários, ou seja, como perene pacificação de beligerantes, uma permanente conciliação de contendentes (e vice-versa)".

Ou, como o afirma o próprio Heráclito:

  "Aquilo que é oposição se concilia, das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por meio de contrastas (...) Eles (os ignorantes) não compreendem que aquilo que é diferente concorda consigo mesmo: é a harmonia dos contrários..."


  É esta harmonia que une os opostos, esta Unidade na diversidade para além do conflito, que expressa  a presença da divindade - e da Alma - no mundo. O mundo da dualidade se faz necessário para o desenvolvimento do devir e, portanto, do Ser. Para além da realidade de opostos, existe uma transcendência em que dia-e noite, guerra e paz deixam de existir por serem unificadas em uma síntese superior que, por falta de familiaridade, nos escapa (ainda). 

  A razão de ser da dualidade, em Heráclito, aponta para o Ser da Alma. Apesar de sua filosofia partir, como a da maioria dos pré-socráticos, de uma busca de entendimento da Physis, ou seja, do mundo natural, ele já intuia a existência de uma realidade transpessoal e além da física que inclui o unvierso espiritual. É de sua lavra uma das sentenças mais diretas e belas sobre a profundidade da Alma humana:

"Nunca poderás encontrar os limites  da Alma,por mais que percorras os seus caminhos, tão profundo é o seu logos". 

  De William James a Joseph Banks Rhine, passando por Carl Gustav Jung, a própria Psicologia Moderna não poderia dizer algo melhor...

  Portanto, o próprio conhecimento humano nada mais é que a padronização de percepções que podem ser mais ou menos úteis se nos permitem interagir com a natureza, mas nunca é um conhecimento perfeito, fixo e imutável. A própria percepção humana da natureza e da divindade muda com o  tempo, segue o mesmo devir: muda-se o modo de ver as coisas, muda-se a maneira que temos de perceber as coisas do homem e de Deus...

Bibliografia:

Pré-Socráticos. Coleção os Pensadores. Editora Abril, 1978.

História da Filosofia, volume I. Giovanni Reale e Dario Antiseri, Editora Paulus, 1990.



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