quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Em Campanha Ecumênica, Igrejas buscam conscientizar as pessoas e criticamo o governo e negacionismo de Bolsonaro na pandemia

 

CNBB e Conic lançaram hoje a campanha da fraternidade 2021, com críticas de diversos representantes da Igreja católica e cristãs

Secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella, critica negacionismo contra a Covid-19, em abertura da Campanha da Fraternidade - Foto: Reprodução

Jornal GGN – A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) lançaram, nesta Quarta-feira de Cinzas, 17, a campanha da fraternidade 2021, recheada de críticas aos negacionismo do combate à Covid-19, à vacina e à negação da ciência.

Com críticas indiretas ao governo de Jair Bolsonaro, representantes das instituições religiosas e vídeos de divulgação falaram em “mundo dividido pelo ódio e polarizado por mentiras”, sobre a “violência banalizada” e “lideranças políticas que não se entendem”.

O vídeo da campanha, lançado nesta quarta, traz em poucos minutos as críticas de forma sutil. Em uma atuação, uma senhora aparece afirmando que em 2020, ano de pandemia, “as lideranças políticas não se entendiam, houve muita briga, muita discórdia, muita morte”, enquanto imagens de protestos nas ruas eram transmitidas.

“Foi muito difícil, pois as lideranças políticas, com as brigas, eles deixaram de se preocupar com o país. Aí veio o desemprego, onde as pessoas pobres ficaram mais pobres. As ricas enriqueceram mais, sabe? (…) Os povos indígenas, que foram nossos ancestrais, foram perseguidos, expulsos de suas terras e até mortos. (…) E agora, meus netos, vamos dar as mãos, para vencer esse mal e fazer um país melhor”, continuou a personagem.

“Em um mundo dividido pelo ódio e polarizado por mentiras. Um mundo onde a violência de todas as formas foi banalizada e muita gente não se choca e nem se espanta. Onde as pessoas e grupos constroem muros e bolhas, ao contrário de levantar pontes que aproximam”, trouxe a mensagem introdutória.

Na sequência, por volta das 11h, teve início a abertura oficial da Campanha de Fraternidade. Nela, diversas lideranças da Igreja Católica e Cristã aparecem com  críticas ao enfrentamento da pandemia feito pelo atual governo Bolsonaro. “Saúdo a memória dos mais de 235 mil irmãos e irmãs que o coronavírus levou do nosso convívio”, iniciou o secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella.

“É verdade, não podemos negar, que o vírus tão letal em si mesmo encontrou aliados na indiferença, no negacionismo, no obscurantismo, no desprezo pela vida. Sejamos, portanto, aliados na responsabilidade, na lucidez e na fraternidade. Reforçamos o coro dos lúcidos a clamar, cada vez mais, pela vida”, completou o representante.

Segundo Portella, “é triste ver que nosso país vem trazendo a marca das radicalizações” e defendeu que o mundo não pode ser organizado a partir “da destruição, nem muito menos da morte”. “A fé nos ensina de onde vem a divisão, ela nos mostra quem é o divisor”, seguiu, em clara referência ao presidente da República.

“Diante da pandemia do coronavírus, o mundo busca vacinas. Diante dos impasses da vida, onde as radicalizações e polarizações se manifestam, vacinámo-nos com o diálogo”, continuou, de forma explícita.

Também participante da abertura, o presidente do Conic, Pr. Inácio Lemke, falou que muitas mortes da Covid-19 foram vítimas da “negligência”.

“[Devemos ser] solidários de forma especial com os que choram as vítimas do coronavírus e muitas vitimadas por negligência e sufocadas por falta de insumos e é bem aqui que somos desafiados como igrejas, unidas no Conic, para desejarmos a paz”, afirmou.

De forma protocolar, como todos os anos, o Papa Francisco também deixou a sua mensagem aos católicos brasileiros pela Quarta-Feira de Cinzas. Sem criticar diretamente Bolsonaro, falou que para superar o “narcisismo” é preciso diálogo.

“De fato, quando nos dispomos ao diálogo, estabelecemos um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro”, afirmou.

As mensagens na transmissão do evento ao vivo ocorrem, ainda, após a divulgação do texto-base da ação, na semana passada, que criticou diretamente os “discursos negacionistas sobre a realidade e fatalidade da Covid-19”, “a negação da ciência” e a “cultura de violência contra as mulheres, as pessoas negras, os indígenas, as pessoas LGBTQI+”.
Polêmicas da campanha

Sendo recebido com críticas pelo setor mais conservador da Igreja Católica, nem a CNBB, nem a Conic recuaram da mensagem clara. Em uma sequência de artigos divulgados em sua página, bispos e arcebispos da CNBB questionaram o tom de polêmica à campanha.

“Creio que nenhuma das Campanhas da Fraternidade teve 100% da aprovação da sociedade, pois os temas refletidos são para que nos posicionemos ou a favor de Cristo e de seu Reino ou contra”, posicionou-se o Bispo de Registro, Dom Manoel Ferreira dos Santos Junior.

