O Papa atacou o clericalismo com contundência nada menos que três vezes nos últimos cinco dias. Na missa da manhã de terça (13) na capela da Santa Marta, no Vaticano, Francisco comparou clérigos católicos (padres, bispos, cardeais) e leigos poderosos nas estruturas eclesiais aos chefes religiosos que perseguiram Jesus até sua morte. A vítima do espírito clerical, assim como foi Jesus, disse o Papa, é o “povo humilde e pobre que confia no Senhor”, “aqueles que são descartados”. São “condenados” e “abusados”, pelo poderoso da Igreja que é sempre “presunçoso, orgulhoso, soberbo”. O combate ao clericalismo está na origem do papado de Francisco, desde seu discurso no colégio eleitoral de cardeais em 7 de março de 2013, seis dias antes de ser escolhido.
No último domingo (11), durante encontro com 180 seminaristas do Pontifício Seminário Regional Pio XI, da Puglia (Itália), o Papa advertiu os futuros sacerdotes: “se tens medo da pobreza, a tua vocação está em perigo!” E voltou ao tema da opção da Igreja pelos pobres, à qual se opõe o clericalismo: “Um sacerdote que se separa do povo não é capaz de dar a mensagem de Jesus. Não é capaz de dar o carinho de Jesus às pessoas”. [a íntegra do discurso foi distribuída pelo Vaticano apenas em italiano, aqui]
Antes, na missa matinal do dia 9 (sexta-feira), Francisco havia advertido os sacerdotes a serem “mediadores do amor” de Deus e não “intermediários que pensam somente no próprio interesse”. O Papa vinculou o clericalismo ao conservadorismo rigorista e ao afastamento do povo: “Mas para fazerem-se importantes, os sacerdotes intermediários seguem pelo caminho da rigidez: tantas vezes, separados das pessoas, não sabem o que é a dor humana; perdem aquilo que haviam aprendido em suas casas, com o trabalho do pai, da mãe, do avô, da avó, dos irmãos… Perdem estas coisas. São rígidos, aqueles rígidos que largam sobre os fieis tantas coisas que eles não carregam, como dizia Jesus aos intermediários de seu tempo. A rigidez. Chicote em mãos com o povo de Deus: ‘Isto não pode, isto não pode…’. E tantas pessoas que se aproximam buscando um pouco de consolação, um pouco de compreensão, acabam expulsas com esta rigidez”. [veja aqui a cobertura da Rádio Vaticano]
Clericalismo é a doutrina e maneira como se organiza em boa medida a Igreja Católica, segundo a qual os membros da hierarquia (cardeais, bispos, padres e uma elite de leigos, em geral ricos) como o centro da vida do catolicismo. É a doutrina que informa o pensamento conservador na Igreja. Na base da Igreja vive-se esta distorção apontada pelo Papa como uma relação de reverência e temor dos fiéis pelo padre (relação que se reproduz hierarquia acima), que passa a ser o “proprietário” da paróquia.
O combate ao clericalismo é um dos centros do pontificado de Francisco e o principal tema de seu embate com a hierarquia católica (leia reportagem recente sobre isso aqui no blog clicando aqui). Na missa da manhã de terça, o Papa disse que há um “espírito do clericalismo”, segundo o qual “os clérigos se sentem superiores, se afastam das pessoas, não têm tempo para escutar os pobres, os que sofrem, os presos, os doentes”. O afastamento dos pobres e da vida pobre assim como a fascinação pela riqueza e a aparente rigidez moral são as característica que marcam o clericalismo, segundo as diversas manifestações de Francisco.
Francisco chegou a endereçar aos “seduzidos pelo clericalismo” a mesma advertência que Jesus, no Evangelho do dia (Mt 21,28-32), dirigiu aos sacerdotes judeus: “’Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (v.31). Disse o Papa: “O mal do clericalismo é uma coisa muito feia! É uma nova edição desta gente. E a vítima é a mesma: o povo pobre e humilde, que tem esperança no Senhor. O Pai sempre procurou se aproximar de nós: enviou seu Filho. Estamos esperando, uma espera alegre e exultante. Mas o Filho não entrou no jogo desta gente: o Filho foi com os doentes, os pobres, os descartados, os publicanos, os pecadores – é escandaloso isso… – as prostitutas. Também hoje Jesus diz a todos nós e também a quem está seduzido pelo clericalismo: ‘Os pecadores e as prostitutas entrarão primeiro no Reino dos Céus’”. [se quiser, leia aqui a cobertura da Rádio Vaticano]
COMO COMEÇOU E EVOLUIU COMBATE DO PAPA AO CLERICALISMO
O Papa começou a tratar do tema do clericalismo antes mesmo de sua eleição. Houve um famoso discurso de pouco mais de 3 minutos aos cardeais durante o processo eleitoral, na congregação geral de 7 de março de 2013 (ele seria eleito em 13 de março), que foi considerado crucial para que ele fosse escolhido. Parte deste discurso acabou vindo a público a partir das anotações do cardeal arcebispo de Havana, Jaime Lucas Ortega y Alamino –que se tornaria uma peça-chave no papado de Francisco na evolução da relações entre a Igreja e o governo cubano e nas negociações para o fim do bloqueio americano (a divulgação foi autorizada por Francisco, o que lhe conferiu ainda mais veracidade).
