segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

A tradicional parasitária, golpista e nociva "família militar" e sua marcha de uma nota só: o autogolpe é coisa nossa – II, por João Cezar de Castro Rocha, Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ)

 

Colunistas ICL

Marcha de uma nota só: o autogolpe é coisa nossa – II

Comecemos pela chantagem imposta pelos militares para que se pudesse sonhar com a redemocratização
 16/12/2024



Uma prisão é uma prisão é uma prisão

No último sábado, 14 de dezembro de 2024, o general 4 estrelas Walter Souza Braga Netto foi preso pela Polícia Federal por obstrução de justiça no âmbito das investigações relativas à tentativa de golpe de estado para manter Jair Messias Bolsonaro no poder, apesar da derrota nas eleições. O ineditismo da situação precisa ser mais bem qualificado e ninguém o fez melhor do que o historiador Carlos Fico.

A observação é aguda e merece ser desenvolvida, pois o traço dominante do exercício político por parte dos militares, além do óbvio traço autoritário, foi precisamente o cuidado em forjar uma ordem jurídica que garantisse impunidade a seus eventuais crimes. Na marcha de uma nota só que esboço nesta série de artigos, a prisão de Braga Netto exige que se faça um desvio para que, antes de esmiuçar a sucessão de autogolpes que moldaram os 21 trágicos anos da ditadura militar iniciada em 1 de abril de 1964, examinemos o ordenamento jurídico minucioso com a qual os militares acreditaram colocar-se acima de qualquer responsabilidade por seus atos na esfera da política.

A Lei da Anistia

Comecemos pela chantagem imposta pelos militares para que se pudesse sonhar com a redemocratização. Cientes de que haviam cometido sistematicamente o crime imprescritível de tortura, as Forças Armadas viram na Lei da Anistia um pretexto para blindar os militares comprometidos tanto com a conspiração iniciada logo após a renúncia do presidente Jânio Quadros em 24 de agosto de 1961, quanto envolvidos na tomada violenta do poder em 1964.

Não exagero! Preste atenção nas últimas palavras do general-presidente João Baptista Figueiredo ao assinar o projeto da Lei da Anistia.

Transcrevo o fecho do discurso a partir da minutagem 2:38. Palavras proféticas, pelo menos na visão do mundo teimosamente positivista do militarismo brasileiro:

“Contudo, é preciso reafirmar, o ideário da revolução de 1964, que nos inspirou durante os últimos 15 anos, continuará vivo através das gerações. É dentro dessa premissa que receberemos os anistiados. A anistia tem justamente esse sentido de conciliação para a renovação dentro da continuidade dos ideais democratizantes de 1964, que hoje reencontram sua melhor e mais grandiosa expressão. Muito obrigado.”

Pois é — instante involuntariamente cômico, o general-presidente com uma mão assinava o projeto e com a outra ameaçava o futuro com a “continuidade dos ideais democratizantes de 1964”.

(E se alguém discordar, que se prenda e arrebente o esquerdopata paulofreirano.)

Coação ainda mais explícita pode ser identificada na frase anterior, exemplo expressivo da dissonância cognitiva do ex-chefe do temido Serviço Nacional de Informações (SNI). Segundo o general, “o ideário da revolução de 1964 (…) continuará vivo através das gerações”. Como operar a improvável alquimia de uma sangrenta ditadura militar numa defensora da democracia? Elementar, caro general! Basta ocultar os crimes cometidos durante 21 anos.

Vamos ler o princípio da Lei da Anistia?

1, 2 e 3

Três pontos esclarecem o ardil dos militares.

Em primeiro lugar, destaque-se uma surpresa, qual seja, o arco temporal dos “crimes políticos” perdoados pela lei de 28 de agosto de 1979. Ora, mas o golpe não é posterior? Por que não limitar os efeitos da Lei da Anistia à data de 1 de abril de 1964? Não seria suficiente?

Justamente! A resposta é reveladora: Não! Um não rotundo, aliás. Os militares tentaram evitar o retorno de João Goulart ao Brasil, ainda que por meios traumáticos. Passaram a trabalhar para que o vice-presidente não assumisse a presidência, mas não contavam com a coragem cívica do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, que, por meio de um dos mais heroicos movimentos da história republicana, a Campanha da Legalidade, enfrentou o golpismo militar. Iniciada em 25 de agosto, a Campanha da Legalidade prolongou-se até o 7 de setembro de 1961, assegurando a posse de João Goulart nesse mesmo dia. A partir dessa data, os militares que chegaram ao poder em 1964 não perderam tempo no esforço de desestabilização do governo de João Goulart.

