Ser Negro no Brasil
Não haverá superação do racismo – como uma relação de poder – sem a reforma das instituições. E essas reformas não são alcançadas – pelo menos em países de economia periférica como o Brasil – sem choro e ranger de dentes e muita luta social
9 de janeiro de 2017 - Le Monde Diplomatique Brasil
[…] é preciso tomarmos o nosso partido e dizermos de uma vez por todas que a burguesia está condenada, cada dia que passa, a ser mais intratável, mais abertamente feroz, mais despudorada, mais sumariamente bárbara.
(Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo)
Entre os analistas do golpe institucional brasileiro, poucos são os que se arriscam a entendê-lo de uma perspectiva de raça e de gênero. Quando isso ocorre, racismo e patriarcalismo aparecem como um aspecto a mais da conjuntura, como a conferir cores ainda mais dramáticas à tragédia brasileira. Trata-se mais de uma responsabilização moral do que uma constatação de que em nossa formação social capitalista raça e gênero organizam as relações de dominação e a distribuição do poder político. Foi o caso, por exemplo, das fotos da “posse” de Michel Temer e de seu ministério, formado por homens brancos, que circularam nas redes sociais: um atestado de que os que usurparam o poder, além de golpistas, são racistas e sexistas. Raça e gênero estão organizados no modo de produção capitalista e fazem parte deste como totalidade histórica e social. Logo, não são apenas formações culturais e ideológicas stricto sensu, pois conseguem, ao mesmo tempo, se constituir como relação intersubjetiva e se traduzir em distribuição desigual de riqueza e poder. O que a foto revela é mais que um episódio isolado: é todo um projeto político que se expressa numa tentativa de restauração colonial.
A esquerda se perdeu no labirinto das análises economicistas. A potência social do capital financeiro e da revolução técnico-científica não foi interpretada em sua complexidade ideológica e cultural. Depois de anos de neoliberalismo do PSDB, o governo do PT apostou numa espécie de “coexistência pacífica” entre o capital financeiro e o produtivo, entendendo-os como duas esferas dissociadas dentro do arranjo produtivo capitalista. Em parte, esse arranjo político deu certo ao promover a erradicação da pobreza extrema, a valorização real do salário mínimo, o fortalecimento do consumo interno de massas e de setores da indústria (revertendo parte do processo de desindustrialização do país) e o avanço de políticas sociais, educacionais e culturais. Destaco como a principal reforma do período do lulo-petismo no poder a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério. Foi uma medida que apontou concretamente para uma descolonização do Estado brasileiro, por mais que tenha se mantido nos limites deste.
Esse ciclo virtuoso de desenvolvimento – num momento de alta do valor das commodities no mercado internacional –, porém, feneceu ante as contradições de uma economia, um Estado e uma elite política que se estruturam de acordo com um modus operandi neocolonial. O fortalecimento do complexo do agronegócio, a expansão do individualismo com o incremento do consumo e o fortalecimento de uma direita politicamente conservadora (em torno de temas como aborto, direitos dos LGBTTs, negros e mulheres) contribuíram para o desmanche da experiência petista no poder.
Não obstante uma aparente maior permeabilidade aos “de baixo” e subalternizados, nos ciclos de modernização da sociedade brasileira as modificações na estrutura e nos arranjos institucionais mantêm com uma força quase inercial as estratificações de raça, gênero e classe. Não haverá superação do racismo – como uma relação de poder – sem a reforma das instituições. E essas reformas não são alcançadas – pelo menos em países de economia periférica como o Brasil – sem choro e ranger de dentes e muita luta social.
A estratégia de uma integração pactuada com as elites – o condomínio bizarro que abrigaria casa-grande e senzala – sucumbiu à força ascendente do conservadorismo, mas também à resistência da esquerda no poder em fazer as reformas de base e institucionais vitais ao enraizamento de um projeto popular em nosso país. A estratégia que mobilizou as forças democráticas e progressistas nos anos 1980 e 1990 calcava-se no duplo objetivo de reformar o Estado, tanto para reduzir sua pressão penalista (e hoje temos uma das maiores populações carcerárias do mundo) como para introduzir reformas que o equipassem no combate ao racismo (políticas públicas). Em linhas gerais, a Constituição Cidadã de 1988 consagrava a ideia de “mais Estado social, menos Estado penal”, mesmo que mantivesse intocadas estruturas, como a da polícia militar, herdadas da ditadura e mantidas sob a democracia.
No ciclo dos governos petistas – governos democráticos e referendados pelo voto popular (ao contrário do atual regime de Temer) –, observou-se um exponencial aumento do encarceramento, o genocídio do povo negro e a morte das mulheres negras em abortos clandestinos. De quebra, vimos atônitos a aprovação de uma Lei Antiterror, dispositivo tão vago e amplo que pode contribuir em tempos de golpe para pôr na cadeia militantes e ativistas. Essas seguidas violações dos direitos humanos foram tratadas como efeitos colaterais de um presidencialismo de coalização e como meios de garantir a governabilidade para a aprovação de projetos mais importantes (como a Lei dos Transgênicos e o Código Florestal, diga-se de passagem!).
Isso porque a experiência de esquerda no governo se esquivou das articulações entre capital financeiro, industrial, agrícola e comercial, assim como do papel da revolução técnico-científica, dos meios de comunicação, do marketing e da internet na conformação das subjetividades e seus impactos sobre a organização de classe em economias de capitalismo periférico como o Brasil. O capitalismo é cultura do capitalismo, ou seja, disputa valores que moldam os indivíduos de acordo com seus princípios da justificativa da exploração do trabalho, do capital como limite histórico, da competição exacerbada em torno do dinheiro e do lucro, do consumo como realização plena da felicidade humana e do salve-se quem puder.
