terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A visita de um Prêmio Nobel da Paz que a grande mídia tendenciosa escondeu: Kailash Satyari
























Num país onde a ausência de um inédito Prêmio Nobel verde-amarelo alimenta
a baixa estima nacional, a visita de dez dias do engenheiro indiano
Kailash Satyarti, Prêmio Nobel da Paz de 2014, encerrada neste fim de semana, teve a
utilidade de comprovar o mau momento vivido pelos grandes jornais e revistas do país.


Recebido por repórteres de veículos interessados numa pauta única
— o impeachment de Dilma Rousseff —, Kailash teve poucas oportunidades de discutir o
assunto em que é uma autoridade internacional — o combate ao trabalho infantil, causa 
que lhe deu o Nobel, há dois anos. Em vez disso, "em todas as minhas entrevistas, 
o impeachment sempre estava entre as primeiras perguntas. E eu não tinha muito o que 
dizer a respeito, até porque nem sou membro do Congresso e sequer sou cidadão 
brasileiro"disse ao 247, momentos antes de embarcar para Roma, onde tinha uma 
audiência marcada com o Papa Francisco.

Em entrevistas no Recife, São Paulo e Brasília, Kailash defrontou-se com jornalistas
sem interesse real para tentar entender o que ele dizia e mais preocupados em transformar —
de qualquer maneira — o Prêmio Nobel em instrumento de ataque ao governo.

Num movimento selvagem para desconstruir as relações do governo Dilma como as parcelas
mais pobres da sociedade, hoje seu maior trunfo de sobrevivência política, a mídia grande
só ouviu o que queria ouvir. Mais tarde, ao perceber que o Nobel não iria entrar no jogo,
perdeu interesse pela visita.

"Em São Paulo eu disse que a atuação do Brasil contra o trabalho infantil era um
exemplo a ser seguido no mundo inteiro. Fiquei sabendo, no dia seguinte, que
interpretaram a frase no sentido invertido, como se eu tivesse criticado o governo brasileiro e
que não era um exemplo a ser seguido," conta o Nobel. "Claro que essa versão, errada,
foi a que ficou circulando por vários dias," afirma uma autoridade que acompanhou a visita
de perto.

Ativista contra o trabalho infantil num país onde a merenda escolar é uma novidade
relativamente recente — no Brasil, foi estabelecida em lei há meio século e é assegurada
pela Constituição de 1988 — Kailash começou a tomar contato com os programas sociais
brasileiros antes de Lula chegar ao Planalto. Em sua primeira visita ao país, conheceu o
Bolsa-Escola, lançado no Distrito Federal pelo então governador Cristovam Buarque, com
quem também se encontrou durante a visita. Em 2016, na sexta viagem ao Brasil, teve uma
audiência de mais de uma hora com  Dilma Rousseff, a quem sugeriu que o Brasil liderasse
uma conferência dos Brics — Brasil, Índia, China e África do Sul — contra o trabalho infantil.

Kailash manteve várias conversas com Tereza Campelo, titular do Ministério do
Desenvolvimento Social. Saiu de uma audiência com o ministro do Desenvolvimento Agrário,
Patrus Ananias, convencido de que os programas de assentamento e apoio à agricultura
familiar merece mais aplauso do que têm recebido até agora. Em São Paulo, Kailesh
reuniu-se com empresários do grupo Ethos que têm uma atuação destacada na defesa dos
direitos da criança, inclusive recusando-se a comprar produtos de empresas que
empregam mão de obra infantil. Também teve uma conversa de uma hora com estudantes
 que participaram da ocupação de escolas da rede pública.

Eu gostaria de saber como o senhor interpreta  os dados mais recentes 
sobre trabalho infantil, computados em 2014, que mostram um perfil diferente 
no Brasil. Hoje, 80% das crianças que trabalham têm 15 anos ou mais e 62% 
dos menores de 14 anos estão mobilizados na agricultura familiar. É uma situação
 muito diferente daquela que se via anos atrás.

