Poucas vezes, na história de uma República permanentemente sujeita a golpes, viu-se uma espetáculo tão deprimente de falta de compostura institucional, uma ópera bufa da pior espécie.
O país institucional tornou-se uma verdadeira casa da Mães Joana, com personagens indignos de representa-lo à frente do Executivo, do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, da Procuradoria Geral da República, do Judiciário e dos partidos políticos.
Brinca-se com o poder, derruba-se um presidente eleito, arma-se contra o interino que aboletou-se do cargo, fazem cálculos sobre o momento de impichar a chapa, se agora, se no ano que vem, valem-se de seu poder institucional para toda sorte de abusos.
Procuradores atuam politicamente; deputados lutam para legalizar o crime; Ministros do Supremo e o Procurador Geral da República manipulam prazos de inquéritos para proteger aliados; juízes de 1a instância autorizam grampos a torto e a direito.
Mas era previsto, tal o grau de desordem institucional plantada no país pela abulimia do STF, ao permitir o atropelo da Constituição. Deve-se ao Supremo esse vale-tudo.
Cada grupo deu sua contribuição para o golpe, Sérgio Moro e Rodrigo Janot vazando grampos ilegais, a imprensa no exercício amplo da pós-verdade, o Supremo acovardando-se e abrindo mão de seu papel de guardião da Constituição e a presidente incapaz de defender seu próprio mandato.
Consumado o golpe, sem dispor mais do agente aglutinador, passou-se a disputar o butim do poder. E agora chega-se a esse vale-tudo vergonhoso, sem um estatuto da gafieira para discipliná-lo minimamente.
Vamos entender um pouco mais esse Xadrez da Ópera Bufa.
Peça 1 – o tempo político na era das redes sociais.
Nessa era das redes sociais, das notícias online, o tempo político tornou-se impressionantemente curto. Processos que, antes, levavam meses para amadurecer, agora acontecem em questão de dias ou horas.
Qualquer fato relevante espalha-se em minutos pela opinião pública de todo o país. Não é necessário mais aguardar a edição impressa do jornal no dia seguinte ou a edição do Jornal Nacional à noite.
Reverberando em tempo real, o noticiário acelera não apenas a tomada de consciência como a tomada de decisões.
É um dado relevante para nossos cenários, inclusive na análise do tempo político do golpe e da atual onda conservadora-liberal.
Mal se saiu do golpe, o jogo começa a afunilar e a tornar mais nítidos os personagens reais do novo poder: a aliança PSDB-PGR-STF-mídia-mercado. Eles darão as cartas daqui para frente.
Peça 2 –o PSDB passa a tutelar Temer
O primeiro lance foi em cima do Executivo, da camarilha de Michel Temer.
No dia 24 de novembro saiu a notícia das gravações do ex-Ministro da Cultura Marcelo Caleró com várias autoridades do governo – incluindo Temer.
No mesmo dia, matamos a charada, no “Xadrez do golpe no golpe͟” (https://goo.gl/f6BFfS), ao mostrar os vínculos de Caleró com o PSDB.
No dia seguinte, haveria um almoço entre Temer e Fernando Henrique Cardoso. Analisando a reação da Globo em relação ao episódio, o xadrez ficou nítido. De um lado, a Globo incensando a coragem de Celeró e dando ampla visibilidade ao encontro do PSDB, com a cobertura centrada na figura de Fernando Henrique Cardoso; do outro, no Jornal Nacional uma catilinária que não poupou Temer.
Juntando peças no “Xadrez do homem que delatou Temer”͟ (https://goo.gl/wsMq0D), a conclusão era quase óbvia: usaram o tombamento pelo IPHAN do Secretário da Presidência Geddel Vieira Lima, para a Globo montar sua dramaturgia com Celeró visando colocar Michel Temer sob a curadoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ontem mesmo – primeiro dia útil após o almoço com FHC – o pequeno Temer colocou em campo o Secretário Moreira Franco para negociar com o presidente do PSDB, Aécio Neves, uma maior participação do PSDB no governo. E aceitou a condição apresentada por FHC, do PSDSB passar a participar da formulação das políticas de governo (https://goo.gl/Kedkne). Tudo devidamente combinado com FHC no almoço que aconteceu um dia depois de Caleró botar a boca no trombone.
