terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A proposta de Bernie Sanders que, devido à mídia comprometida com o poder de Wall Street, quase ninguém está debatendo nos Estados Unidos (e porque isso interessa a nós brasileiros)

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por Carlos Eduardo, editor-assistente do Cafezinho
Bernie Sanders é daqueles candidatos à presidência dos Estados Unidos que o mundo não via há muito tempo. Diria até inédito na política norte-americana, no entanto, muitos analistas o comparam com Franklin Delano Roosevelt, ao dizer que Sanders nada mais faz do que apresentar um New Deal do século XXI.
Já escrevi neste espaço sobre as propostas de Bernie Sanders e, infelizmente, creio que ele não sairá vitorioso nas primárias do Partido Democrata, perdendo a vaga para Hillary Clinton. Entretanto, é sempre bom acompanhar as promessas de campanha dos candidatos ao posto mais poderoso do mundo, visto que a direita brasileira, colonizada do jeito que é, cisma em copiar o que há de pior na terra do Tio Sam.
Ao ler alguns de meus jornais e blogs favoritos nos Estados Unidos, como HuffPost,PoliticoDaily Beast e tantos outros, um fato curioso vem chamando a atenção de colunistas alinhados mais à “esquerda” por lá -- e quando digo “esquerda”, nos Estados Unidos isso representa aquela parcela dos democratas que acredita na social-democracia europeia, nos moldes praticados pela Inglaterra, França, Alemanha e países escandinavos.
Trata-se da promessa que Bernie Sanders fez de reestatizar todas as prisões federais privatizadas no período neoliberal, que começou com Ronald Reagan nos anos 80 e perdura até hoje.
Em entrevista para o USA Today, Sanders disse que uma das suas plataformas de campanha é a reforma do sistema penitenciário federal, e afirmou:
“A justiça penal e a segurança pública são sem dúvida de responsabilidade do Estado e dos cidadãos deste país, não de empresas privadas. Essas responsabilidades devem ser realizadas por aqueles que respondem aos eleitores, e não por aqueles que respondem aos acionistas”. (tradução livre)
Aqui é importante salientar que os americanos tem uma bolsa de valores muito maior que a brasileira e lá praticamente todas as empresas privadas de médio e grande porte tem ações negociadas, ou na New York Stock Exchange (NYSE), ou na NASDAQ, e com as corporações que gerenciam penitenciárias privatizadas não é diferente. Por este motivo, Sanders alega que prender pessoas não deve ser um negócio lucrativo para os poucos acionistas destas empresas.
No entanto, depois da entrevista de Sanders ao USA Today, a pauta caiu no esquecimento e ninguém da grande mídia americana toca mais no assunto. Inclusive o próprio candidato não fala mais do tema em entrevistas, sabe-se lá porquê.
Para entendermos a questão levantada por Sanders precisamos voltar à gestão do então presidente Ronald Reagan, quando este sancionou a Reforma Penal de 1984 (tradução livre para Sentencing Reform Act of 1984). Os Estados Unidos estavam no auge de sua guerra às drogas e Reagan passou uma lei que aumentava drasticamente as penas para aqueles que cometiam crimes federais, tais como o tráfico de drogas.
O impacto da lei foi rápido e severo.
As penas mínimas para crimes federais aumentaram e os novos condenados perdiam automaticamente o direito à liberdade condicional -- direito este que tinham antes da lei ser aprovada. A rigidez valia para todos, inclusive para aqueles que cometiam crimes não violentos, como os pequenos traficantes.
A partir daí iniciou-se a prisão em massa de negros e imigrantes pobres. Foi a partir daí também que o governo americano iniciou o processo de privatização dos presídios federais.
O resultado todos já conhecemos de cor e salteado: cadeias lotadas de pequenos criminosos não violentos, a maioria negros e latinos, por crimes como tráfico de drogas e imigração ilegal, que ao entrar em contato com os verdadeiros criminosos, se veem obrigados a ingressar em uma facção para sobreviver e no futuro saem da prisão mais perigosos do que quando entraram.
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Corrections Corporation of America, empresa líder no setor de presídios privados
Enquanto isso, companhias como a Corrections Corporation of America (CCA) e GEO Group, duas gigantes do mercado de prisões privadas, têm um lucro anual superior à US$ 3 bilhões por ano.
A história da CCA é pra lá de sinistra. A empresa é a maior do ramo nos EUA e foi fundada por um membro do alto escalão do Partido Republicano, em 1983, um ano antes de Ronald Reagan iniciar as privatizações das cadeias federais.
A GEO Group assume a segunda posição, em termos de lucro, e no ano passado foi pegadoando dinheiro ao governador da Florida, membro do Partido Republicano, o mesmo que privatizou cadeias do estado e entregou para a GEO Group administrar.
Tudo isso nos leva a conclusão de que privatizar o sistema penitenciário é bastante questionável.
“Temos que acabar, de uma vez por todas, com a prática infame de corporações lucrando com o encarceramento de americanos” -- Bernie Sanders (tradução livre)
É hediondo imaginar que existem empresas fazendo lucro com o enjaulamento de seres humanos. Além do fato de que isso cria um círculo eleitoral e político muito perigoso, com interesses comerciais prevalecendo em detrimento do interesse público, e pior, em detrimento de vidas humanas.
Ninguém no debate político nega o fato de que criminosos violentos devam ser encarcerados. Se alguém comete latrocínio, assassinato, estupro, ou outro crime hediondo, é claro que precisa ser isolado da sociedade.
A questão é que as cadeias americanas estão hoje lotadas de pequenos criminosos não violentos, que por causa da Reforma Penal de 1984 não têm acesso à programas de ressocialização e acabam marginalizados pelo Estado.
Depois de soltos, esses ex-detentos ainda enfrentam obstáculos que tornam a vida fora do crime uma tarefa quase impossível de ser realizada. Um cidadão com ficha criminal por tráfico de drogas -- mesmo que em pequenas quantidades e sem acusações de violência ou porte de armas -- fica proibido de receber auxílios do governo, como o Food Stamp (versão americana do Bolsa Família) ou uma moradia gratuita nos milhares de conjuntos habitacionais, no estilo Minha Casa Minha Vida, que existem nos Estados Unidos.
As maiores restrições ocorrem justamente nos estados que há anos são governados pelos Republicanos, como o Texas, Mississippi, Georgia, South Carolina e West Virginia.
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Lista dos estados americanos que proíbem, totalmente ou parcialmente, ex-detentos fichados por tráfico de drogas de receber auxílio do governo
Conclusão: nos Estados Unidos a pessoa sai da prisão e seja o que Deus quiser. No fim das contas, tanto faz para o ex-presidiário estar dentro ou fora da cadeia. De que adianta a liberdade se você não tem oferta de emprego e se o governo lhe nega os direitos mais básicos, como moradia e alimentação? Melhor estar preso.
Em um informe divulgado ano passado para atrair novos investidores, a Corrections Corporation of America (CCA) colocou a alta reincidência de seus ex-detentos como um dos prós para se investir na empresa. O que deveria ser uma prova de ineficiência da iniciativa privada, torna-se uma vantagem no mercado de ações. A CCA ainda promete aos investidores uma taxa de ocupação mínima de 90% nos presídios administrados por ela, mesmo nos estados onde os índices de criminalidade vem caindo ano após ano. Por isso a reincidência de ex-detentos é interessante para os negócios da companhia.
É um contrassenso.
Uma sociedade humanitária deveria buscar a possibilidade de se ter menos presos, mas o que acontece nos presídios privatizados é o oposto. A meta é ter mais e mais presos, porque é assim que eles têm lucro.
Moral da história? A gestão de prisões pela iniciativa privada se mostrou corrupta e fracassada, daí a importância do tema levantado pelo candidato democrata Bernie Sanders.
Para se aprofundar mais sobre o assunto, recomendo este episódio de Last Week Tonight with John Oliver sobre as penitenciárias privadas nos Estados Unidos.

