terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Mauro Lopes discute o novo posicionamento geopolítico do Vaticano: mais distante dos EUA e mais próximo dos demais...


Com Francisco, a geopolítica do Vaticano é marcada por aproximação com a China, a Rússia, a América Latina e as periferias. E distância dos EUA e dos governos de direita na Europa e no mundo. Vira-se a página tanto da visão geopolítica de João Paulo II de alinhamento com os EUA numa dinâmica anticomunista e antiesquerda como da visão do “eurocentrismo frouxo” de Bento XVI

Do site Caminho para Casa, de Mauro Lopes:



Chineses saúdam o Papa na Praça São Pedro em Roma
Por Mauro Lopes
A normalização das relações entre a Igreja Católica e a China, esperada para as próximas semanas é resultado de um dos mais notáveis feitos de Francisco: a mudança radical operada na geopolítica do Vaticano. Este giro talvez possa explicar a oposição crescente ao Papa de forças poderosas, pois na esfera da geografia política está a balança do poder global.
É uma virada espetacular. Foram 70 anos de conflito que estão para ser deixados para trás. O sinal definitivo de que as negociações estão maduras para um desenlace veio em 30 de janeiro, quando o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, declarou numa entrevista ao Vatican Insider: “A esperança é poder chegar um dia, quando seja a vontade do Senhor, em que não se fale mais de bispos ‘ legítimos’ e ‘ilegítimos’, ‘clandestinos’ e ‘oficiais’ na Igreja chinesa, mas num encontro como irmãos”.
Durante décadas, a Igreja esteve dividida entre uma “patriótica”, admitida pelo governo chinês, e uma “clandestina” (na verdade, mais discreta que clandestina), alinhada ao Vaticano. Em dezembro, uma delegação vaticana esteve em Pequim e costurou um acordo para que todos os bispos, seja os da Igreja “patriótica” como os da “clandestina” passem a compor uma estrutura única.
João XXIII, João Paulo II e Bento XVI
Foram quase 40 anos, sob João Paulo II e Bento XVI, especialmente sob Karol Wojtyla, de uma geopolítica vaticana orientada pelo anticomunismo. O auge desta política foi sob João Paulo II, nos marcos da Guerra Fria. O papa polonês era um anticomunista ferrenho que ideologizou por completo as relações geopolíticas do Vaticano. Rompeu-se a lógica eurocêntrica de séculos e soterrou-se igualmente a tentativa de abertura ensaiada por João XXIII.
O “Papa bom” opôs-se vigorosamente à excomunhão de Fidel Castro, depois da vitória socialista em Cuba, mas acabou dobrando-se à exigência da Cúria em janeiro de 1963. Pouco depois, recebeu no Vaticano a filha e o genro de Kruschev, num encontro marcado por afeto e delicadezas mútuas, num gesto de grande impacto. Pouco antes, em 24 de outubro de 1962, João XXIII havia feito um histórico pronunciamento pela Rádio Vaticano, no auge da “crise dos mísseis” entre os Estados Unidos e Cuba, com frases que foram manchete em todos os jornais do mundo: “Nós suplicamos a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade. Que façam tudo aquilo que está em seu poder para salvar a paz. Evitarão assim ao mundo os horrores de uma guerra, da qual não se pode prever quais serão as terríveis consequências”.
O cume da visão geopolítica de João XXIII –e de seu sentido de humanidade e cristianismo- foi a publicação, em 11 de abril de 1963, da encíclica Pacem in Terris, que propugnava a superação completa da confrontação entre os blocos capitalista e socialista e uma paz fundamentada nos princípios da igualdade e da liberdade.

