"Estado e proprietário tornam-se interdependentes. Uma vez que, de um lado, o agente estatal produz a aparência de lei (o falso pacto de trabalho) e a violência física (aparentemente legítima) – necessários à reprodução das relações de produção classistas (escravista, servil, assalariada); e, de outro lado, os proprietários dos meios de produção social (senhor escravagista, patrão feudal, burguês capitalista) propiciam os recursos fiscais para o funcionamento do aparelho de Estado.
Em síntese, o movimento global interverte o governo de todo o povo em Estado escravagista, Estado senhorial, Estado burguês."
Análise dos professores Francisco Pereira de Farias, Unicamp-UFPI e Ferdinand Cavalcante Pereira, UFPI, publicado no Le Monde Dilpomatique Brasil, em 08 de fevereiro de 2017
O desenvolvimento do Estado burguês no Brasil
O ponto de partida da constituição do Estado burguês é o governo que se profissionaliza, tornando-se Estado, para defender os interesses comuns de uma coletividade advinda mais complexa, pela expansão e adensamento populacional, aumento de população este relacionado às inovações nas técnicas de trabalho; mas o surgimento do Estado produz consigo o germe da dominação, a defesa da divisão da sociedade em classes sociais. Pois a especialização e o caráter permanente das funções governativas, estabelecendo o monopólio das tarefas de liderança política, suscitam as normas que estabilizam não apenas a burocracia estatal, mas também a profissionalização do produtor de mercadorias e a divisão social do trabalho, determinando o direito de propriedade privada dos meios de produção e a legitimação da exploração do trabalho dos não proprietários de meios de produção: escravo, servo, trabalhador assalariado.
Estado e proprietário tornam-se interdependentes. Uma vez que, de um lado, o agente estatal produz a aparência de lei (o falso pacto de trabalho) e a violência física (aparentemente legítima) – necessários à reprodução das relações de produção classistas (escravista, servil, assalariada); e, de outro lado, os proprietários dos meios de produção social (senhor escravagista, patrão feudal, burguês capitalista) propiciam os recursos fiscais para o funcionamento do aparelho de Estado.
Em síntese, o movimento global interverte o governo de todo o povo em Estado escravagista, Estado senhorial, Estado burguês.
A revolução burguesa no Brasil, a partir da Abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), movimentou-se para o aniquilamento das raízes não burguesas de nossa formação social e a construção de nova sociabilidade, centrada no direito igualitário e o cosmopolitismo urbano – em substituição à sociabilidade (ou cordialidade) escravocrata, voltada aos privilégios do direito senhorial e o particularismo rural e familiar.1 O impulso à ordem burguesa (relacionada ao trabalho assalariado) veio das classes médias urbanas, que encontrou na revolta escrava o somatório de vetores para desencadear a revolução jurídico-política. A militância abolicionista de José do Patrocínio, jornalista da capital Rio de Janeiro, representou não só os desejos do escravo rural ou urbano em se emancipar, mas também as aspirações do funcionário de Estado ou do profissional liberal de expandir o seu consumo de bens manufaturados.2
A cordialidade igualitária tornava-se funcional aos valores e interesses da burguesia ascendente; inicialmente menos aos valores e interesses da fração industrial – que privilegiava o discurso de harmonia entre a agricultura tradicional e a indústria moderna, seja porque o industrial dependia de financiamento da economia agromercantil para introduzir novos meios de produção, seja por ele possuir uma origem social nas frações agrária ou mercantil –, e mais aos valores e interesses da classe do capital como um todo. Coube à categoria social dos militares, influenciada pelas pressões difusas das camadas médias urbanas e do proletariado recém-formado, defender um programa de industrialização, assentado na empresa de bens de produção e na exploração das riquezas naturais, como forma (aparente) de garantir o aparelhamento moderno-meritocrático das forças armadas, em correspondência às exigências do igualitarismo jurídico, mas cujo conteúdo (latente) dizia respeito a completar as bases da acumulação de capital.
Curiosa aproximação de capitalismo e estatismo, uma vez que a filosofia social inspiradora da burguesia industrial deplorava o “socialismo estatal”, pois interpretava o poder da burocracia de Estado como ameaça ao princípio da propriedade privada. No entanto, havia a influência da organização militar, valorizando o papel do Estado na economia para se chegar a um capitalismo autossustentado.