“No texto base da Campanha da Fraternidade, são citados diversos grupos de pessoas marginalizadas em nossa sociedade. Neste mesmo texto, são colocadas estatísticas de violência contra estas minorias. A única coisa que o Conselho das Igrejas Cristãs (CONIC) pede é o diálogo, o amor e a vida para os que são diferentes”, continuou.

Sobre o trecho tornado polêmico por alguns representantes católicos, o Arcebispo de Palmas, Dom Pedro Brito Guimarães, escreveu que “às vezes, tenho a impressão de que eles querem palanques e mídias, já que não possuem altares”. “Tenho pena deste tipo de pessoa. Soube que os textos básicos desta polêmica são os números 67 e 68. Você sabia que o Texto Base da Campanha da Fraternidade é escrito, à luz do método ver, julgar e agir? E que estes números polemizados fazem parte do ver? E são citações de documentos que dizem que são estas pessoas as mais atingidas pelos sistemas de violência?”, questionou.

“Existem alguns grupos, ministros ordenados, pessoas que não querem aceitar a linha desta Campanha da Fraternidade Ecumênica. Mas é preciso ler os textos, se inteirar da realidade em que vivemos e buscar soluções na unidade com Cristo Jesus, porque Ele é a nossa paz. (…) A sociedade brasileira viveu e vive ainda tensões por causa das desigualdades econômicas e sociais, opiniões diferentes, de ataques às instituições. As pessoas e comunidades de fé não estão separadas do mundo”, expôs o Bispo de Marabá, Dom Vital Corbellini.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Lamento de Dido, da Ópera Dido e Enéias, de Henry Purcell (1659-1695), cantado por Annie Lennox e coral London City Voices, é um lamento também pela destruição da natureza por conta da ganância de uma minoria e de seu neoliberalismo destrutivo...

 


Annie Lennox faz do Lamento de Dido, de Henry Purcell, o lamento por um planeta destruído pela ganância do capitalismo e de suas elites...

Abaixo do vídeo tem-se a letra original e sua tradução...


When I am laid, am laid in earth, may my wrongs create

No trouble, no trouble in, in thy breast

When I am laid, am laid in earth, may my wrongs create

No trouble, no trouble in, in thy breast


Remember me, remember me, but ah!

Forget my fate

Remember me, but ah!

Forget my fate


Remember me, remember me, but ah!

Forget my fate

Remember me, but ah!

Tradução:

Quando estou deitada, estou deitada na terra, que meus erros possam não causar

Nenhum problema, nenhum problema em teu peito

Quando estou deitada, estou deitada na terra, que meus erros não criem

Nenhum problema, nenhum problema em, em teu peito


Lembre-se de mim, lembre-se de mim, mas ah!

Esqueça meu destino

Lembre-se de mim, mas ah!

Esqueça meu destino


Lembre-se de mim, lembre-se de mim, mas ah!

Esqueça meu destino

Lembre-se de mim, mas ah!

Esqueça meu destino!


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Fundamentalismo Religioso reacionário e violento nas Redes Sociais no Brasil, por Marcos Vinicius de Freitas Reis

 



A democracia é uma das maiores conquistas obtidas pelo Brasil no século passado. O período da Ditadura Militar (1964-1985) é para ser esquecido. Qualquer forma de autoritarismo defendido deve ser combatido no Brasil. Precisamos aprender a conviver com as diferenças. As redes sociais são espaços importantíssimos de debate. Entretanto, não podemos concordar com campanhas de ódios e posicionamentos que destroem a frágil democracia brasileira.


Do Jornal GGN:


Religião e Sociedade na Atualidade

Fundamentalismo Religioso nas Redes Sociais no Brasil

por Marcos Vinicius de Freitas Reis

Não é de hoje que as redes sociais é utilizada por grupos políticos, empresas, religiosos, e outros segmentos da sociedade, para posicionar a cerca sobre os mais variados temas. As eleições de 2018 é um exemplo disto. A campanha eleitoral do atual presidente da república destacou-se pelo protagonismo e influência que conseguiu exercer no facebook, twitter e o whatsapp. Muitas opiniões emitidas tinham fundamentos alicerçados de um radicalismo religioso defendidos em geral por adeptos do catolicismo e do protestantismo.

O fundamentalismo religioso ganha visibilidade e destaque na sociedade brasileira. Os radicais religiosos travam embates na defesa que o conservadorismo religioso é a solução para os problemas da democracia brasileira. Isto é, os princípios cristãos conservadores são os princípios que devem ser assumidos pelo Brasil para guiar suas ações no campo político, econômico, cultural e social. São valores universais, hegemônicos, colonialistas e eurocêntricos.

O bolsonarismo é o maior expoente do fundamentalismo religioso no Brasil atualmente. Os adeptos vinculados a tal corrente ideológica possuem dificuldades de conviver com o contraditório. Não aceitam opiniões divergentes, não aceitam as diferenças identitárias, reforça o clientelismo, patrimonialismo e as estruturas de poder consolidadas no desenvolvimento da formação do estado brasileiro. Exaltam ditadores e sistemas políticos autoritários, misóginos, xenófobos, racistas e sexistas. Em nome da manutenção dos meus valores justifica-se atos de violência e tentativas de eliminação do diferente. Em termos práticos é a institucionalização da intolerância religiosa e do racismo religioso.