Nas próximas semanas haverá reforma ministerial contemplando a nova composição de forças. Provavelmente dançará também Eliseu Padilha, que supôs ter comprado o silêncio da mídia com sua bolsa-mídia. Os pactos de tinta da mídia são mais flexíveis que os pactos de sangue da máfia. Esse tipo de barganha garante a blindagem somente até a véspera do último dia.
Em um governo em que há corrupção até na liberação de edifícios residenciais, como manter no cargo um Ministro com a ficha de Padilha, envolvido em falcatruas até em prefeituras do interior, sabendo que passam por ele todas as indicações a cargos públicos, incluindo as diretorias do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal? As grandes corrupções institucionais, complexas, sofisticadas, ao largo da compreensão da opinião pública, não podem conviver com ladrões de galinha. A diferença entre a camarilha e os profissionais é a mesma entre, digamos, um Carlinhos Cachoeira e um Madoff.
Por sua vez, um Padilha custa cerca de dez Geddel. E o governo Temer não tem consistência para suportar nem meio Geddel a mais.
Os valentes conquistadores que, nos primeiros dias no poder, ordenaram uma Noite de São Bartolomeu no serviço público, sob pressão expõem sua verdadeira dimensão: Geddel aos prantos pelos corredores do Palácio, Padilha internado com pressão alta.
Mas o novo tempo de jogo está apenas começando. E nem se incluíram as perguntas de Eduardo Cunha e Michel Temer em seu julgamento pelo juiz Sérgio Moro.
Peça 3 – o Judiciário tenta submeter o Congresso
Não basta o enquadramento de Temer. A ofensiva seguinte é em cima do Congresso, no embate em torno das tais 10 Medidas contra a corrupção e da Lei Contra Abuso de Poder.
Com ou sem Geddel, e com Padilha na linha de fogo, a bancada do PMDB, somada ao Centrão, não entregaria facilmente a rapadura.
É por aí que entra o fator Judiciário.
As 10 Medidas não visam apenas conferir maior efetividade no combate ao crime: visam a conquista do poder institucional pelo Ministério Público e pelo Judiciário.
Estão em jogo as delações da Odebrecht e das demais empreiteiras. A lista de nomes conferirá um poder inédito ao Procurador Geral da República. Com o apoio da Globo, o PGR tem o poder de engavetar denúncias, inquéritos, definir o ritmo dos inquéritos em andamento, escolher quem será ou não processado.
Além de livrar os seus do crime do caixa dois, o Congresso não quer deixar os procuradores com esse poder ilimitado nas mãos, ainda mais agora que ficou nítido que disputam efetivamente o poder.
Cada procurador, aliado a um juiz de 1a instância, tem poder de mandar para a cadeia qualquer pessoa sem prerrogativa de foro, expô-la à humilhação pública, grampeá-la e divulgar os grampos – como ocorreu no episódio Garotinho – com a garantia de que será blindado pelos escalões superiores. Não é por falta de lei. É por solidariedade de classe.
No Congresso, as únicas lideranças capazes de fazer frente a esse poder avassalador do MPF-Globo seriam o presidente Renan Calheiros e o líder da maioria Romero Jucá, ambos donos de uma biografia política polêmica.
Na quarta-feira, Renan jogou sua grande cartada – votar o regime de urgência para a Lei de Abuso de Poder -, mas o Senado refugou. O temor dos Senadores – tanto do MPF quanto da opinião pública – foi maior e deixaram seu líder ao relento.