A revolução burguesa vai se especificar, numa primeira fase, pela construção do capitalismo de “democracia restrita”, em razão das articulações que o submetem: de um lado, nasce atrelado, via geração de divisas, ao setor agrário-mercantil tradicional (não capitalista); e, de outro, forma-se vinculado às polarizações de investimentos e força de trabalho no centro econômico nacional. Além disso, contribuem para os direitos sociais restritos as motivações políticas da burguesia: a) a suposição de que a expansão do mercado interno (com as melhorias dos sistemas de transportes e comunicações) tornaria possível resolver os problemas herdados do período agromercantil, como a baixa capacidade de arrecadação tributária do Estado nacional; b) a consideração de que as restrições do poder da “iniciativa privada industrial” e da “soberania” do Estado nacional seriam momentâneas, pois a integração do capitalismo nacional diluiria, por si mesma, as desvantagens do desenvolvimento capitalista desigual, tanto social quanto regionalmente; c) o medo de que uma aliança com a classe trabalhadora, possibilitando a reciprocidade de ganho de produtividade e ampliação dos direitos sociais, pudesse ensejar nesta o desejo consciente de mudança radical da ordem capitalista.3
Em 24 de agosto de 1954, o líder do Estado brasileiro, Getúlio Vargas, foi levado à atitude extrema do suicídio após um ultimato da cúpula militar para que renunciasse à Presidência da República – talvez por ter se dado conta que seu papel de coligar os interesses de todas as frações do capital havia se esgotado. De um lado, a economia agroexportadora, em especial o café, atingira um patamar tal de descenso que obrigava o Estado a agravar a taxação sobre o setor para manter a política de valorização de preços no mercado internacional. A solução mais eficiente era romper com o compromisso que evitava a revolução capitalista na agricultura e o seu aumento de produtividade. De outro lado, o próprio sucesso da política nacional-desenvolvimentista de introduzir o setor de bens de capital (siderurgia, petróleo, energia elétrica) propiciava as condições de a burguesia industrial almejar a conquista da hegemonia política; os quase dez anos que se seguiram à queda trágica de Getúlio e os governos de seus herdeiros foram tempos de preparação para isso, culminado com o movimento civil-militar que destituiu o presidente João Goulart em 1º de abril de 1964. O enredo trágico-cômico desse desfecho foi o presidente Goulart, que se acreditava o líder da maioria social, ver-se obrigado a fugir do país por seu apelo a essa maioria não ter tido ressonância.
A burguesia industrial conquistou a hegemonia política, mas não devia governar diretamente, sob pena de cair numa visão imediatista de seus interesses de fração de classe. Para isso a liderança dos industriais foi levada a aceitar que outro grupo social ocupasse a cúpula do aparelho estatal, que se tornava assim uma representação mais distanciada, para impor à maioria de membros da fração industrial uma política de longo prazo. A equipe econômica pôde, por exemplo, colocar em prática uma política de elevação das tarifas bancárias, impulsionando a competição e a concentração de capital no setor dos bancos, mas que resultava para a fração industrial numa melhor oferta de crédito em investimento.
O processo de concentração e centralização do capital nos vários setores da economia e a tendência à taxa decrescente de lucro daí resultante induziram as grandes empresas industriais e os grandes bancos a procurar uma saída de redução de custos com a formação dos conglomerados econômicos (a coexistência na mesma empresa das funções produtiva e de circulação). Assim, uma empresa industrial instituiu seu departamento de banco (Grupo Votorantim) ou o inverso se deu (Grupo Bradesco). Mas a formação do capital financeiro (banco + indústria) não anulou o conflito de frações no interior da classe dominante. Pois, por um lado, continuam a existir as empresas especializadas numa mesma função do capital (industrial, bancária, comercial) e, por outro, o conflito de frações subsiste no seio do próprio capital financeiro. Assim, enquanto um grupo econômico pode ganhar como banco, pode perder como indústria.