A visão de mundo autoritária do presidente da república do Brasil Jair Bolsonaro (sem partido) ganha legitimidade entre segmentos católicos e evangélicos. No campo católico o movimento da Renovação Carismática Católica (RCC) é o exemplo disto. Apoiam abertamente o atual presidente do Brasil. Nos eventos promovidos pela RCC são proferidas palavras e orações de apoio e solidariedade a aquele gestor público que está “salvando” o Brasil do ateísmo, comunismo chinês, petismo, indígenas, feminismo, ideologia de gênero, africanidade, islamização e da corrupção. Esses apoios ocorrem também nas comunidades evangélicas pentecostais e neopentecostais.

Voltando as redes sociais. Religiosos radicais não conseguem lidar com opiniões diferentes das suas. Seguem a lógica do bolsonarismo. Tivemos nestas últimas semanas dois fatos lamentáveis de hostilização para com dois intelectuais que teceram críticas nas redes sociais ao fundamentalismo religioso e político no Brasil. A pastora Romi Bencke, secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), recebeu ataques de ódio nas redes sociais por defender a Campanha da Fraternidade Ecumênica após o seu lançamento. A campanha tem por meta estimular o diálogo inter-religioso, ecumenismo e a supressão da cultura de ódio. O segundo exemplo é o artigo publicado pelo Prof. Dr. Fábio Py (UENF) sobre o padre Paulo Ricardo. O referido padre é conhecido pelos seus posicionamentos radicais na defesa da fé católica. Há alguns que o chamam de “Malafaia da Igreja Católica”.  No texto, Fábio Py, relata a partir dos discursos de ódio e radicais proferidos pelo Padre Paulo Ricardo, como setores do catolicismo mostram-se intolerantes. O autor foi alvo também de ataques nas redes sociais por pessoas que não concordam com o seu ponto de vista.

A democracia é uma das maiores conquistas obtidas pelo Brasil no século passado. O período da Ditadura Militar (1964-1985) é para ser esquecido. Qualquer forma de autoritarismo defendido deve ser combatido no Brasil. Precisamos aprender a conviver com as diferenças. As redes sociais são espaços importantíssimos de debate. Entretanto, não podemos concordar com campanhas de ódios e posicionamentos que destroem a frágil democracia brasileira. Deixo registrado a minha solidariedade a Pastora Romi e o Prof. Fábio Py. Duas pessoas que são exemplos de resistência e de trabalho dedicado ao Brasil.


Marcos Vinicius de Freitas Reis – Professor da Universidade Federal do Amapá UNIFAP. Líder do Centro de Estudos de Religião, Religiosidades e Políticas Públicas (CEPRES-UNIFAP/CNPq). Interesse em temas de pesquisa: Religião e Políticas Públicas. E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Do El País: O último ancião Juma morre de covid-19 e leva para o túmulo a memória de um povo aniquilado no Brasil

 

El País:

Aruká Juma, sobrevivente de um massacre nos anos 60, morreu nesta quarta de complicações do coronavírus. Era o último homem de seu povo, e as três filhas que deixa são as únicas remanescentes da etnia que já teve entre 12.000 e 15.000 membros

Aruká Juma, o último homem de seu povo, morto pelo coronavírus na quarta-feira em Porto Velho.GABRIEL UCHIDA / KANINDÉ

O indígena Aruká Juma tinha entre 86 e 90 anos quando morreu nesta quarta-feira, 17, de complicações do coronavírus, na UTI de um hospital de Porto Velho, capital de Rondônia, a 120 quilômetros de estrada e a duas horas de barco de sua aldeia. Sua morte, assim como as 1.150 registradas naquele dia em todo o Brasil, foi uma tragédia para seus parentes. Mas Aruká era também o último homem do povo Juma, memória viva de saberes ancestrais e sobrevivente de um massacre para exterminar seu povo. As três filhas que deixa são as últimas de uma etnia que no século XVIII tinha entre 12.000 e 15.000 membros.

Uma insuficiência respiratória aguda associada a uma infecção levou o idoso, segundo o jornal digital Amazônia Real. Na juventude, ele e seis outros Jumas sobreviveram a um massacre encomendado por comerciantes interessados na borracha e nas castanhas de suas terras, segundo detalhadas informações do Instituto Socioambiental sobre cada uma das centenas de etnias do Brasil. Cerca de 60 indígenas morreram em 1964, na última tentativa de extermínio em massa sofrida por esse povo, contatado pela primeira vez em meados do século XX. Integrantes do grupo de extermínio contratados pelos comerciantes naquele tempo relataram atirar nos Juma “como se atirassem em macacos.” Em 1930, um enviado das autoridades descrevia os Juma e os povos do entorno assim: “Conhecemos nove grupos, todos inimigos entre si, fazendo guerra e cometendo as piores crueldades com suas vítimas.”