A chegada das penitenciárias privadas ao Brasil

E aonde entra o Brasil nessa história? Como havia explicado no início deste texto, a direita brasileira adora copiar o que há de pior na sociedade norte-americana, e, adivinhem só?
Com vinte anos de atraso, partidos como o PSDB querem trazer pra cá o modelo americano falido de presídios privatizados, como mostra esta excelente reportagem daAgência Pública, produzida pela jornalista Paula Sacchetta.
O processo já começou em Minas Gerais, onde em 2013 foi inaugurado o primeiro presídio privado do país, sob a gestão do então governador Antonio Anastasia (PSDB-MG). São Paulo, do governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP), deve ser o próximo a aderir ao sistema de prisões privatizadas
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Menos escolas e mais cadeias. Esta parece ser a política de governo dos tucanos para São Paulo
Vale relembrar que nas eleições de 2014, uma das promessas do candidato Aécio Neves (PSDB-MG) também era o de privatizar as penitenciárias federais -- igual fez Ronald Reagan lá atrás, nos anos 80. 
Críticos do projeto dizem que isso pode desencadear uma onda de prisões em massa no país, principalmente de negros e pobres. Temos aí os Estados Unidos como exemplo.
Atualmente no Brasil, cerca de 67% dos presos por tráfico de drogas tinham menos de 100 gramas no momento da prisão, sendo 14% deles com quantidade inferior a 10 gramas -- algo em torno de dez baseados. 94,3% não pertenciam a organizações criminosas e 97% nem sequer portava algum tipo de arma, ou seja, eram pequenos traficantes ou simplesmente usuários.
Se a moda pegar por aqui, não tenho dúvidas, qualquer negro ou pobre flagrado pela polícia fumando um mísero baseado, será fichado por tráfico de drogas e pegará uma pena mínima de 8 anos de prisão. 
Abaixo segue o mini-documentário da Agência Pública sobre a chegada das penitenciárias privadas ao país. E não deixem de ler a reportagem completa aqui.

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