Ronald Reagan com João Paulo II: aliança contra a esquerda

Depois da morte de João XXIII, a ação geopolítica do Vaticano ficou imersa em idas e vindas, características do papado de Paulo VI, até que João Paulo II, a partir de sua eleição, em outubro de 1978, tornou o Vaticano em força auxiliar do capitalismo, especialmente do neoliberalismo, com uma aliança inédita com os Estados Unidos (Ronald Reagan e George Bush) e Inglaterra (Margaret Thatcher) e anatemizando a esquerda.
Para que se tenha uma ideia da relevância da ação geopolítica de Wojtyla, o general Vernon Walters, ex-vice-diretor da CIA e nomeado em 1981 como embaixador itinerante do governo Ronald Reagan, manteve encontros secretos semestrais com o Papa entre 1981 e 1988, nos quais repassava informações secretas da inteligência dos EUA sobre os países do Leste europeu e a América Latina –inclusive sobre os leigos e padres da Teologia da Libertação. Foram cerca de 20 encontros. O próprio diretor da CIA, William Casey, participou de algumas das reuniões. O Vaticano passa a receber informes específicos da CIA sobre padres e bispos vinculados à Teologia da Libertação especialmente na Nicarágua e em El Salvador, e a guiar sua ação na região por estes informes[1].
Os anos de Bento XVI, que do cardeal ativíssimo à frente da Inquisição nos anos de João Paulo II, como um Torquemada do século XX, tornou-se um Papa alquebrado e impotente, foram de ensimesmamento nas relações globais do Vaticano e uma tentativa tímida e sem sucesso de recuperar a visão eurocêntrica anterior a João XXIII.
Francisco muda tudo
Desde sua posse, em 2013, Francisco iniciou uma aproximação sigilosa com a China, a partir de iniciativas tímidas ocorridas em 2007 durante o papado de Ratzinger. O Papa encontrou um governo chinês desejoso de uma nova relação com a Igreja e o Ocidente, por conta de seu projeto de hegemonia global que pretende contrapor-se ao big stickamericano com uma proposta baseada em comércio e diálogo.
As relações entre cristãos e comunistas foram muito frutíferas na Europa nos anos 1950/60, a partir de experiências como a Ação Católica ou os padres operários franceses, e na América Latina, a partir do desabrochar da Teologia da Libertação nos anos 1970 –até a interdição estabelecida por João Paulo II.
Há muita possibilidade de convergência, segundo o bispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo, atual chanceler da Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano. Ele voltou a Roma, depois de uma viagem a Pequim, há dez dias, entusiasmado com o que viu e anotou: “há muitos pontos de encontro entre a China e o Vaticano”. Ele fez afirmações surpreendentes: “Neste momento, os que atendem melhor a doutrina social da Igreja são os chineses.” Ainda mais, num momento em que o Comum é tema cada vez mais relevante nas formulações de caráter pós-capitalista, o bispo indicou que a China dever ser olhada com atenção: “Eles se preocupam com o bem comum, subordinam as coisas ao bem comum”. Uma declaração ainda mais ousada causou a fúria dos conservadores católicos saudoso de Wojtyla: “Pequim está defendendo a dignidade da pessoa, seguindo mais do que os outros países, a encíclica Laudato Si [encíclica do Papa sobre o planeta Terra e o meio ambiente].
Do lado chinês, elogios e gestos na direção do Vaticano. No início de fevereiro, o Global Times, vinculado ao Partido Comunista, escreveu que “o povo chinês respeita o Papa”, que “tem um imagem positiva entre os chineses”, que o restabelecimento das relações diplomáticas é questão de tempo, e que os problemas estão sendo superados com base na “sabedoria” de Francisco.
Um dos obstáculos ao acordo, o cardeal emérito de Hong Kong Zen Ze-kiun, anticomunista ferrenho e que tinha voz decisiva no Vaticano com Wojtyla e Bento XVI, foi colocado de lado por Parolin e Francisco. Em 30 de janeiro, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, criticou abertamente o cardeal –o que é raríssimo, em e tratando de Igreja Católica- acusando-o de “alimentar a confusão”.
EUA
O governo americano, especialmente sob Trump, está de cabelo em pé com o movimento Vaticano-Pequim, que pôs a pique a estratégia de Guerra Fria renovada da Casa Branca. Houve pressão da diplomacia americana –imediatamente rechaçada pelo Vaticano.
As relações entre o Vaticano e os EUA são como água e óleo, e isso vem desde a campanha eleitoral, quando o Papa acusou o então candidato Trump de “não ser cristão” por suas posições contra os imigrantes e refugiados. Foram seguidos confrontos públicos e nos bastidores. Trump chegou a afirmar que iria à Itália e não visitaria o Papa, mas recuou e foi ao Vaticano em maio de 2017; a foto do encontro é antológica e tornou-se simbólica do status da relação entre a Igreja e a Casa Branca.