O caso de Aruká ilustra como a pandemia atinge indígenas que vivem em aldeias no Brasil, o segundo país onde o coronavírus causou mais estragos. Três números resumem o drama nacional: 243.457 mortos, mais de 10 milhões de infecções e uma taxa de desemprego de 14%. Entre os indígenas que vivem em aldeias ―uma pequena minoria especialmente vulnerável que habita um vastíssimo território―, a covid-19 matou 567 pessoas. A vida desse Juma também oferece um olhar sobre a história dessas comunidades dizimadas desde a colonização portuguesa e que são essenciais para a conservação da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. Fundamentais, portanto, para deter a mudança climática.

O antropólogo Edmundo Peggion conheceu o último Juma nos anos noventa. “Aruká era o último homem Juma que tinha memória das maneiras de caçar, dos modos artesanais próprios de seu povo. Existe um consenso na região, entre os índios Kagwahiva, de sua importância para a memória coletiva”, explica o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em entrevista por telefone. O Kagwahiva é o grupo linguístico ao qual pertencem os Juma. “Ele era reconhecido como um amóe, um título de respeito”, que significa avô em tupi-guarani.

O coronavírus e Jair Bolsonaro ―um presidente antivacina, que despreza a gravidade da pandemia e os direitos indígenas― se juntaram às ameaças clássicas aos nativos, como os garimpeiros e os madeireiros ilegais. As principais associações indígenas brasileiras culpam diretamente o Governo por sua morte: “Mais uma vez, o Governo brasileiro se comportou com um grau de omissão criminoso e de forma incompetente. O Governo o assassinou”, afirmam em um comunicado.

A epidemia se espalhou rapidamente pelos rios da Amazônia. E os invasores de terras são um foco de contágio. Embora a vacinação esteja chegando a aldeias indígenas remotas, existe desconfiança em relação aos profissionais de saúde. E a falta de vacinas ameaça a imunização em todo o Brasil. O Rio de Janeiro teve que interromper a vacinação na segunda-feira.

Aruká foi levado para um hospital em janeiro e intubado. É também um dos brasileiros que foi tratado com o que o Ministério da Saúde chama de tratamento precoce. Medicamentos como a cloroquina, cuja eficácia contra a covid-19 não foi comprovada cientificamente, foram transformados por Bolsonaro em política de Governo ―algo que seu Governo tenta apagar nas últimas semanas. A ponto de envolver as Forças Armadas na fabricação de milhões de comprimidos.

A morte do idoso indígena “é uma perda devastadora. A história de sua vida foi e continua sendo um símbolo da imensa luta que o povo Juma travou”, diz Edson Carvalho, da ONG Kanindé, em entrevista desde Porto Velho, a cidade onde Aruká morreu.

Ele será enterrado em sua aldeia, localizada na Terra Indígena Juma, ao sul do Estado do Amazonas, onde estava quando sentiu os primeiros sintomas em janeiro. Um lugar muito distante de qualquer cidade. A criação dessa reserva indígena de 38.000 hectares foi uma árdua batalha que durou anos. As autoridades não estavam convencidas de que aquele território com um punhado de habitantes merecia a proteção legal que impede a exploração de seus recursos.

Antes, no final dos anos noventa, os últimos Juma foram retirados de suas terras pelas autoridades. Aruká, suas três filhas, um cunhado e a esposa deste foram transferidos contra a vontade para os domínios dos Uru-eu-wau-wau, explica o antropólogo, que na época tinha estreito contato com os dois grupos. Lá as filhas se casaram com homens desse outro povo com quem os Juma compartilham a língua. Abandonar seu habitat “teve um impacto muito grande na vida de todos os Juma”, conta Peggion, que acrescenta que o casal mais velho morreu pouco depois da transferência. “Naqueles anos fora do seu território, Aruká ficou muito deprimido, tinha muita saudade do seu território”, diz o pesquisador.

Depois de travar outro duelo com as autoridades, este indígena conseguiu retornar às terras onde cresceu e que seus ancestrais povoaram por muitos séculos. Foi acompanhado pelas filhas (Jumas), os maridos delas (da etnia Uru-eu-wau-wau) e os filhos dos três casais. A ONG Kanindé afirma que, como neste caso a etnia é transmitida pelo pai, elas são as últimas da linhagem. A primogênita, Borehá, é a nova cacique do dizimado grupo.

Fiel à sua promessa de campanha, Bolsonaro não deu proteção legal a um único centímetro mais de terra indígena nos dois anos em que está na presidência. Os processos em andamento estão paralisados enquanto diminuem os fiscais na Amazônia e os órgãos que cuidam da proteção do meio ambiente e dos indígenas que o protegem há inúmeras gerações.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Dois anos de desgoverno – a ascensão do neofascismo no Brasil. Artigo de Michael Löwy

 

O neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não assume a forma de uma ditadura policial, mas respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento, etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas.


Do Instituto Humanitas Unisinos, reproduzindo artigo do A Terra é Redonda:

O governo de Jair Bolsonaro, embora tenha algumas semelhanças com os movimentos neofascistas da Europa, apresenta várias características específicas, escreve Michael Löwy, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (França), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-02-2021.

 

Eis o artigo.