O agronegócio também se estabelece a partir de conglomerados econômicos, através de duas frentes: pelo capital produtivo, advindo das commodities; e pela sua associação com o capital monetário, manifesta nos empréstimos para os pequenos e médios produtores modernizados. A atuação do agronegócio nos cerrados brasileiros foi responsável pela modernização capitalista das relações de produção e do estatuto da propriedade na agricultura (mesmo se com a incorporação ilegal de terras públicas e trabalho escravo), combinada com fortes impactos ambientais. Talvez isto ilustre o significativo crescimento e a alta rentabilidade desse setor econômico durante os governos do pós-1964, que adotaram uma forte política agroindustrial em detrimento de políticas de proteção ambiental.
Mas a necessidade em alavancar recursos para a expansão da atividade econômica em outro setor trouxe também a modificação no estatuto da propriedade, que de empresa familiar tendeu a tornar-se um grupo de acionistas. Ora, do ponto de vista desses investidores pouco importa de qual fonte na empresa provirá a maior lucratividade de seu recurso, se da atividade produtiva ou se da função monetária. Em pouco tempo os diretores dos grupos de capital financeiro foram levados à sagacidade de acentuar o braço de comerciante de dinheiro, transformando os acionistas em verdadeiros rentistas.
O grande capital financeiro está melhor posicionado para absorver a inovação técnica, dada a sua capacidade de racionalizar os custos. No entanto, por efeito do desemprego tecnológico acentuado nesse setor do grande capital, o Estado estará obrigado a despender mais gastos em políticas sociais compensatórias, seja em medidas de seguro-desemprego, seja em programas de proteção social aos trabalhadores que irão para o setor precarizado do trabalho sob o domínio do médio capital. De onde sairão as novas receitas do aparelho estatal? Dados os limites políticos de elevação da carga tributária, os agentes estatais recorrerão ao endividamento, sob a forma de títulos de longo prazo com elevadas taxas de juros, e atrairão do braço monetário dos grupos econômicos os recursos necessitados. Estão assim estabelecidas, em traços largos, as bases da probabilidade à interdependência entre a política do Estado e os interesses do capital financeiro.
O neodesenvolvimentismo do governo Dilma
O primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2015) veio concretizar a hegemonia política do capital financeiro com dominante industrial, em aliança com a classe trabalhadora assalariada. A política econômica do Estado beneficiava prevalentemente o grande capital industrial e gerava um acréscimo na taxa de mais-valor que podia ser redistribuído para a ampliação da reprodução da força de trabalho.
O intervencionismo adotado pela equipe econômica do governo incidiu no investimento produtivo por meio do Programa de Aceleração do Crescimento, que focava em obras de infraestrutura (portos, aeroportos, estradas, fontes de energia), e por meio das desonerações fiscais e previdenciárias, crédito subsidiado dos bancos estatais, redução de taxa de juros e barateamento de preços de insumos às empresas industriais. Tais medidas ensejaram o aumento da rentabilidade do capital industrial e estimularam os ganhos de produtividade pela adoção de novas tecnologias.
O segmento de bancos do capital financeiro não se sentiu contemplado com a política industrial do governo, porque continha as linhas da redução da taxa de juros ao crédito de investimento e da isenção fiscal das empresas. Os representantes dos banqueiros reagiram a essas medidas governamentais, sob os argumentos de que se chocavam com a meta de controle da inflação da moeda e levariam ao sobreaquecimento da demanda efetiva. Ao final dessas manifestações, embora continuassem a se beneficiar com a bancarização de contingentes da classe assalariada que ascendiam materialmente no período, os bancos estavam na oposição ao governo.
As aspirações conscientes da coalisão governamental que deslocou a hegemonia política para o setor industrial do capital financeiro foram expressas num conjunto de diretrizes, chamado de Nova Matriz Econômica. A NME indicava (a) afrouxar o controle sobre a política monetária; (b) reforçar o incentivo ao investimento privado; (c) defender o crescimento do mercado interno.4 O resultado da NME foi abrir novas frentes de expansão ao investimento produtivo, especialmente na construção da infraestrutura das atividades econômicas.