O coração do discurso de Francisco foi exatamente um forte ataque ao clericalismo. Nele, o então cardeal Bergoglio usou pela primeira vez uma imagem que se tornaria referencial nos meses seguintes, a necessidade de a Igreja sair às “periferias existenciais”. Ele criticou abertamente a Igreja “autorreferencial, doente de narcisismo, esse viver para glorificar uns aos outros. (…) Há duas imagens da igreja: a Igreja evangelizadora que sai de si própria, a da Palavra de Deus, que escuta fielmente e proclama; ou a Igreja mundana, que vive em si mesma, de si mesma e para si mesma. Isso deve iluminar as possíveis mudanças e reformas que têm de ser feitas para a salvação das almas”.[1]
Havia cansaço no colégio de cardeais em relação aos anos de clericalismo e uma avaliação realista quanto ao crescente enfraquecimento da Igreja fechada sobre si própria, o que viabilizou a eleição de Bergoglio com um “programa” tão radical. É digno de nota que as linhas mestras de sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), que viria à luz oito meses depois, em 24 de novembro de 2013, estavam definidas neste discurso.
Logo a seguir, em carta à Assembleia Geral da Conferência dos Bispos da Argentina, em 25 de março de 2013 (menos de uma semana depois de sua entronização como Papa), Francisco retomou os temas e termos de seu discurso aos cardeais em Roma e escreveu que “a enfermidade típica da Igreja é ser autorreferenciada, olhar para si própria, encurvada sobre si mesma”, que conduz a “uma espécie de narcisismo que nos conduz ao mundanismo espiritual e ao clericalismo sofisticado”.
O Papa seguiu em frente, aprofundou sua crítica e ampliou drasticamente sua audiência. Foi num discurso aos bispos da coordenação do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em 23 de julho, durante sua visita ao Brasil para a 28ª Jornada Mundial da Juventude. Berço da Teologia da Libertação, a região experimentou uma guinada conservadora de consequências dramáticas, nos 35 anos dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Cerca de 1/3 de sua fala esteve focada nos desvios na missão da Igreja por conta do clericalismo que, segundo o Papa, “é também uma tentação muito atual na América Latina.” O Papa denunciou a cumplicidade entre o pároco (padre titular numa paróquia) e o leigo, num processo “cômodo” que explicita a “falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do laicato da América Latina”. Francisco contrapôs ao clericalismo três iniciativas de fundo popular: “os grupos bíblicos, as comunidades eclesiais de base e os Conselhos pastorais” que “se colocam na linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical”. Foi um choque, pois as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram demonizadas por parcelas relevantes (senão majoritárias) do clero da região anos a fio.
Em novembro de 2013, na Evangelii Gaudium, documento com a força de uma Exortação Apostólica, o Papa usou um tom mais ameno. Num texto voltado ao anúncio do Evangelho –portanto, profundamente vinculado às dinâmicas eclesiais- o Papa escreveu a palavra clericalismo apenas uma vez. E foi extremamente cauteloso em sua condenação, considerando haver um “excessivo clericalismo” na Igreja, que “mantém [os leigos] à margem das decisões” (n. 102). No tópico 82 da exortação, o Papa tratou do assunto sem usar o substantivo que a nomeia: segundo Francisco, havia e há sacerdotes que “por terem perdido o contato real com o povo” prestam “mais atenção à organização do que às pessoas, acabando assim por se entusiasmarem mais com a ‘tabela de marcha’ do que com a própria marcha”.
Mas quem imaginou que isso poderia corresponder a uma postura mais conciliatória com a hierarquia enganou-se. A partir de então, o papa abandonou a expressão “excessivo clericalismo” e gradativamente subiu o tom ao tratar do tema. Na homilia da missa matutina de 16 de dezembro do mesmo ano, às vésperas do Natal, Francisco afirmou que “quando falta a profecia, o clericalismo ocupa o lugar, estabelece-se o rígido esquema da legalidade que fecha a porta na cara do homem”.