 

Jair M. Bolsonaro não é um caso único. Assistimos nos últimos anos a um espetacular ascenso, no mundo inteiro, de governos de extrema direita, autoritários e reacionários, em muitos casos com traços neofascistas: Shinzo Abe (Japão) – substituído recentemente por seu braço direito – Modi (Índia), Trump (USA) – perdeu a presidência mas continua sendo uma força política pesada – Orban (Hungria), Erdogan (Turquia) são os exemplos mais conhecidos. A isto devemos acrescentar os vários partidos neofascistas com base de massas, candidatos ao poder, sobretudo na Europa: o Rassemblement National da família Le Pen na França, a Lega de Salvini na Itália, o AfD na Alemanha, o FPÖ na Áustria, etc.

 

neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não assume a forma de uma ditadura policial, mas respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento, etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como eram as SA alemãs ou o Fascio italiano. Certo, se mobilizaram para apoiar Donald Trump vários grupos para-militares de caráter neofascista, mas nunca chegaram a tomar um caráter de massas. O mesmo vale para os grupos de milicianos que gravitam em torno de Bolsonaro e seus filhos.

 

 

Mas a diferença mais importante entre os anos 1930 e hoje se situa no terreno econômico: os governos neofascistas desenvolvem uma política econômica tipicamente neoliberal, longe do modelo nacionalista-corporatista dos fascismos clássicos.

 

esquerda como um todo, com apenas algumas exceções, tem severamente subestimado esse perigo. Não viu a “onda marrom” vindo e, portanto, não viu a necessidade de tomar a iniciativa de uma mobilização antifascista. Para algumas correntes da esquerda que veem a extrema-direita como nada mais do que um efeito colateral da crise e do desemprego, são essas as causas que devem ser atacadas, e não o fenômeno fascista propriamente dito. Tal raciocínio tipicamente economicista desarmou a esquerda diante da ofensiva ideológica racista, xenofóbica e nacionalista do neofascismo.

 

Trata-se de um erro, partilhado por muitos na esquerda, supor que o neofascismo se fundamenta essencialmente na “classe média”. Nenhum grupo social é imune à praga marrom. As ideias neofascistas, em particular o racismo, contaminaram uma parte significativa não só da pequena burguesia e dos desempregados, mas também da classe trabalhadora. Isto é particularmente notável no caso dos Estados Unidos, onde Donald Trump conseguiu o apoio da grande maioria dos brancos no pais, de todas as classes sociais. Mas vale também para o nosso Trump tropical, Jair Bolsonaro.

 

 

O principal tema de agitação da maioria destes regimes ou partidos é o racismo, a xenofobia, o ódio ao imigrante: mexicano nos Estados Unidos, negro ou árabe na Europa, etc. Essas ideias não têm relação nenhuma com a realidade da imigração: o voto para Le Pen, por exemplo, foi particularmente alto em certas áreas rurais que nunca viram um único imigrante.

 

A análise “clássica” de esquerda sobre o fascismo o explica essencialmente como um instrumento do grande capital para esmagar a revolução e o movimento dos trabalhadores. Com base nessa premissa, algumas pessoas da esquerda argumentam que já que hoje o movimento dos trabalhadores está muito enfraquecido e a ameaça revolucionária não existe, o grande capital não teria interesse em apoiar movimentos da extrema-direita, de modo que o risco de uma ofensiva marrom não existiria. Esta é, uma vez mais, uma leitura economicista que não leva em conta a autonomia do fenômeno político. Os eleitores podem, na verdade, escolher um partido que não tem o apoio da grande burguesia. Além disso, esse estreito argumento econômico parece ignorar o fato de que o grande capital pode acomodar-se em todos os tipos de regimes políticos sem muito exame de consciência.

 

Os movimentos neofascistas na Europa

 

Na Europa atual (em 2021) existem atualmente poucos governos de tipo neofascista: a Hungria de Orban é o principal exemplo. Mas existe um grande numero de partidos com apoio de massas, que em alguns países são candidatos sérios ao poder.

 

Uma tentativa de tipologia da extrema-direita europeia atual teria de distinguir pelo menos três tipos diferentes:

 

(1) Partidos de caráter diretamente fascista e/ou neonazista: por exemplo, o Aurora Dourada, da Grécia (recentemente dissolvida) ; o Setor Direito, da Ucrânia; o Partido Nacional Democrata, na Alemanha; e várias outras forças menores e menos influentes.

 

(2Partidos neofascistas, isto é, com raízes e fortes componentes fascistas, mas que não podem ser identificados com o padrão fascista clássico. É o caso, em diferentes formas, do Rassemblement Nacional, da França; do FPÖ, da Áustria; e do Vlaams Belang, da Bélgica, entre outros.

 

(3) Partidos de extrema-direita que não possuem origens fascistas mas compartilham do seu racismo, xenofobia, retórica anti-imigrante e islamofobia. Exemplos são a italiana Lega Nord, o suíço UDC (União Democrática do Centro), o britânico Ukip (Partido de Independência do Reino Unido), o holandês Partido da Liberdade, o norueguês Partido Progressista, o Partido dos Verdadeiros Finlandeses (True Finns) e o Partido do Povo Dinamarquês. Os Democratas Suecos são um caso intermediário, com origens claramente fascistas (e neonazistas), mas que têm feito grandes esforços, desde os anos 1990, para apresentar uma imagem mais “moderada”.