A famosa foto do encontro de maio de  2017 com a família Trump: desconforto

Francisco ataca sistematicamente todos os valores defendidos pela visão capitalista de Trump. Chegou a afirmar que o capitalismo é “insuportável”, uma “ditadura sutil” e que o dinheiro, idolatrado pelo empresário-presidente americano, é o “esterco do diabo”.
Por isso, se você quiser saber onde está o Papa em qualquer questão mundial relevante, saiba onde está Trump –Francisco estará no polo oposto (e vice-versa). Outra situação notável: enquanto Trump que destruir Coreia do Norte e ameaça o país com bombas nucleares, Francisco é um dos maiores incentivadores públicos da aproximação entre as duas Coreias, qualificando os movimentos recentes entre Pyongyang e Seul de um exemplo “de um mundo no qual os conflitos se resolvem pacificamente com o diálogo e em respeito recíproco”.
Rússia
Não é só a China que está na agenda de Francisco. Ele pretende ser o primeiro Papa a visitar a Rússia. O cardeal Parolin esteve no país entre 20 a 24 de agosto, numa viagem –desde 1888 um secretário de Estado do Vaticano não pisava em solo russo; esteve com Putin e com Kirill, patriarca de Moscou e de toda a Rússia e primaz da Igreja Ortodoxa Russa.
Parolin foi chave na costura do histórico encontro entre Francisco e Kirill em Havana, em fevereiro de 2016, depois de quase mil anos sem que os chefes da Igreja Católica e Ortodoxa Russa tivessem contato, num clima de intensa afetividade.  Também com a Rússia as coisa andam rapidamente –ainda mais pensando na complexidade de relações tão marcadas por separações e traumas.

Putin com o secretário de Estado Parolin: cardeal é figura-chave na virada do Vaticano

“O resultado é substantivamente positivo” –assim resumiu Parolin o resultado de sua viagem. De fato. O governo russo comprometeu-se a usar sua força (inclusive militar) no Oriente Médio para defender as minorias religiosas. Além disso, reafirmou-se a identidade entre Moscou e o Vaticano na visão sobre a Síria, de apoio ao governo de Bashar al-Assad e longe dos jihadistas –financiados pelos EUA.
América Latina, Europa, as periferias e o fim dos blocos
O Papa do “fim do mundo”, como ele se definiu na noite em que foi apresentado ao povo na Praça São Pedro e em quase todo o planeta tem uma visão geopolítica que não se limita à relação com as potências como China, Rússia e Estados Unidos.
Francisco mantém distância de governos de direita na América Latina –é notório que ele evita visitar seu país, a Argentina, sob a presidência do neoliberal Mauricio Macri, condenou o golpe de 2016 no Brasil e recusou-se a pisar novamente no país em 2017, mesmo com as celebrações dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem devoto. Ao mesmo tempo, cultiva relações fraternas com o presidente boliviano Evo Morales, assim como com líderes dos movimentos sociais da região, como João Pedro Stedile –foi expressiva a presença de latino-americanos nas três edições do Encontro Mundial dos Movimentos Populares.