Na quinta-feira, o Supremo analisará uma das ações contra Renan. O caso está nas mãos do Ministro Luiz Edson Fachin. Com a tibieza demonstrada pela casa, nos últimos tempos, e com a frente ampla de defesa dos juízes, é possível que Renan seja degolado. E Jucá virá atrás. Ontem mesmo, a Lava Jato tratou de retaliar e vazar denúncias contra Jucá.
Não que não mereçam. Mas, de imediato, se os dois comandantes efetivamente forem deixados fora de cena, não haverá poder capaz de se contrapor ao poder quase absoluto do Ministério Público. Abre-se espaço para a pessedebização final do governo Temer e para o início efetivo da República dos Procuradores.
Mas como o homem põe e o destino dispõe, há o agravamento da crise política colocando um complicador a mais no nosso xadrez.
Peça 4 – a ideologia dos economistas do PSDB
Cada escola de pensamento costuma de embaralhar em seus dogmas ideológicos. Os desenvolvimentistas acreditaram que o excesso de subsídios resultaria em um aumento da atividade que compensaria a queda de receita. Os ortodoxos acreditam piamente no papel das políticas monetária e fiscal, como únicos instrumentos de gestão da economia.
Mas há uma diferença fundamental entre os monetaristas históricos e a geração de economistas de mercado que se torna hegemônica a partir do plano Real usando o PSDB como “cavalo”. Os velhos economistas ortodoxos, monetaristas, utilizam suas ferramentas teóricas tendo como objeto de análise a realidade, assim como sua contraparte, os desenvolvimentistas. Ou seja, desenham as estratégias que consideram mais adequadas para o país.
Já os economistas de mercado, tendo como base a PUC-Rio e como inspiradores os economistas do Real, sempre atuaram ideologicamente pensando apenas nas estratégias de fortalecimento do mercado, que criem novos negócios, que permitam o predomínio do financista em relação ao restante da economia, independentemente dos efeitos sobre o país.
Banco Central, Fazenda e BNDES já trabalham assim, procurando
1. Instituir o teto para despesas, liberando o orçamento para os próximos vinte anos, para pagamento exclusivo dos juros e amarrando as mãos dos futuros governantes para qualquer outra tentativa de políticas pró-ativas.
2. Mudar o comando das grandes obras públicas, das empreiteiras para o mercado. Para tanto, além de esterilizar R$ 100 bilhões do BNDES, estão proibindo-o de financiar exportações de serviços ou mesmo de financiar qualquer empresa que esteja fichada na Lava Jato.
3. Ao mesmo tempo, articulam a criação de fundos para trabalhar dívidas públicas renegociadas, visando servir de lastro para os fundos de infraestrutura que passarão a comandar os investimentos.
4. O ajuste fiscal produzirá uma razia na atividade econômica, já afetada pela maior recessão da história. Pensa-se, com isso, em reduzir a resistências às reformas e, ao mesmo tempo, derrubar preços de ativos, permitindo um redesenho da economia através dos processos de fusões e aquisições capitaneados pelos grandes fundos de investimento.
5. Manutenção dos juros altos e do câmbio baixo, para potencializar os ganhos do mercado.
Algumas ideias são razoáveis, outras meramente ideológicas. Mas o conjunto final é catastrófico: visando a disputa ideológica, de eliminar definitivamente as empreiteiras como fontes de influência e de poder, criam um vácuo na atividade econômica
Mesmo assim, esses economistas são as únicas fontes de idéias do PSDB. Os comandantes do partido – Aécio, Serra, Alckmin, Aloysio, José Anibal – são incapazes de formular uma ideia estratégica sequer. Seu único papel é o de meter-se em disputas braçais contra os adversários, tarefa que exige muita corda vocal e pouco cérebro.
Peça 5 – o recrudescimento da crise
Há alguns pontos centrais na política econômica, comuns a qualquer escola de pensamento.