 

Como em todas as tipologias, a realidade é mais complexa, e algumas dessas formações políticas parecem tomar parte de vários tipos diferentes. É preciso também levar em conta que isso não é uma estrutura estática, mas sim em constante movimento. Alguns desses partidos parecem mover de um tipo a outro.

 

Os movimentos neofascistas na Europa Oriental – as antigas “Democracias Populares” – como o partido húngaro Jobbik, o Partido da Grande Romênia e o Atak, da Bulgária, assim como partidos similares nas Repúblicas Balcânicas, Ucrânia, ex-Iugoslávia etc., têm algumas características comuns que são, em certa medida, distintas dos seus equivalentes no Ocidente: (a) o bode expiatório é menos o imigrante estrangeiro do que as minorias nacionais tradicionais: judeus e ciganos; (b) diretamente conectado a esses partidos ou tolerado por eles, gangues racistas violentas atacam, e algumas vezes matam, o povo Roma [cigano]; (c) raivosamente anticomunistas, eles se consideram herdeiros dos movimentos nacionalista e/ou fascista dos anos 1930, que frequentemente colaboraram com o Terceiro Reich. O fracasso desastroso da assim chamada “transição” (para o capitalismo), sob a liderança de partidos liberais e/ou social-democratas, criaram condições favoráveis para o surgimento de tendências de extrema-direita.

 

Um conceito equivocado: “populismo”

 

O conceito de “populismo” (ou “populismo de direita”) empregado por certos cientistas políticos, mídia e até mesmo por parte da esquerda é totalmente inadequado para explicar a natureza dos movimentos neofascistas na Europa, servindo apenas para semear confusão.

 

Na América Latina dos anos 1930 até os anos 1960, o termo populismo correspondia a algo bem específico: governos nacionais-populares ou movimentos ao redor de figuras carismáticas – VargasPerónCárdenas –, com amplo apoio popular e uma retórica anti-imperialista. Entretanto, o seu uso francês (ou europeu) a partir dos anos 1990 é totalmente equivoco. Um dos primeiros a usar o termo para caracterizar o movimento de Le Pen foi o cientista político P.-A. Taguieff, que definiu populismo como “um estilo retórico que está diretamente ligado com o apelo ao povo”.[1]

 

Outros cientistas sociais se referem ao populismo como “uma posição política que toma o lado do povo contra as elites” – uma caracterização que serve para quase todo partido político ou movimento! Quando aplicado ao Rassemblement Nacional ou outros partidos europeus da extrema-direita, esse pseudoconceito transforma-se em um eufemismo enganoso que ajuda – seja deliberadamente ou não – a legitimá-los, tornando-os mais aceitáveis ou mesmo atraentes – quem não é a favor do povo contra as elites? – enquanto cuidadosamente se evitam os termos perturbadores racismo, xenofobia, neofascismo.[2]

 

 

“Populismo” também é usado deliberadamente de uma forma mistificadora por ideólogos neoliberais e pela mídia na Europa, a fim de fazer um amálgama entre a extrema-direita, por exemplo, na França, e Rassemblement National (RN) da família Le Pen, e a esquerda radical, a France Insoumise de Jean-Luc Melanchon, caracterizados como “populismo de direita” e “populismo de esquerda”.

 

Jean-Yves Camus, respeitado cientista político francês, explicava que partidos como o RN poderiam ser chamados de “populistas” enquanto eles “fingem substituir a democracia representante pela democracia direta” e opõem o “senso comum popular” contra as “elites naturalmente pervertidas”. Esse é um argumento muito equivocado, já que o apelo à democracia direta, a crítica da representação parlamentar e das elites políticas é muito mais presente entre os anarquistas e outras correntes políticas de extrema-esquerda do que entre a extrema-direita, cujo projeto político enfatiza o autoritarismo. Felizmente, Camus, que é um dos melhores especialistas sobre a extrema-direita francesa e europeia, recentemente corrigiu seu ponto de vista, argumentando, em 2014, que se deve evitar o emprego do termo “populismo”, que tem sido usado “a fim de desacreditar qualquer crítica do consenso ideológico neoliberal, qualquer questionamento sobre a bipolarização do debate político europeu entre os liberais conservadores, qualquer expressão nas urnas do sentimento popular de desafio do mau funcionamento da democracia representativa”.[3].

 

O caso brasileiro: o neofascismo de Bolsonaro

 

Jair Bolsonaro não é nem Hitler nem Mussolini, apesar de adotar algumas posturas mussolinianas. Certo, um de seus ministros teve a infeliz ideia de citar Göbbels, mas teve que se demitir…

 

Tampouco é uma nova versão de Plinio Salgado e seus "galinhas verdes" integralistas, admiradores do fascismo europeu. Se trata de um fenômeno novo, com características próprias.