Conheço esses números. Eles mostram uma mudança muito importante, num processo de
longa duração e que sempre  avançou na mesma direção. Vocês tiveram o Bolsa Escola do
governador Cristovam, que ajudou a atrair a criança para escolas. Depois, o Bolsa
Família do governo Lula, que representou um avanço importante. O governo Dilma ampliou
o Bolsa Família, não só pela geografia, mas também em outros aspectos. Também precisamos
lembrar que, comparando com outros países, o Brasil tem uma legislação que ajuda muito.

Por que?

O Brasil tem hoje a legislação mais progressista do mundo sobre trabalho infantil.
Para começar, o trabalho só é autorizado depois dos 16 anos. Nos outros países, como a
India, o limite é 14. A legislação brasileira protege a criança com exigências rigorosas, o
que facilita a ação de quem está interessado em punir abusos. É uma diferença importante,
pois outros países não tem nada parecido.  Os Estados Unidos sequer assinaram a
convenção  contra o trabalho infantil da Organização Internacional do Trabalho, o que 
significa que ali as crianças tem pouca proteção legal.

Além do Brasil, outros países possuem programas de distribuição de renda 
que ajudaram a manter a criança na escola. Como eles são?

Na Índia, por exemplo, o programa Mahtma Ghandi de Garantia de Emprego Rural
assegura às famílias das pequenas comunidades rurais pelo menos 120 dias de trabalho
por ano. Se não há emprego, elas recebem o equivalente em salário. Outro programa
assegura pelo menos uma refeição quente por dia a 130 milhões de crianças.

Em São Paulo, o senhor reuniu-se com estudantes que recentemente ocuparam
escolas públicas para exigir melhoria na qualidade do ensino. Qual sua 
avaliação dessa mobilização da juventude?

É um fenômeno muito positivo, que reflete o progresso ocorrido nos últimos anos.
Por causa do progresso social, os jovens passaram a comparecer a escola  com mais
frequência. Ao descobrir a importancia para a educação em suas vidas, passaram a se
preocupar com a qualidade do ensino. Estão certos. A qualidade de ensino, no Brasil, é
um desafio a ser enfrentado. Precisa melhorar. Não haverá progresso sustentável sem
progresso na educação. Essa é a chave. É positivo, portanto, que os jovens se mobilizem
 para colocar novos direitos e reivindicações. Querem participar mais, interferir mais. Seu
poder está emergindo. Eu acho muito bom. 

Até hoje, os programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família, têm 
adversários influentes nos meios de comunicação. É comum ouvir que esses 
programas estimulam a preguiça, acomodam as pessoas e no fim das contas 
acabam prejudicando o desenvolvimento do país.

É assim no mundo inteiro, inclusive na India. Essa crítica parte daquelas pessoas, que
representam uma pequena parcela de cada sociedade, que tem dinheiro, acesso a
educação, a Justiça. Elas imaginam que o progresso dos que nada têm, ou têm muito
pouco, poderá prejudicar sua situação. Sentem-se ameaçadas. Não percebem que
irá ocorrer justamente o contrário.

Como assim?

Estamos falando da emergência de  sociedades mais homogêneas, onde não apenas 20%,
mas 40%, 60% das pessoas conseguem ter boas escolas, um bom emprego, uma boa
perspectiva. Essas sociedades têm menos tensões sociais, menos violência e, potencialmente,
 menos insegurança. Isso porque o progresso vai além da economia. Traz esperança a
quem está por baixo e nunca pode pensar numa condição de vida melhor. Dá confiança.
E essa confiança é essencial para que se possa mobilizar a sociedade civil em busca de
melhorias. O apoio população só se obtém quando todos podem confiar no que está
acontecendo. Não é correto culpar o governo por tudo o que acontece. As leis ajudam,
 a ação do Estado é muito importante mas não resolve tudo. A sociedade também tem sua
responsabilidade. Todo mundo sabe que os programas sociais, não apenas beneficiaram a
juventude, que teve condição de ir a escola, mas também fortaleceram o papel da mulher
 na sociedade. Isso é muito positivo. E não apenas para as mulheres, claro.

Paulo Moreira Leite
Fonte: Contexto Livre

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