Evo Morales visita Francisco no Vaticano: relação calorosa

Com o Papa do “fim do mundo”, que enterrou o eurocentrismo da Igreja Católica (ao menos simbolicamente) ficou também decretada a superação da contraposição ideológica entre católicos e socialista; a contraposição agora é entre os que estão ao lado dos pobres e aqueles que defendem os ricos e os sistemas de exploração e opressão das pessoas. Para Francisco “não existem mais os blocos contrapostos” do passado –afirmou em seu discurso ao Parlamento europeu de Estrasburgo de 25 de novembro de 2014.
Há protagonismo de Francisco no Velho Continente, em especial no tema dos migrantes e refugiados. E um de seus interlocutores mais assíduos é exatamente o primeiro-ministro socialista da Grécia, Aléxis Tsípras, com quem “costurou” uma sequência de reuniões entre o Vaticano e grupos marxistas europeus.
Uma imagem possível para mudança da geopolítica da Igreja Católica: o Vaticano deixou o G-8 e agora está nos BRICS.
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[1] BERNSTEIN, Carl; POLITI, Marco. Sua Santidade: João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, p. 274 a 276

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Darcy Ribeiro e a estrutura de classes no Brasil de hoje, por Roberto Bitencourt da Silva




GGN.- Um dos mais expressivos e fecundos pensadores sociais brasileiros, que em muito contribuiu e, por meio dos seus inúmeros estudos, ainda contribui para a reflexão sobre a realidade do País, o cientista social Darcy Ribeiro nos deixou há 21 anos. Então exercendo a função de senador (PDT-RJ), Darcy faleceu em 17 de fevereiro de 1997, aos 74 anos de idade.

