Grupos católicos conservadores ao redor do mundo realizam um movimento significativo: idolatram o agora presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, enquanto aprofundam seus ataques indiretos e diretos ao Papa Francisco, com virulência cada dia maior. Para isso, utilizam publicações, sites, blogs, numa rede que reúne leigos, leigas e clérigos. A Igreja, na concepção deles, fala pela voz do cardeal que se apresenta como face pública da oposição, Raymond Burke.
Nos últimos dias, os “contra” realizaram dois movimentos significativos, um que explicita ainda mais sua oposição pública e agressiva contra Francisco e outro que indica uma articulação destes grupos com a extrema direita alinhada a Trump na Europa: 1) pregaram cartazes ofensivos ao Papa em vários bairros de Roma, de maneira clandestina, mas cujo conteúdo de ataques a recentes decisões do Papa na Ordem de Malta e contra a corrupção em institutos e católicos; 2) o cardeal Burke manteve na última quinta (2) uma discreta e longa reunião com Matteo Salvini, líder da Liga Norte, partido de extrema direita xenófobo italiano, que antagoniza-se abertamente com o Papa e é um dos aliados preferenciais de Trump na Europa.
O júbilo destes grupos com a eleição de Trump está vinculado a dois eixos do novo governo:
- “Defesa da vida” – sob esta expressão que é chave para o governo Trump e os conservadores cristãos está toda a gama de pensamento e iniciativas de fundo “moralizador”, como a negação ao direito de as mulheres poderem abortar; a defesa da mulher “bela, recatada e do lar”; discriminação agressiva contra qualquer relação homoafetiva e negação dos direitos das pessoas homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis; censura a qualquer iniciativa educacional que não veículos os valores de uma suposta “moral cristã”.
- Supremacia cristã contra “infiéis”, um dos bordões de Trump. Esta bandeira tem levado tais grupos a manifestarem apoio às medidas do republicano contra os refugiados. A reunião de Burke com Salvini indica uma adesão pública e uma articulação política cada vez maior destes grupos com os políticos de direita xenófobos. A lógica da “supremacia cristã” representa um deslocamento amplo dos conservadores católicos que, com a perda de espaço da Igreja ao longo da segunda metade do século XX, estão aos poucos abandonando o projeto de hegemonia católica, hoje completamente irrealizável, e substituindo pela ideia da hegemonia “cristã” em aliança com os evangélicos fundamentalistas, tendo como plataforma comum a cruzada moralizadora e discriminatória. É curioso que os conservadores defendem o “ecumenismo moralizador” sob a liderança do presbiteriano Trump enquanto hostilizam as iniciativas ecumênicas de Francisco na direção dos luteranos, por exemplo, considerando-as como uma “rendição” ao pensamento de Lutero.
A mais recente onda de euforia com Trump deveu-se ao anúncio do nome de Neil Gorsuch para a Suprema Corte dos EUA. “Trump nomeia o pró-vida Trump Neil Gorsuch para a Suprema Corte” – esta foi a manchete do site do site católico ultraconservador estadunidense LifeSiteNews (algo como “site de notícias sobre a vida”) cujo moto é uma campanha continuada e feroz contra o direito ao aborto e todo elenco de bandeiras moralizadoras. A manchete deu o tom da cobertura de todos os sites conservadores católicos, e encontrou sua versão “tropicalizada” numa campanha de assinaturas lançada por conservadores a favor da indicação ao STF de Ives Gandra Martins Filho, atual presidente do TST e membro da Opus Dei, afinal derrotado por pelo ministro da Justiça de extrema direita, Alexandre de Moraes. Um dos líderes da campanha pró Gandra foi o padre ultraconservador Paulo Ricardo –que tem mais de 1,3 milhão de seguidores no Facebook- que espalhou um texto “recorta-e-cola” inspirado na campanha de Trump: “Ives Gandra Filho parece ostentar apenas um ‘defeito’: pensar como a maioria dos brasileiros pensa. Sim, porque, independentemente da religião a que pertençam, a verdade é que a maior parte dos brasileiros é contrária ao aborto, é contrária ao divórcio, é contrária ao casamento gay, ao mesmo tempo em que é a favor da vida, a favor da família e a favor do casamento monogâmico natural. Com a nomeação de Ives Gandra para o Supremo, finalmente teríamos, na mais alta instância do Poder Judiciário, um ministro de identidade cristã, capaz de falar diretamente aos cidadãos de bem de nosso país.”
A adesão dos grupos católicos conservadores a Trump cresceu desde sua vitória em novembro e chegou à beira da idolatria a partir da posse em janeiro. “Seremos protegidos por Deus”, este trecho do discurso Trump foi o escolhido pelo site espanhol InfoCatólica para título da reportagem sobre a posse do novo presidente e todo vazado em torno das referências a Deus e ao desejo de supremacia americana (branca e cristã) e deu o tom da cobertura dessas mídias ao redor do mundo. A celebração destes grupos tem a mesma lógica dos evangélicos fundamentalistas nos EUA e mundo adentro: “Deus está no poder”. Pode parecer espantoso, mas foram estes os termos usados no editorial assinado por Steve Jalsevac, fundador e presidente do LifeSiteNews sobre a posse do republicano: “Trump traz Deus de volta ao governo federal após longa ausência”; no Brasil, o padre Augusto Bezerra, um dos braços direitos do arcebispo do Rio, Orani Tempesta, comemorou assim em sua página no Facebook e no seu blog: “Cristãos de volta ao topo da pirâmide internacional para desfazer o trabalho sujo do materialismo ateu e de toda espécie progressista”.