Em alguma medida, as Forças Armadas aprenderam a lição das coisas de um dos maiores golpistas da República: Carlos Lacerda. Em texto vituperino, publicado em 1 de junho de 1950, em seu jornal, Tribuna da Imprensa, ele lançou uma sombra sobre o futuro governo Vargas:

“O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato á presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”[1]

Golpista contumaz, um dos políticos que mais causaram danos ao Brasil, mas um homem de inteligência superior e um orador brilhante.

(Aqui, estou convencido, Lacerda atualizou a célebre refutação que o sofista Górgias propôs à lógica inventada por Parmênides.)

De fato, a oposição sem tréguas que a União Democrática Nacional (UDN) principiou antes mesmo da posse de Getúlio Vargas tinha um objetivo obsessivo: inviabilizar o governo, enfraquecê-lo ao máximo, a fim de impor uma humilhação definitiva a Vargas. Contudo, seu suicídio, no dia 24 de agosto de 1954, produziu uma reviravolta política poucas vezes vista na história brasileira. Se Lacerda imaginou estar muito próximo a finalmente chegar ao poder, por pouco não foi linchado pela população, agora revoltada com os inimigos de Getúlio.

(Experiência traumática elaborada pelo golpista-mor na tarefa, bem-sucedida, do tradutor de uma peça de William Shakespeare, Julius Caesar.)

A Lei da Anistia malandramente retornu ao 2 de setembro de 1961, de modo a não deixar sem proteção os inúmeros artífices do golpe de 1 de abril de 1964.

Não é tudo.

Releia o primeiro artigo. Anistiados serão “crimes políticos ou conexos com estes”. Uma pergunta se impõe: nesse contexto, o que são crimes conexos? Eis a chave do texto, que, malgrado o propósito de ocultamento dos militares, revela-se no primeiro parágrafo do artigo:

“(…) crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

Deixando a diplomacia de lado, eu quero é ficar colado à pele da verdade todo o dia: “crimes de qualquer natureza” quer dizer: tortura, execução de adversários e ocultação de seus cadáveres. Vale dizer, o modus operandi da repressão política da ditadura militar.

No fundo, a Lei da Anistia pretendia nem tanto contemplar os que haviam sido condenados, presos ou exilados, quanto promover uma aberração jurídica, isto é, “anistiar” militares que nunca foram sequer investigados! Anistia às avessas, o que se promulgou em 28 de agosto de 1979 foi um dispositivo legal que assegurou impunidade aos crimes da ditadura militar. Por isso, a redação da lei de criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 18 de novembro de 2011, teve a cautela de tranquilizar os militares, ao esclarecer no artigo 4:

“As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório.”

Em palavras diretas, ainda que se encontrassem provas irrefutáveis do cometimento de crimes políticos – ou conexos, não se esqueça –, nada poderia ser uado para efeito de processos contra os militares, que, assim, seguiram impunes.

(Diário de um torturador que nunca virou detento: Brilhante Ustra sorri no inferno.)

Pouco adiantou que o primeiro parágrafo da Lei de 2011 concluísse com a exortação:

“(…) a fim de efetuar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

No vídeo da assinatura da Lei da Anistia, com sua retórica particular, o general-presidente prometia: “podem os brasileiros ver que a minha mão, sempre estendida em conciliação, não está vazia, nunca esteve”. A similaridade de vocabulário – “conciliação”, em 1979, “reconciliação”, em 2011 – não ajudou a apaziguar o meio militar. Em reação à CNV, a cúpula das Forças Armadas voltou-se contra o governo da presidente Dilma Rousseff e começou a acalentar um projeto abismo: apoiar, na avaliação do general Ernesto Geisel, o “mau militar” Jair Messias Bolsonaro.

Para concluir, voltemos ao texto da Lei da Anistia. Reveja o segundo parágrafo do primeiro artigo. Logo após a cuidadosa definição de “crimes conexos”, surge uma ressalva que tudo ilumina:

“§ 2° Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados (…)”.

O que segue importa menos do que a constatação – “os que foram condenados”. Os militares que torturaram, assassinaram e ocultaram cadáveres, esses poderiam ser beneficiados, sem ressalva alguma, pela inclusão maliciosa dos crimes conexos no âmbito da anistia, pois, assim, jamais seriam condenáveis…

E fica pior…

E se eu lhe disser que ideia correlata já se encontrava no nefando Ato Institucional 5?

(Na próxima coluna – você sabe.)

 

[1] Epitácio Caó. Carlos Lacerda. Carreirista de traição. Rio de Janeiro: s/e, s/d, p. 98.

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