Em economias de capitalismo periférico e burguesia dependente da burguesia (e a ela associada) dos países centrais, não se fizeram reformas clássicas, como a universalização do acesso à educação, saúde, reforma agrária e urbana (algo que Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Caio Prado Júnior descreveram muito bem). Porém, há um aspecto estruturante das relações de classe nesses países: raça e gênero. A escravidão nos legou o racismo como prática social dominante que liga ideologicamente os “brancos”, mantendo seus privilégios, enquanto a cidadania é negada aos negros e negras. O patriarcado une os homens de maneira semelhante, ao invisibilizar e silenciar as mulheres da construção política e da historicidade das relações de capital e trabalho. Racismo e sexismo justificam a violência do Estado, ao mesmo tempo que se afirmam mitos como a “democracia racial”.
Não podemos relegar essas questões ao rótulo das “identidades”. Racismo e sexismo se articulam como relação de poder na dinâmica do capitalismo contemporâneo, em que o capital financeiro exerce uma força de atração em relação às demais esferas de produção econômica. Hoje devemos observar o papel da disseminação de padrões de consumo, da criação de novas subjetividades e das redes sociais como meios de propagação do ódio e da intolerância contra grupos sociais considerados minoritários. Marx já ensinava que capitalismo não é só relação econômica. É um conjunto de determinações ideológicas, jurídicas, administrativas e culturais. A direita conservadora – núcleo ideológico do bloco golpista – soube tirar proveito dessas novas condições objetivas e subjetivas – agravadas pela crise da economia brasileira e pelo estelionato eleitoral de Dilma Rousseff em 2014 – para se articular de maneira inédita.
Racismo, misoginia, homofobia e que tais foram mobilizados de forma inédita por uma direita militante e agressiva que fez das redes sociais seu principal espaço de difusão de ideias e valores abertamente protofascistas. O estranhamento diante dessa situação pela esquerda social e política deve-se ao desconhecimento do caráter extremamente colonizador das elites brasileiras e à força dessas ideias e valores pelo corpo social, inclusive entre os mais pobres.
Vivemos um processo pós-golpe, em que se opõem diferentes narrativas sobre a debacle dos sujeitos que rivalizavam na Nova República. Os novos acontecimentos em torno da Operação Lava Jato indicam que há uma disputa no interior do bloco golpista que é mais que um simples conflito de interesses difusos, mas que começa a assumir a feição de uma crise de hegemonia no sentido gramsciano. O Supremo Tribunal Federal (STF), os grandes meios de comunicação e a direita política e social, como frações do poder dominante, disputam quem irá hegemonizar o sistema político. Todos estes falam em nome da democracia, dizem representar os interesses mais democráticos e querer preservá-la da corrupção. Apesar das diferenças entre essas diversas frações do bloco golpista, há uma unidade estratégica – eu diria recolonizadora – no sentido da “normalização” da política e da sociedade. Em meio ao aparente caos e espetacularização da política, há um projeto de futuro que une esses grupos: um sistema político dominado pela técnico-plutocracia, pelo Estado social mínimo e pelo aumento do Estado penal. Contrarreforma política, PEC 55 e as reformas da Previdência e trabalhista colocam como horizonte um país de eleitos, homens ricos, soberanos de uma sociedade normalizada pela violência e por seus códigos de exclusão social e cultural. O mito de uma nova conquista, de um novo saque e dominação colonial anima o bloco golpista, que rivaliza entre si, como uma encenação pública, para deixar de fora os subalternizados e “desterrados da terra”.
Não é uma operação simples. Nenhum regime político se estabelece apenas com base na anarquia e em medidas de força. Em determinado momento ele precisa apontar para uma saída de conjunto, algo que as forças do bloco golpista têm dificuldade em apresentar. Por outro lado, as projeções da economia não são favoráveis a uma retomada do crescimento econômico em 2017. O próprio governo Temer baixou de 1,6% para 1% a previsão de crescimento do PIB para 2017 (uma taxa de crescimento medíocre). Não vejo condições de um contragolpe a curto prazo, mas as dificuldades do bloco golpista diante de uma economia em crise colocam condições para algum nível de avanço das forças políticas contra-hegemônicas.
Estas operam, contudo, com alguma dificuldade em estabelecer ações comuns diante de um ambiente tumultuado e incerto. Além da dificuldade em estabelecer quais seriam os marcos de uma “reinvenção da esquerda” e como integrar gênero e raça na análise da luta de classes no Brasil, predominam concepções vanguardistas da luta social mais ou menos requentadas em diagnósticos de classe temperados de economicismo. A desconstrução do bloco golpista só é possível nos marcos da luta de massas, em especial reocupando os espaços das periferias das grandes e médias cidades brasileiras, onde a população negra é majoritária e recebe as posições de trabalho mais precarizadas. São nesses territórios negros e periféricos que a força do capital e do Estado fincam suas mais perversas raízes. Porém, são nesses territórios que surgem expressões de resistência cultural e política, sobretudo por parte da juventude, que consegue construir experiências de sociabilidade e luta alternativas e descolonizadoras, em face de um poder cada vez mais vil e agressivo contra as comunidades e populações negras.
*Fábio Nogueira é doutor em Sociologia (USP), professor da Uneb e militante do Círculo Palmarino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.