Quando a economia está despencando, a retomada depende de alguns fatores de demanda:
1. Consumo das famílias
2. Consumo do Estado.
3. Exportações.
4. Investimentos
Nenhuma dessas pré-condições está presente.
Nenhum economista de peso aposta na recuperação da economia. O fato do governo ter jogado para o segundo semestre de 2017 significa apenas que não há nenhuma perspectiva de recuperação no curto prazo.
O que diz o economista Afonso Celso Pastore (https://goo.gl/kFyvDQ)
Nada disso seria uma surpresa (a maior recessão dos útimos 25 anos) para quem evitasse fazer previsões sobre o PIB dando um peso excessivo aos índices de confiança, em vez de ponderar as perspectivas das exportações, do consumo das famílias e da formação bruta de capital fixo.
Com as exportações mundiais e os preços de commodities em queda, não podemos esperar que as exportações brasileiras impulsionem a retomada do crescimento. Nem o consumo das famílias poderá exercer essa função nos próximos trimestres, quer porque, após o encerramento da recessão o nível de emprego e os salários ainda sofrerão quedas, quer porque os bancos deverão continuar retraídos na concessão de crédito.
Resta esperar que a retomada do crescimento venha dos investimentos em capital fixo, mas, na grande maioria dos setores, há uma enorme capacidade ociosa, e assistimos a um número recorde de empresas em recuperação judicial.
Delfim Neto é mais sintético, mas com o mesmo pessismismo (https://goo.gl/lh56Yh)
Há sérias dúvidas, por exemplo, sobre a eficácia da política anunciada "urbi et orbi" que teríamos em 2016 uma política fiscal fortemente contracionista.
Primeiro, porque assustou o setor privado que sofreu o contracionismo efetivo de 2015 e viu a demanda global desabar e, segundo, porque há sérias dúvidas se ela será, de fato, contracionista.
Quanto à política monetária, esta, sim, tem sido restritiva: houve aumento da taxa de juro real e recusa a enfrentar a necessidade de sustentar uma taxa de câmbio real competitiva e relativamente estável, o que inibe o investimento e as exportações industriais, dois vetores do crescimento.
Sem uma acomodação do crédito para mitigar a alavancagem do setor privado e sem a garantia de uma taxa de câmbio real adequada, é muito pouco provável que se restabeleça uma "expectativa" de crescimento e que volte à vida a indústria nacional.
E, sem elas, o equilíbrio fiscal, apesar de ser absolutamente necessário, continuará apenas uma ilusão...
A rigor, qual a única instituição que está efetivamente preocupada com o quadro econômico? Justamente o Senado de Renan Calheiros:
Em face das crises recorrentes, o presidente do Senado Federal reitera a imperiosidade de uma agenda a fim de superar o agravamento da situação econômica que penaliza toda a sociedade brasileira. (...)
Segundo o presidente, o ajuste que está sendo implementado é uma obrigação para fazer frente ao momento econômico, mas precisa ser complementado com medidas de retomada da atividade econômica, geração de empregos, recuperação dos investimentos e, o principal, a redução dos juros. Não é somente o limite de gastos e a reforma da previdência. (...)
Peça 6 – desfechos possíveis
Seja qual for o desfecho desses embates PSDB x Temer, Congresso x Justiça, a única maneira de superar a crise será um pacto nacional para consolidar a única política econômica capaz de tirar o país do atoleiro:
1. Aumento dos gastos públicos nas grandes obras públicas e nos programas sociais.
2. Uso dos bancos públicos – BNDES, BB e CEF – para permitir a renegociação dos passivos das empresas.
3. Redução acelerada da Selic e manutenção do câmbio em patamar competitivo.
4. Agilização dos programas de concessões, assim que a recuperação da demanda definir um cenário mais favorável.
A questão é que só se chegará a esses pontos quando a crise for vista como suficientemente ameaçadora. A informação que vale um bilhão é: quando se chegará no fundo do poço que dispare o gatilho do bom senso sobre o país?
Luís Nassif
No GGN
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