O seu legado é imensurável. Seja como estadista, agente da educação pública, antropólogo, ficcionista, seja como ator político dotado de engenho criativo e combatividade, cuja saliente veia nacionalista, anti-imperialista e socialista era notória e irritava as colonizadas mentes das elites econômicas, políticas e intelectuais tupiniquins.  
Como singelo resgate de memória e enquanto recurso de mobilização de fragmentos das ideias do grande pensador, o texto tem em vista explorar aspectos da análise feita por Darcy Ribeiro em torno da estrutura de classes do Brasil. Procuro, especialmente, chamar a atenção para o panorama das relações de força, desiguais e espoliativas, entre as classes sociais brasileiras, panorama descrito pelo autor, de sorte não apenas a salientar a argúcia da sua percepção política, como também ressaltar traços importantes para a compreensão do Brasil de hoje, a partir da escrita darcyniana.
Me baseio, sobretudo, na análise empreendida pelo “fazedor de escolas para o povão” em seu livro O dilema da América Latina (Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1978). Não gratuitamente, a obra é dedicada aos “jovens iracundos”. Darcy entendia que a estrutura de classes e de poder no Brasil envolvia quatro grandes aglomerados coletivos, com capacidades respectivas e profundamente assimétricas de exercício de participação política, de cidadania e (in)acesso a diferentes dimensões dos direitos humanos e à propriedade dos meios de produção e de bens de uso pessoal.
O topo seria formado pelas classes dominantes, divididas e articuladas em um patronato moderno e tradicional (grandes capitalistas domésticos, parasitários e produtivos, rurais e urbanos); no patriciado, que viveria de altas posições nas instituições do Estado (oligarquias patriarcais políticas, altos agentes do Judiciário etc.); e no estamento gerencial estrangeiro (corpos representativos das “empresas imperialistas”, notadamente técnico-burocráticos).
Logo abaixo viriam os setores intermediários – faixas altas e médias do funcionalismo público, civil ou militar, profissionais liberais, médios proprietários de negócios etc. Uma fonte de anteparo para os interesses dominantes, frente às classes de baixo, mas também formados por estratos com propensões políticas radicais, seja à direita, seja à esquerda.
Um terceiro universo da estratificação social comportaria as classes subalternas: a “aristocracia operária” empregada nas indústrias pertencentes a corporações multinacionais e demais assalariados portadores de vínculo empregatício, dotados ou não de filiação sindical.
Por último e compondo a mais dilatada fração da sociedade brasileira – em boa medida, também de outros povos latino-americanos – encontravam-se as classes oprimidas e marginalizadas. Todo um vasto e heterogêneo universo de gentes submetidas ao subemprego, ao desemprego crônico, ao desapossamento absoluto de direitos.
Estas últimas consistiriam no alvo preferencial do capitalismo dependente e subalterno, que as converteria em “carne a ser triturada” como “excedente demográfico”, para melhor regular para baixo os salários e os direitos coletivos, assim como para extrair riquezas a serem compartilhadas entre as alas distintas, mas conexas das classes dominantes. Note-se que não seriam “exército de reserva”. Mas, sim, espécies de “fantasmas” criados pelas classes dominantes, para incentivar os receios das classes intermediárias e subalternas contra o rebaixamento dos seus status sociais e estimular seus egoísmos.  
Do ponto de vista da participação política e da capacidade de incidir sobre o delineamento das leis, a composição e as escolhas de governos, da análise de Darcy não restaria dúvida que as classes dominantes exerceriam semidesenfreado poder. Denotando algum recurso de barganha e reclamo, os setores intermediários se fariam ouvir pelas estruturas de poder, assim como as vozes de segmentos das classes subalternas (sobretudo, sindicalizadas) teriam algum eco, nas instituições e na construção da opinião e da agenda pública. Entre as classes marginalizadas restaria somente o silêncio opressivo e a repressão aguda e incontrolável.
A análise a que faço referência foi desenvolvida há mais de 40 anos. Compreendo que, em linhas gerais, ainda conforma um razoável retrato da sociedade e das relações de força e poder no Brasil. Contudo, em virtude de significativas mudanças ocorridas no sistema produtivo e financeiro do País, de silenciosas e às vezes altissonantes reconfigurações no capitalismo dependente brasileiro, como também devido a expressivas mudanças no mundo do trabalho e do emprego, o intervalo de tempo requer revisões, parciais que sejam, no quadro pintado por Darcy. Precisamente por conta das implicações políticas em nossos dias. Senão, vejamos.