Em março de 2014, o Papa voltou a chamar atenção para cumplicidade entre padres e leigos na manutenção do clericalismo, por medo ou comodidade. Foi num encontro com 400 funcionários da Rede Corallo de comunicação católica italiana (rádios e TVs), dentre eles inúmeros jornalistas. No discurso, Francisco retomou o tema citando explicitamente a exortação: “(…) eu menciono na Exortação apostólica Evangelii Gaudium. [O] clericalismo é um dos males, é um dos males da Igreja. Mas é um mal ‘cúmplice’, porque os sacerdotes gostam da tentação de clericalizar os leigos, mas muitos leigos, de joelhos, pedem para ser clericalizados, porque é mais cómodo, é mais cómodo!”
Um momento culminante da confrontação de Francisco com o conceito e a vigência do clericalismo aconteceu sem que ele houvesse mencionado uma vez sequer a palavra. Foi um evento histórico. Aconteceu em 22 de dezembro de 2014, no tradicional encontro de Natal que se repete há décadas e décadas entre os papas e a Cúria romana. Tais encontros sempre foram regados a discursos congratulatórios e amenos. Mas Francisco produziu um discurso sem precedentes na história da Igreja. Nem no contexto do Vaticano II houve algo similar e não há registro de um discurso desta envergadura de nenhum outro papa. O cenho franzido e carrancudo de muitos dos presentes foi notável. Francisco enumerou o que qualificou como “as 15 enfermidades” da Cúria. Na primeira das “doenças” da Cúria, enumeradas pelo Papa, uma condenação incisiva do clericalismo: “A doença do sentir-se ‘imortal’, ’imune’ ou até mesmo ‘indispensável’ (…) Uma visita ordinária aos cemitérios poderia ajudar-nos a ver os nomes de tantas pessoas, algumas das quais pensassem talvez que eram imortais, imunes e indispensáveis! É a doença do rico insensato do Evangelho que pensava viver eternamente (cf Lc 12, 13-21) e também daqueles que se transformam em senhores e se sentem superiores a todos e não ao serviço de todos. Esta doença deriva muitas vezes da patologia do poder, do “complexo dos Eleitos”, do narcisismo que fixa apaixonadamente a sua imagem e não vê a imagem de Deus impressa na face dos outros, principalmente dos mais fracos e necessitados”. Se quiser, leia a íntegra do discurso aqui – é histórico.
Foram diversas as manifestações do Papa ao longo dos últimos meses. Em março passado, o Papa foi duro com a Igreja na América Latina, numa carta ao cardeal Marc Ouellet, Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina (a íntegra aqui). Nela, afirmou que o clericalismo é “uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar”. E acrescentou: “O clericalismo, longe de dar impulso aos diversos contributos e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a inteira Igreja está chamada a dar testemunho no coração dos seus povos. O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus (cf. Lumen gentium, 9-14) e não só a poucos eleitos e iluminados.”
Os jesuítas divulgaram há poucos dias uma conversa informal que o Papa manteve em 24 de outubro com centenas deles, reunidos em Roma para sua Congregação Geral (encontro mundial periódico). Na conversa, ele foi enfático, dizendo que o clericalismo é uma das maiores chagas da Igreja e que “separa-a da pobreza”. Disse Francisco: “O clericalismo é rico. E não só é rico em dinheiro, mas em soberba. (…) O clericalismo é uma das formas de riqueza mais graves que se sofre hoje em dia na Igreja”. [Você pode ler a cobertura do encontro em espanhol aqui ou ler a íntegra da conversa em italianoaqui, publicada pela revista La Civiltà Cattolica, editada pelos jesuítas desde 1850]
Em, 26 de novembro, durante a missa durante o Consistório para a criação de 17 novos cardeais, o centro da homilia do Papa (na qual ele não usou a palavra “clericalismo”) foi a necessidade de os novos cardeais “desceram à planície” para “encontrar a multidão” num movimento “convocado” por Jesus, que “continua a chamar-nos e a enviar-nos à ‘planície’ dos nossos povos”.
Nesta breve sistematização sobre a relação do Papa com o tema do clericalismo, foram nada menos que 13 oportunidades nas quais, em uma exortação apostólica e diversas homilias, discursos e cartas ele enfrentou a questão com uma veemência ímpar. A força de suas palavras está diretamente ligada ao “mandato” que recebeu dos cardeais no colégio que o elegeu, quando clericalismo foi apresentado por Bergoglio como o principal alvo das reformas necessárias à Igreja.
Por Mauro Lopes no Outras Palavras
[1] Piqué, Elisabetta, Papa Francisco – vida e revolução, Texto Editores, São Paulo, 2014, p. 22 – Piqué é correspondente do argentino La Nacion no Vaticano e acompanhou a trajetória de Bergoglio desde que foi nomeado cardeal em 2001.
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