 

O que Bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto do Chefe (“Mito”) Salvador da Pátria, o ódio à esquerda e ao movimento operário. Mas não dispõe de condições de estabelecer uma ditadura, um regime fascista. Seu desejo, abertamente evocado por seus filhos, seria de impor um novo AI-5, dissolvendo o Superior Tribunal Federal [STF] e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição. Mas lhe falta para isto o apoio tanto das classes dominantes quanto das Forças Armadas, pouco interessadas, no momento, por uma nova aventura ditatorial.

 

O autoritarismo de Bolsonaro se manifesta, entre outras, no seu “tratamento” da epidemia, tentando impor, contra o Congresso, contra os governos dos estados, e contra seus próprios ministros, uma politica cega de recusa das medidas sanitárias mínimas, indispensáveis para tentar limitar as dramáticas consequências da crise (confinamento, vacinação, etc.). Sua atitude tem também traços de social-darwinismo (típico do fascismo): a sobrevivência dos mais fortes. Se milhares de pessoas vulneráveis – idosos, pessoas de saúde frágil – vierem a falecer, é o preço a pagar: “O Brasil não pode parar”!

 

 

Outro aspecto especifico do neofascismo bolsonarista é o obscurantismo, o desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo evangélico. Esta atitude, digna do terraplanismo, não tem equivalente em outros regimes autoritários, mesmo os que têm por ideologia o fundamentalismo religioso. Max Weber distinguia religião, baseada em princípios éticos, e magia, a crença nos poderes sobrenaturais do sacerdote. No caso de Bolsonaro e seus amigos pastores neopentecostais (MalafaiaEdir Macedo, etc.) se trata mesmo de magia ou de superstição: parar a epidemia com “orações” e “jejuns”…

 

Embora Bolsonaro não tenha conseguido impor o conjunto de seu programa mortífero, ele contribui de forma notável para fazer do Brasil o segundo país mais atingido (depois dos Estados Unidos de Trump), em número de mortes, em escala internacional.

 

Como se sabe, o grande modelo político para Bolsonaro é Donald Trump. Certo, Bolsonaro não representa uma potência imperialista como os Estados Unidos! Além disso ele não conta com o apoio de um grande partido conservador, como é o caso do Partido Republicano norte-americano, que controla metade do Congresso e do Senado. Mas eles têm vários elementos em comum, além do estilo grosseiro, vulgar, machista e provocador:

 

(I) O ódio à esquerdaTrump denuncia todos seus adversários, mesmo os mais moderados, como responsáveis de uma conspiração para impor o “socialismo” nos Estados Unidos. Para Bolsonaro o o anticomunismo é uma verdadeira obsessão, num clima de ódio exacerbado fora de qualquer contexto internacional (a Guerra Fria já acabou há trinta anos). Seu maior desejo seria “matar 30 mil comunistas” para “limpar o Brasil”, sendo que o termo “comunismo” se refere a qualquer força politica moderadamente progressista (como o PT).

 

(II) A ideologia repressiva, o culto da violência policial, a defesa da pena de morte, e o estimulo à difusão massiva das armas de fogo. A impunidade dos policiais responsáveis pela morte de inúmeros inocentes, geralmente de cor negra, é um princípio fundamental para ambos. Bolsonaro há anos era um dos líderes da “bancada da bala” no Congresso Nacional e sua relação com bandos paramilitares – entre os quais se recrutaram os assassinos de Marielle Franco – é conhecida. Quanto à Trump, o lobby das armas (National Rifle Association) é um de seus principais sustentáculos.

 

(III) A retórica nacionalista, “America First”, “O Brasil acima de tudo”, sem que se coloque em questão a globalização capitalista neoliberal. Uma característica essencial do neofascismo de Bolsonaro é que, apesar de seu discurso ultranacionalista e patrioteiro, é completamente subordinado ao imperialismo americano, do ponto de vista econômico, diplomático, político e militar. Isto se manifestou também na reação ao coronavírus, quando se viu Bolsonaro e seus ministros imitarem Donald Trump, culpando…os chineses pela epidemia.

 

(IV) O negacionismo climático. Enquanto Trump se retirava dos acordos de Paris e destruía todos os controles e obstáculos à desenfreada exploração do carvão, do petróleo e do gás, em aliança estreita com a oligarquia fóssil, Bolsonaro aproveitou a crise do Covid 19 para (nas palavras de seu Ministro do Meio Ambiente) “deixar passar a boiada” na Amazônia. Resultado: os maiores incêndios na Amazônia nas últimas décadas e uma feroz ofensiva do agronegócio contra a floresta e seus defensores indígenas – estes “inimigos do progresso” segundo Bolsonaro.

 

Com a derrota eleitoral de TrumpBolsonaro perdeu seu principal apoio internacional, e suas veleidades autoritárias e ditatoriais se veem prejudicadas. É difícil imaginar um golpe tipo AI-5 no Brasil atual sem a luz verde do império americano, o que poderia ter sido o caso na época de Trump, mas não com a nova administração americana (que defende outras modalidades de política imperialista).