Em relação às classes dominantes se poderia dizer que o patriciado que parasita o Estado permanece firme e forte. Todavia, em função do acentuado processo de desnacionalização e de desindustrialização que atravessou as últimas décadas no Brasil, é plausível argumentar que o eixo das classes dominantes hoje encontra-se totalmente no estamento gerencial estrangeiro. Um fenômeno silencioso, que se desenrolou serena e folgadamente, em particular após os anos 1990.
Em nossos dias, o governo do golpista e vende pátria Michel Temer (PMDB) representa um verdadeiro processo de “atualização histórica” do País (nos termos dados por Darcy). Isto é, traduz a expressão política de poder dos conglomerados financeiros e produtivos internacionais, que avassalam as burguesias domésticas tíbias e subservientes, hoje convertidas em meras testas de ferro, gerentes e acionistas minoritários a serviço do real e efetivo poder gringo.
O projeto de venda e arrendamento semi-irrestrito de terras a estrangeiros, defendido pela própria Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), talvez consista no exemplar mais caro dessa subalternização aos interesses estrangeiros e à adoção do parasitismo como estilo de vida e prática política. O patriciado, político e judicial, é claro, tende a se orientar para essa realidade em que prevalece a intensificação do neocolonialismo. Nenhum compromisso com o País.
Nesse sentido, as relações de dominação e força a cada dia retiram relevância economicamente ativa de intermediários internos. Os imperativos forâneos se espraiaram mais do que na época do estudo feito por Darcy. Talvez seja possível especular sobre um potencial deslocamento contínuo dos grandes capitalistas domésticos em gerentes e oligarquias políticas a soldo das corporações multinacionais.
As classes intermediárias e subalternas, claro está, tendem a perder espaço, reduzido que possuía, em termos de vozes fragmentariamente ouvidas pelas instituições do poder. Possuem “direitos demais”, são “privilegiados” que precisam “se adequar aos novos tempos”, nos dizem os porta-vozes dominantes. Que tempos? De extração maior da mais valia, dos excedentes nacionais pelo capital internacional. Os capitalistas parasitários e entreguistas daqui, abandonando a produção direta, tendem a abocanhar mais ainda das classes de baixo, extraindo sua cota, já que parte maior dos excedentes, cada vez mais, são escoados para fora.
A cidadania e a participação política de intermediários e subalternos, forçosamente, tendem a ser mais restritas no sistema capitalista dependente em reconfiguração. Ademais, também por conta da desindustrialização e envolvendo, particularmente, segmentos das classes subalternas. Há 40 anos a indústria correspondia a cerca de 25% do PIB. Hoje mal chega a 10%. O número de empregos rebaixou dramaticamente, além de a indústria ter sido quase integralmente desnacionalizada. A “aristocracia operária”, em que nasceu Lula e o PT, perdeu e continuará perdendo força e espaço. Inclusive, voz.
Darcy estava certo e sua percepção identificou um processo que somente se fez acentuar. Refiro-me ao cenário flagrantemente marcado por relações de força e poder que contrapõe nos dois extremos o grande capital internacional às classes marginalizadas. São estas que pagam a fatura mais cara das crescentes remessas de lucros para o exterior, da importação tecnológica levada a cabo pelas multinacionais e pela parca e desnacionalizada indústria. São as classes marginalizadas que, com isso, ficam excluídas do mundo do emprego formal, sobretudo, técnica e profissionalmente mais adensado. A educação, um direito apenas superficial.
Tornam-se “população excedentária” (já sacava Darcy, há muito). Não gratuitamente, no Rio de Janeiro, encontram-se sob a mira das armas, dos constrangimentos, da humilhação e da violação de direitos elementares, a mando do títere-mor do capital internacional, Michel Temer. Cada tanque e arma voltada para essa parcela gigantesca do Povo Brasileiro é muito mais o sintoma da cavalar ordem neocolonial predominante do que qualquer mal alegada preocupação com a segurança pública e o combate ao tráfico de drogas.   
A saída desse quadro? Rápida, esquematicamente e com potenciais frutos somente para médio e longo prazo. Primeiro, trabalho político e pedagógico de organização e mobilização popular, escanteando débeis concepções eleitoreiras. Segundo, articulação entre amplas frações das classes intermediárias, subalternas e oprimidas/marginalizadas. Um poderoso bloco político-cultural que forje a (re)emergência do Povo Brasileiro contra as vendidas e transnacionais classes dominantes apátridas. Terceiro: recuperar a centralidade das atenções políticas e econômicas no papel desempenhado pelas corporações internacionais e observar as mutações ocorridas com a burguesia interna vende pátria.
Às esquerdas, não cabe, hoje, qualquer ilusão em relação a alianças com “burguesias nacionais e produtivas”. Elas, se já existiram sem muita força, não existem mais. Darcy pouco ou nada apostava nelas: “umas elites imprestáveis”, diria o grande mestre. E isso já faz bastante tempo.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.   