No entanto, apesar de o governo sustentar a hegemonia do setor industrial, os representantes diretos dessa fração de classe transitaram para a postura de não fazer a defesa do governo diante das críticas do setor bancário. É que os representantes industriais intuíam, mas de maneira distorcida, a possibilidade de o governo adotar uma política bonapartista, ou seja, passar a exigir sacrifícios de todas as frações do capital para garantir o crescimento econômico. Assim, identificavam no “lulismo” (o crescimento econômico com a ampliação de direitos sociais) da presidenta Dilma o fantasma de Getúlio Vargas. O que o governo pedia, na substância, era que os industriais abrissem mão de interesse imediato (a desregulamentação das relações de trabalho) em prol de seu interesse de longo prazo (a preponderância econômica).
A exceção dentro da fração industrial se refere à conduta do setor do agronegócio que tendo continuado na coalisão do segundo governo Dilma apostou numa reversão da crise política até o momento final do impeachment e tinha na defesa dos seus interesses a representante Kátia Abreu (PMDB), empresária pecuarista e ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Talvez venha ao caso a distinção de interesses, já apontada pelo historiador Caio Prado Júnior, entre os comerciantes da agroexportação e os proprietários produtores. Ora, a política econômica impactou favoravelmente aos interesses dos produtores agrícolas. Além disso, o agronegócio talvez se sentisse em condições de arcar com os custos da política salarial, dada a tática do setor de grilagem de terras.
O início do segundo governo Dilma, em 2015, deu-se com a acirrada disputa entre a fração industrial e a fração banqueira no interior do capital financeiro, mobilizando os respectivos representantes políticos e partidários. De um lado, os agentes políticos ligados ao circuito produtivo sustentavam a prioridade de política econômica voltada ao investimento estatal e ao fortalecimento do mercado de consumo. De outro lado, os representantes políticos conectados à circulação do dinheiro dão ênfase à estabilidade da moeda e à reorganização institucional do comércio monetário.
A crise política
A política governamental de alavancar o investimento produtivo por meio do financiamento estatal provocou a reação dos bancos privados, que se opuseram em especial às medidas de redução da taxa de juros; e não obteve o apoio ativo da fração industrial, pelo receio de o governo vir a colocar em prática medidas “populistas” (bonapartistas). O governo viu-se então em dificuldades, pois, por um lado, as altas taxas consomem boa parte do orçamento estatal com o pagamento dos juros da dívida pública e, por outro, os novos investimentos produtivos tornam-se menos atrativos, induzindo as empresas industriais a aplicarem os recursos no sistema monetário, cuja rentabilidade vem elevada.
Como então expandir a empregabilidade produtiva, aumentar a capacidade extrativa do Estado e ampliar os serviços governamentais à reprodução da força de trabalho? Ficou difícil diante da resistência política do capital-dinheiro. Assim, o sistema monetário gerará mais dinheiro de modo fictício, fazendo a economia da materialização do circuito produtivo. Torna-se compreensível que o excesso em dinheiro-moeda provocará sua subvalorização.
O enfoque dos representantes políticos do capitalismo financeiro com dominante monetária será o de resolver o problema da instabilidade do dinheiro-moeda por meio de uma política de redução de custos das empresas, como forma de elevar a produtividade dos capitais, buscando readequar a defasagem de esfera monetária e base material da economia. A receita para o grande capital serão as medidas de combinar a inovação técnica com a desregulamentação das relações de trabalho; privatizar as empresas estatais lucrativas; desregulamentar a circulação de mercadorias e de dinheiro.
Cabe então apontar que em boa medida as pressões do capital financeiro com dominante monetária e seus principais representantes partidários (PSDB e parte do PMDB) induziram o governo Dilma, no início do segundo mandato em 2015, a adotar a política do ajuste fiscal, numa tentativa de recuo provisório em sua linha política mais geral do intervencionismo estatal. A concretização dessa política de “um passo atrás e dois passos à frente” ficou a cargo do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um representante direto dos bancos privados.