 

O governo de Jair Bolsonaro, embora tenha algumas semelhanças com os movimentos neofascistas da Europa, apresenta várias características específicas. Vejamos algumas das principais diferenças, que fazem do bolsonarismo um fenômeno sui-generis:

 

( 1) Enquanto na Europa existe, em vários países, uma continuidade política e ideológica entre movimentos neofascistas atuais e o fascismo clássico dos anos 1930, isso não ocorre no Brasil. O fascismo brasileiro, o integralismo, chegou a ter bastante peso nos anos 1930, inclusive influenciando o golpe do Estado Novo, em 1938. Mas o bolsonarismo tem pouca relação com essa matriz antiga; sua principal referência é bem mais a ditadura militar (1964-1985) brasileira, com seu clima de “caça aos comunistas”. Como se sabe, o ídolo politico de Bolsonaro é o Coronel Brilhante Ustra, responsável do DOI-CODI em São Paulo, onde foram torturados ou assassinados inúmeros militantes da resistência contra a ditadura.

 

(2) Não existem no Brasil, como na Europa, partidos de massas neofascistas. Bolsonaro, embora tenha uma base popular significativa, nunca foi capaz de organizar um grande partido; para se eleger, se afiliou ao pequeno PSL (Partido Social Liberal), com o qual acabou rompendo pouco depois.

 

(3) Contrariamente à Europa (e aos Estados Unidos, com Trump), o neofascismo no Brasil não fez do racismo sua principal bandeira. Temas racistas não estiveram ausentes da campanha eleitoral de Bolsonaro, mas de forma alguma era esse o seu assunto principal. Um partido brasileiro que tentasse fazer do racismo seu programa fundamental nunca teria 25% dos votos como em vários países da Europa, ou 45% como nos Estados Unidos…

 

(4) O tema da luta contra a corrupção está presente entre os neofascistas da Europa, mas de forma relativamente marginal. No Brasil é uma velha tradição, desde os anos 1940, dos conservadores: levanta-se a bandeira do combate à corrupção para justificar o poder das oligarquias tradicionais e, segundo o caso, legitimar golpes militares. Na campanha de Bolsonaro foi um tema essencial, falsamente apresentando o Partido dos Trabalhadores (PT) como o único responsável pela corrupção.

 

(5) A homofobia não é um tema de campanha frequente na extrema-direita europeia, como algumas exceções. O Brasil tem uma longa tradição de cultura homofóbica, mas isto nunca foi assunto de luta politica. Com o neofascismo de Bolsonaro, em aliança com as Igrejas neopentecostais, se tornou, pela primeira vez na história, um dos temas principais de sua campanha eleitoral, denunciando o PT, num verdadeiro diluvio de fake news, como instigador de um programa visando “a transformar as crianças brasileiras em gays”.

 

Enfraquecido pelo vários escândalos políticos e financeiros envolvendo sua família, pela catástrofe sanitária e pela derrota de seu protetor internacional (Trump), Bolsonaro consegue se manter no poder graças ao apoio das classes dominantes brasileiras – o agronegócio, a oligarquia industrial e financeira – e da classe política corrupta e oportunista que controla a Câmara dos deputados e o Senado. Para a burguesia brasileira, o essencial é o programa neoliberal – redução dos impostos, arrocho salarial, cortes dos gastos públicos, privatizações, etc. – representado pelo ministro Guedes. Além disso, ele ainda conta com o apoio de parcela importante da população brasileira, motivada pelo neopentecostalismo reacionário, ou pelo ódio ao PT.

 

 

O combate da esquerda e das forças populares brasileiras contra o neofascismo ainda esta no começo; será preciso mais do que algumas passeatas ou alguns simpáticos protestos de caçarolas para derrotar esta formação política teratológica. Certo, mais cedo ou mais tarde o povo brasileiro vai se libertar deste pesadelo neofascista. Mas qual será o preço a pagar até lá?

 

Não há nenhuma receita mágica para combater a extrema-direita neofascista. Devemos nos inspirar – com uma distância crítica apropriada – nas tradições antifascistas do passado, mas também devemos saber como inovar, a fim de responder às novas formas desse fenômeno. O movimento antifascista só será eficaz e crível se for motivado por forças situadas fora do consenso neoliberal dominante.

 

sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e reproduz fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de Estado e as ditaduras militares. A raiz desses fenômenos é sistêmica e a alternativa tem de ser radical, antissistêmica. Isto é, um socialismo libertário e ecológico que supere os limites dos movimentos socialistas do século passado – o compromisso socialdemocrata com o sistema e a degeneração burocrática do chamado “socialismo real” –, mas recupera as tradições revolucionárias brasileiras, de Zumbi dos Palmares e Tiradentes à Carlos Marighella e Chico Mendes.

 

Notas

[1] P.-A. Taguieff, Le populisme et la science politique, Vingtième siècle, 1997. p. 8.

[2] Ver o interessante livro de Annie Collovald. Le “populisme du FN”, un dangereux contresens. Broissieux: Editions du Croquant, 2004. p. 53 e 113. (Col. Raisons d’agir.)

[3] Jean-Yves Camus. Extrêmes droites mutantes en Europe. Le Monde Diplomatique, p. 18-19, mar. 2014.

 

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