Do El País: O México também colocou o Exército nas ruas contra o tráfico: a história daquele fracasso


Do El País:

O México também colocou o Exército nas ruas contra o tráfico: a história daquele fracasso

Mais de 11 anos depois de mandar o Exército às ruas para combater o tráfico a violência continua sangrando o país


intervenção federal militar no RJ
Mulher carrega bebê na comunidade Vila Kennedy, no Rio.  (AFP)

Quando o México acordou, os traficantes e o Exército nas ruas continuavam lá. Quase onze anos após Felipe Calderón decidir em seu décimo dia como presidente, em 10 de dezembro de 2006, enviar 6.500 soldados a sua Michoacán natal para sufocar a violência e a impunidade, o balanço da chamada “guerra contra o tráfico” não pode ser mais desalentador. Quase 200.000 mortos, 23.000 desaparecidos, numerosas denúncias por violações dos direitos humanos, casos emblemáticos como os 43 estudantes de Ayotzinapa desaparecidos há quatro anos, o mês de janeiro de 2018 mais violento desde 1991 com mais de 2.000 mortos e cartéis da droga cada vez mais fragmentados e incontroláveis que todos os dias mancham de sangue a geografia mexicana.
A controversa decisão de Calderón, um dos presidentes mais impopulares a sentar-se na cadeira da águia, e na qual muitos viram uma tentativa de se legitimar no poder após uma eleição apertada que venceu por poucos votos, foi como uma pedrada em uma colmeia cujas picadas mortais chegaram a toda a sociedade mexicana. Durante dois meses, quase 20.000 soldados foram recebidos como heróis por uma população cansada de violência e de massacres desde 2005 e de forças de segurança corruptas. O sonho logo acabou: abusos dos militares, que aumentaram em 600% entre 2003 e 2013 de acordo com organizações como a Anistia Internacional, falta de preparação e de um marco legal, efetivos reduzidos para territórios grandes, população rural desalojada e erupção dos chamados grupos de autodefesa em Guerrero, Oaxaca e Michoacán, no sul do país, na realidade, pessoas dispostas a fazer justiça com suas próprias mãos, muitas vezes cumprindo ordens dos traficantes.
O veneno contaminou os seis anos de mandato de Enrique Peña Nieto, do PRI, que ao assumir prometeu mudar essa estratégia, fracassada segundo todos os parâmetros, mas cuja recente e polêmica Lei de Segurança, agora na Suprema Corte de Justiça, questionada por várias ONGs, apesar de pretender dar um respaldo jurídico à ação do militares, causou um profundo mal-estar no interior das Forças Armadas que são enviadas para lutar uma guerra assimétrica para a qual não estão preparadas. Os diferentes candidatos às eleições presidenciais de 1 de julho ainda não se pronunciaram sobre o assunto por imperativo legal, mas o favorito, Andrés Manuel López Obrador, do Movimento de Regenerarão Nacional (MORENA) insinuou uma anistia aos chefes do narcotráfico que causou incômodo.
A insegurança se transformou em uma obsessão aos mexicanos que veem como, apesar da mobilização de mais de 50.000 soldados em suas cidades, a violência continua e penetra em antigos santuários de tranquilidade como a Cidade do México e as regiões turísticas de Cancún e Los Cabos onde já é comum ver tanques e turistas. O Governo de Peña Nieto se orgulha de ter prendido 101 dos 122 chefes mais procurados, entre eles, ano passado, o famoso Joaquín El Chapo Guzmán, chefe do poderoso Cartel de Sinaloa, agora preso nos Estados Unidos após várias fugas e recapturas. “Missão cumprida”, publicou à época o presidente em sua conta no Twitter. Mas como aconteceu com George W. Bush no Iraque, os números e a realidade desmentem o presidente.
De fato, muitos ‘think thanks” classificam o México como um dos países mais mortíferos do mundo, também para a imprensa (12 jornalistas mortos somente em 2017, números comparáveis aos da Síria), ao que é preciso acrescentar 63.000 mortos em seus três primeiros anos de mandato (50% a mais do que no mesmo período de Calderón). Enquanto isso, a droga continua fluindo livremente aos Estados Unidos e a estratégia seguida pelo Gabinete de Peña de atacar os cartéis e fragmentá-los, mais do que enfraquecê-los, voltou a agitar a colmeia, com grupos cada vez mais autônomos e, portanto, menos manejáveis e previsíveis. Essa é a razão pela qual muitos no México acreditam que a melhor guerra contra as drogas é fazer as pazes com os chefes do tráfico e deixar seu lucrativo negócio como está, como acontecia nos tempos do velho PRI. Porque, uma vez que você coloca o Exército nas ruas, quem o devolve aos quartéis?

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