Disso decorreram tensões no interior da coalizão governante sobre os custos regressivos desse desvio na política do crescimento econômico. Setores empresariais e sindicais, bem como lideranças partidárias passaram a manifestar os descontentamentos com os efeitos das medidas contencionistas dos gastos governamentais e os riscos de uma recessão econômica. A associação patronal dos industriais, Fiesp, passou à posição de ruptura com a coalisão governante. A representação sindical dos trabalhadores, CUT, adotou a postura de aliada crítica do governo. A mudança do ministro da Fazenda, de Levy (orientação liberal) para Nelson Barbosa (pensamento desenvolvimentista), não foi suficiente para produzir um conjunto de medidas reaglutinadoras da frente social e política neodesenvolvimentista.
Por sua vez, a coalizão de oposição tomou a iniciativa de combinar a tática do desgaste político das forças governantes por meio do tema da “corrupção” (clientelismo político) com a proposta de impedimento da presidenta a pretexto de desvios administrativos. Ter encontrado dentro do PMDB um grupo que, por motivações partidárias (carreiras políticas) ou pessoais (envolvimentos ilícitos), estava disposto a romper com a coligação governante foi o catalizador do golpe palaciano.
Em 2016, a cena política veio marcada pelas tensões entre os segmentos do grande capital, competidores pela influência política, e também pela disputa dos partidos principais no seio da coalisão governante (PT, PMDB), visando a ocupação do aparelho de Estado. Esse segundo aspecto da competição política vem expresso por meio da rivalidade entre Presidência da República e Presidência da Câmara dos Deputados, quando um ramo estatal passou a acusar o outro de práticas desviantes face às regras administrativas e eleitorais.
O ápice da crise será a presidenta, ex-guerrilheira, presa e torturada no período do regime militar, sofrer impeachment em 31 de agosto de 2016, sob a acusação de desvio administrativo, num processo movido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), político profissional carreirista, que semanas depois terá o seu mandato suspenso por investigação de crime de desvio pessoal de recursos, em tese, partidários. Mas o ponto máximo da encenação macunaímica dessa crise política foi a presidenta ter sido condenada, sob a audiência de rede nacional de televisão, por desvio de responsabilidade administrativa e, em seguida, ver assegurados os seus direitos políticos.
Assumiu a Presidência da República o vice Michel Temer (PMDB), que parece encarnar todas as virtudes negativas do líder político: traiçoeiro, sem linha programática, bacharelesco, sensualista. Talvez nunca na história da República do Brasil um dirigente tenha dado tantos motivos para gracejos no grande número da população.
Em resumo, o Estado burguês no Brasil desenvolveu-se do momento inicial, sob a hegemonia do capital mercantil, para os dias de hoje, com a hegemonia da burguesia financeira – por determinações de guerra (a Revolução de 1930) e de disputas políticas (o golpe palaciano de 1954, o golpe institucional-palaciano de 1964, o novo golpe palaciano de 2016). O percurso modificou, porém, o estatuto dos papeis encenados; da personagem heroica, para cujas práticas tornava-se eficaz a narrativa épica, passamos ao herói problemático, por quem vem adequada a exposição trágico-cômica, e finalmente chegamos ao anti-herói (o usurpador do poder político).
Interpretações e perspectivas da crise do Estado democrático
Carlos Lessa apontou como significado principal da crise política atual no Brasil o fato de ser uma derivação da crise econômica mundial do capitalismo.5 Em outros termos, tratou-se da tentativa dos governos dos países centrais, especialmente Estados Unidos e Alemanha, em impor sacrifícios aos governos dos países periféricos ou semiperiféricos, a fim de fortalecer a recuperação de suas economias dos efeitos da crise monetária internacional. No caso brasileiro, um dos pontos sensíveis dessa política internacional dominante vem ser a quebra do monopólio estatal do petróleo.