A contraface da idolatria a Trump é a maneira como estes grupos católicos tratam o Papa Francisco e a explícita oposição entre a figura de um e outro. “Com a vitória de Trump, tornar-se- á o Papa Bergoglio o líder da esquerda internacional?” foi o título de artigo publicado pelo italiano Il Tempo, de autoria de Roberto de Mattei, presidente da ultraconservadora Fundação Lepanto e diretor da agência Corrispondenza romana –o texto foi rapidamente distribuído na Internet pelos rigoristas. Não é diferente no Brasil, onde o site ultraconservador Fratres in Unum , celebrou assim eleição americana: “Vitória de Trump, derrota de Francisco”, para no corpo do texto explicitar: “Francisco está na contramão do povo, na contramão da realidade. Que os bispos acordem. Se eles continuarem na mesma estrada, acabarão deixando a Igreja como apêndice da história, e eles mesmos se tornarão cada dia mais inócuos, distantes dos fiéis e emudecidos pela vida. É, hoje deve ser um dia difícil em Roma. Deus salve a América!”.
Logo depois da posse de Trump, um grupo de católicos ultraconservadores enviou uma carta a ele com ataques violentos a Francisco e solicitando uma “investigação” sobre as relações entre o Vaticano e o governo Obama. O texto explicita a posição xenófoba conservadora: “Durante a campanha presidencial de 2016, ficamos atônitos ao testemunhar o Papa Francisco atuando contra as políticas propostas para proteger nossas fronteiras, chegando mesmo a sugerir que você não é um cristão. Apreciamos sua resposta rápida e pontual a essa acusação vergonhosa.”
Os conservadores estão particularmente indignados com a recente intervenção do Papa na Ordem de Malta e contra a ordem dos Franciscanos da Imaculada, organizações onde aconteceu de tudo e mais um pouco, de desmandos a desvios e corrupção. Adicionalmente, os cartazes são mais uma tentativa de tornar o cardeal Burke, não acidentalmente patrono da Ordem de Malta, numa “vítima”. Foram estes os motos dos cartazes contra o Papa no fim de semana em Roma que, sob a foto de um Francisco aparentemente mal humorado estampavam o texto (em parte escrito no dialeto Romanesco): “France, interditaste congregações, afastaste sacerdotes, decapitaste a Ordem de Malta e os franciscanos da Imaculada, ignoraste cardeais… mas onde está a tua misericórdia?”.
Pouco a pouco os “contra” vão deixando claro que os ataques à carta Amoris Latetitia do Papa, que abre a comunhão dos divorciados em segunda união, guarda pouca relação com o tema em si e sua preocupação com os casais e prende-se cada vez mais ao inconformismo com a perda do poder na hierarquia da Igreja, depois de 35 de hegemonia. Os conservadores deixam escapar aqui e ali que sua preocupação verdadeira é com as mudanças nos postos chave da Cúria romana e com a nomeação de cardeais e bispos que não rezam a cartilha rigorista. Temem que depois de Francisco venha outro Francisco.
Não deixa de ser irônico que eles, que governaram a Cúria e, dela, o catolicismo global com base em excomunhões, censuras, silêncios e terror, agora usem estas palavras para qualificar a primavera da Igreja. É a clássica estratégia da inversão, utilizada pelos autoritários e moralizadores ao longo da história, habilidade levada à culminância na ascensão do nazismo na Alemanha.
Os conservadores plantam um cisma na Igreja, mas acusam o Papa de “cismático”; recorrem a ameaças de toda ordem, mas dizem que Francisco é “autoritário”; defendem os poderosos, as guerras e os massacres contra os pobres mas afirmam que Bergoglio é “contra a vida”; acobertaram e defenderam os pedófilos na Igreja por décadas mas agora dizem que o Papa é “imoral” e “leniente” com eles; malbarataram os recursos financeiros da Igreja, tomando-os para si próprios, para “la dolce vita”, para financiar projetos megalomaníacos deles e seus apaniguados e agora afirmam que há “corrupção”. São monarquistas até a raiz do cabelo e agora apontam o dedo contra Francisco com a acusação de ele agir como um “soberano”, um “rei”.
Há um “lapso narrativo” no discurso conservador corrente, pois um de seus apelos sempre foi o da obediência canina ao Papa como um dogma, similar ao da “virgindade perpétua” de Maria. Agora já se sabe que o dogma só é válido quando o bispo de Roma é um da turma.
A digital dos conservadores ficou patente na reação à iniciativa difamatória do fim de semana contra o Papa. Roberto de Mattei, da Fundação Lepanto, ecoou o texto dos cartazes num artigo que encerrou assim: “’Misericórida, misericórdia, quanta violência se exerce em seu nome!’, poderiam repetir as vítimas do pontificado da misericórdia”. O título do blog A cegonha da Torre, no Infovaticana, foi na mesma linha: “A que o Papa armou se volta contra ele. Muitos cartazes críticos em Roma”. O tema de ambos não eram os refugiados ou os pobres: as “vítimas” são os poderosos da Ordem de Malta e dos grupos rigoristas.
Terão sucesso em sua campanha cujo objetivo, aclara-se a cada dia, é derrubar Francisco? Há visões distintas, de acordo com a posição do analista. Bispos e vaticanistas conservadores alardeiam que são majoritários entre os cardeais. Os que estão com Francisco tendem a menosprezar os “contra”, mas já reconhecem sua força crescente, como o fez recentemente o padre argentino Carlos María Galli, membro da Comissão Teológica Internacional. Ele afirmou que a os conservadores representam uma “oposição minoritária, porém crescente”, capaz de fazer “muito barulho” (aqui).
O fato é que os conservadores são poderosos, articulam-se com o poder econômico e político, têm uma vasta rede midiática e estão nervosos, agressivos, enraivecidos.
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