É verdade que no plano das relações internacionais, os agentes políticos principais tendem a ser os governos dos países. Mas esses governos agem em boa medida em defesa dos interesses das empresas de suas nacionalidades, os capitais nativos. São poucas as empresas que têm uma característica transnacional, ou seja, de coexistência jurisdicional de múltiplas nacionalidades, empresas que dariam base ao discurso da “globalização” econômica.6
A busca de interesses pelos governos centrais provoca uma divisão nas classes dominantes periféricas ou semiperiféricas. De um lado, há setores que, pela sua inserção direta nos capitais externos (filiais de multinacionais, comércio de exportação\importação, empresas montadoras de produtos importados etc.), tendem sustentar os interesses estrangeiros no país. A sociologia denomina esses setores de capitais associados ou burguesia associada. De outro lado, tem-se os setores que, por possuírem uma base interna (produção, mercado) de acumulação de capital mas ainda dependerem em aspectos importantes (tecnologia, recursos monetários) dos capitais externos, costumam posicionar-se de modo seletivo diante dos interesses estrangeiros, ora contrapondo-se, ora os apoiando. Esses setores da classe dominante capitalista são chamados de burguesia interna. Geralmente esta não tem disposição de assumir uma postura nacionalista, ou seja, um enfrentamento global aos interesses dos grandes capitais externos. Caberá, então, ao médio capital desenvolver a dupla expectativa de uma política anti-imperialista e uma política anti-oligopolista.
Ora, no Brasil atual ocorre uma acirrada disputa entre o grande capital e o médio capital. O grande capital não está disposto a assumir uma participação maior nas tarifas de impostos, e com isso aliviar os custos para o médio capital com os gastos de política social. Mas o médio capital dispõe de forte recurso de barganha, que é a capacidade de absorver o contingente de força de trabalho no curto prazo e, assim, contribuir para a política de combate ao desemprego. É oportuno lembrar que a capacidade de endividamento desse setor do capital estaria no limite, e, se proposta, por exemplo, uma política de corte dos incentivos fiscais e creditícios ao grande capital e de transferência desses recursos para o capital não-oligopolístico, essa fração poderá, dentro do quadro da crise, transformar-se em importante força política.
Samuel Pinheiro Guimarães foi contundente sobre o significado da crise política: “o impeachment é o golpe de Estado do ‘mercado’”. Isto é, foi a manobra política encontrada pelo segmento dos banqueiros dentro do capital financeiro para fazer prevalecer sua lucratividade frente ao segmento industrial.
Em contraposição ao golpe político, Samuel Guimarães propõe:
“A ação política intensa junto aos movimentos populares, junto às organizações da sociedade civil, junto ao Congresso, junto à Administração Pública e aos governadores, enfim, a mobilização da sociedade pelo seu esclarecimento e para a defesa da democracia em toda sua integridade.
Aqueles que defendem hoje o impeachment e criam o clima de instabilidade e de radicalização são os mesmos golpistas históricos de 1954 e de 1964: as classes privilegiadas que temem o progresso e os resultados da democracia e não os aceitam”.7
Aqueles que defendem hoje o impeachment e criam o clima de instabilidade e de radicalização são os mesmos golpistas históricos de 1954 e de 1964: as classes privilegiadas que temem o progresso e os resultados da democracia e não os aceitam”.7
Mas o debate de ideias não é suficiente para a mobilização política. Pois junto aos ideais estão os interesses, e muitas vezes no mundo político vencem não as orientações mais justas, mas sim as teses que melhor se utilizam dos interesses manifestos para concretizar as aspirações latentes de classes ou frações de classe. Luiz Carlos Prestes, o líder do Partido Comunista Brasileiro, lançou em 1945 a palavra de ordem de União Nacional, no contexto de disputa entre as economias agromercantil e industrial no Brasil, contribuindo a uma sobrevida à política nacional-desenvolvimentista (leia-se a conversão da burocracia civil-militar do Estado em força social defensora dos interesses institucionais-globais da burguesia brasileira), em troca do atendimento de reivindicações do movimento sindical não atrelado ao aparelho de Estado e em nome da revolução nacional-democrática. E, mais do que isso, Prestes reorientou a prática do PCB no momento que se encontrava preso por conta da oposição ao governo de Getúlio Vargas e depois de a polícia do governo getulista ter deportado sua companheira Olga Benário para morte.
É provável que o PT e o líder Luiz Inácio Lula da Silva estejam dispostos, como atores sociais, a alterar a auto-representação e a dinâmica de suas práticas na atual conjuntura política. Pois o reconhecimento e a congregação junto a novas forças no jogo político induzem à mudança programática e apresentam-se como os meios de recuperar a confiança da maioria social no regime democrático para o impulso e a concretização de suas aspirações.
Por fim, a título de reflexão e ampliação do debate sobre a análise esboçada, convém constatarmos que o modelo democrático atual, centrado no Estado burguês-liberal, tende a subestimar as práticas coletivas dos cidadãos.
A burguesia tende a patrocinar um padrão político-eleitoral de tipo individualizante. Essa classe social, pela condição de dominante, procura negar a existência do antagonismo de classes, e vê as formas de associativismo (sindicatos, partidos políticos) como os instrumentos dos indivíduos. Assim, para a classe capitalista, o deputado parlamentar será o representante do cidadão, não devendo subordinar-se às pressões nem sindicais, nem partidárias.
Convém à fração da burguesia alinhada com o programa neoliberal, especialmente no que diz respeito à política de desregulamentação dos direitos do trabalho, dar ênfase ao discurso da representação liberal. Pois assim torna-se legitimada a fragilização dos sindicatos dos trabalhadores na cena política.
O PSDB ascendeu ao poder, na década de 1990, num momento de transformação da socialdemocracia na Europa. Nos anos 1970, os partidos socialdemocratas, que até então eram mais ou menos partidos de representação de classe, estavam se transformando em partidos do tipo catch-all, de absorver tudo: em vez de buscar votos preferentemente na classe trabalhadora, estavam se dirigindo a todas as classes sociais para construir maioria eleitoral. Então, quando os analistas passaram a dizer que o PSDB não tinha uma base sindical, isso não era, aos olhos do partido, um problema.
Em contraposição, as revalorizações do associativismo e novas práticas coletivas podem expressar-se através de arranjos político-institucionais, que, sem serem incompatíveis com a democracia representativa, permitam a participação e a deliberação de opinião e de interesses, capazes de fazer frente ao poder econômico e ao poder burocrático.8 Esses novos arranjos postos à vida política vigente constituem uma condição para se ampliar o teor da representação, que tende a reemergir restrita ao voto individual e a interesses conservadores.
*Francisco Pereira de Farias é doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI); e Ferdinand Cavalcante Pereira é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPI.
1 Cf. Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 26ed., 1995.
2 Cf. Décio Saes. A formação do Estado burguês no Brasil. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1985.
3 Cf. Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
4 Cf. Pedro Paulo Zahluth Bastos. “Austeridade permanente? A crise global do capitalismo neoliberal e as alternativas no Brasil”. In: Belluzzo, L. G. & Bastos, P. Z. (orgs.). Austeridade para quem? Balanço e perspectivas do governo Dilma Rousseff. São Paulo: Carta Maior/Friedrich Ebert Stiftung, 2015.
5 Cf., por exemplo, http://www.cartacapital.com.br/revista/843/quem-lidera-5452.html.
6 Cf. Nicos Poulantzas. A internacionalização das relações capitalistas e o Estado-nação. In: As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
7 Cf. Samuel Pinheiro Guimarães. “Impeachment, golpe de Estado e ditadura de ‘mercado’”. In Belluzzo, L. G. & Bastos, P. Z. (orgs.). op.cit.
8 Cf. J. Habermas. “Três modelos normativos de democracia”. Lua Nova, n.36, p.39-53, 1995.
2 Cf. Décio Saes. A formação do Estado burguês no Brasil. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1985.
3 Cf. Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
4 Cf. Pedro Paulo Zahluth Bastos. “Austeridade permanente? A crise global do capitalismo neoliberal e as alternativas no Brasil”. In: Belluzzo, L. G. & Bastos, P. Z. (orgs.). Austeridade para quem? Balanço e perspectivas do governo Dilma Rousseff. São Paulo: Carta Maior/Friedrich Ebert Stiftung, 2015.
5 Cf., por exemplo, http://www.cartacapital.com.br/revista/843/quem-lidera-5452.html.
6 Cf. Nicos Poulantzas. A internacionalização das relações capitalistas e o Estado-nação. In: As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
7 Cf. Samuel Pinheiro Guimarães. “Impeachment, golpe de Estado e ditadura de ‘mercado’”. In Belluzzo, L. G. & Bastos, P. Z. (orgs.). op.cit.
8 Cf. J. Habermas. “Três modelos normativos de democracia”. Lua Nova, n.36, p.39-53, 1995.
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