Carlos Antonio
Fragoso Guimarães
Na questão “o que é a consciência” está implícita
certo pressuposto: a consciência é alguma coisa semelhante a alguma outra
coisa. Se é coisa, deve ser, pressupõe-se, passível de alguma manifestação
física e, assim, é de esperar-se que possua rastros que devam ocupar algum
volume no espaço. Ou seja, a própria questão, como formulada, leva em si a
suposição de que a consciência humana deve ser semelhante a outros “objetos”
que nos são familiares e, assim, se enquadrar na imagem mecânica de mundo
dominante ainda hoje. O problema é que pouco se leva em conta as prováveis
limitações deste conjunto implícito de suposições.
Lawrence
LeShan em seu livro De Newton à Percepção
Extra-sensorial discorre sobre o assunto a partir da reflexão sobre a
possibilidade ou não de aplicação de conceitos característicos de um domínio da
realidade em outro. Enquanto a questão do “volume” faz sentido a partir e
quando aplicada a objetos tridimensionais, ela deixa de fazer qualquer sentido
na geometria plana. Utilizar-se dos axiomas fundamentais da geometria plana em
objetos tridimensionais causam paradoxos. Portanto, diferentes dimensões ou
domínios da realidade possuem características próprias que levam a elaboração de
os conceitos novos ou reformulação de conceitos antigos. As características
próprias de uma dimensão trazem problemas quando ampliadas a uma outra
dimensão, reino, domínio da realidade ou referencial teórico.
Por exemplo, o
espaço das mesodimensões, tão
característico do uso bem sucedido da física newtoniana, é algo bem diferente do espaço-tempo da
física relativística aplicada a grandes dimensões e grandes velocidades e, de
tão diferentes, não significam a mesma coisa.
Do mesmo modo, ambas as físicas se tornam problemáticas no universo
microdimensional da física das partículas subatômicas. Ao sair de um domínio ou
reino para outro, ainda que adjacente e a este ligado, surgem novas
características inexistentes e paradoxais no domínio anterior. Ninguém pensa em
explicar as excentricidades do personagem Dom Quixote a partir da escrita
gramaticalmente rebuscada mas correta de Miguel de Cervantes, ou da composição
do papel ou da sintaxe da língua espanhola.
Não nos
preocupamos como surgem ou emergem estas características em um novo patamar da
realidade (por exemplo, o volume no espaço, a ingenuidade de Dom Quixote), mas
como podemos estuda-las e compreende-las, uma ao nível do pragmatismo empírico
e outra ao nível do significado psicológico, o que acaba por estruturar uma
ciência voltada para as características daquele domínio, com os fatores
observáveis em seus próprios termos.
Foi muito
doloroso aos cientistas aceitarem que os paradoxos dos átomos só eram paradoxos
enquanto se tentasse compreendê-los com os conceitos familiares que aplicamos à
realidade física mesodimensional. No caso, o domínio das dimensões médias
constitui um “reino” diferente do das macro e microdimensões e cada qual possui suas próprias características,
assim como o reino da vida possui características próprias diferentes do reino
físico, mas esteja com este ligado e relacionado.
Cada domínio,
portanto, necessita de um diferente modelo de realidade, com conceitos que
possuem acepções e características próprias que não podem ser aplicados a
domínios adjacentes ou diferentes. Quando isso ocorre, tem-se paradoxos e
confusões epistemológicas.
A ciência muitas
vezes não se preocupa diretamente com a “natureza de algo”, ou seja, em
descrever o que seja algo, do que sejam constituídas coisas de um reino ou
domínio. Ela não diz o que é a gravidade, ou a eletricidade, mas apenas como
elas se manifestam através daquilo que é observável. Assim, a gravidade é reconhecida como uma
força (mas não se diz o que seja essa
força) que atua na atração de massas em relação à distância entre elas, ou o
que seja a energia elétrica, mas que
nesta existem fluxo de elétrons que trazem consequências físicas tais como
calor, atração/repulsão, efeitos fisiológicos, etc.
Se não faz
muito sentido se dizer “o que é”, mas
sim “o como atua ou se relacionam” os
objetivos observáveis de um domínio, o que permite inferir algo atuando sobre
estes, também não faz muito sentido se perguntar o que é a consciência, porque
esta pergunta parece defini-la como um objeto e, assim, ela possuiria deveria
possuir características que a inferissem enquanto tal, quando na prática suas
reais características que não permitem entende-la como algo definido, restrito
ou estático. Na verdade, ela parece ser algo sutil como o é a vida e a
gravidade, mas ainda se tenta explica-la não enquanto algo com características
próprias (e que assim deve ser estudada), mas enquanto subproduto de outra
coisa.
Ela, a
consciência, é sumamente qualitativa e dinâmica, processual e não parece
confinada a um espaço definido e, ainda mais, ela é justamente aquele elemento
não passível de mensuração e manipulação que, contudo, possibilitou a reflexão
de tudo o que constitui a ciência produzida pelo homem. É sumamente perceptual,
faz parte do reino da realidade onde se percebe uma atividade interior e que
possui a característica única de ser reflexiva. Deste modo, são estas
características, que não se mostram distanciadas em espaço e em que a questão
do tempo também parece se desfazer, que constituem o Domínio da Consciência.
O que
observamos no Domínio da Consciência? Processos, intensidades (emoções,
ideais), senso de identidade, clareza ou confusão, estado de ânimo, presença ou
ausência de informações. Como se relacionam estes observáveis? De modo bem
diferente de como se relacionam os objetos do mundo sensorial pelo simples
motivos de que eles não são “objetos” no sentido corriqueiro do termo. Você
pode sentir e pensar várias coisas, consciente e conscientemente,
concomitantemente, sem que haja um conflito de “corpos ocupando um lugar no
espaço”.
LeShan cita William
James: “Todas as pessoas acreditam, sem
hesitar, que elas se sentem pensando e que distinguem o estado mental, como
qualquer atividade ou paixão interior, de todos os objetos com os quais tal
estado pode lidar cognitivamente”.
“Precisamos enfatizar”, afirma
LeShan, “que a ciência, na os atualidade, não pergunta o que uma coisa é, mas
como ela se relaciona com outros fatores nos mesmos domínios e talvez nos
domínios adjacentes. Até mesmo a definição formal de volume – o comprimento, a
largura e a altura multiplicados e expressos através de unidades cúbicas – é
uma constatação de relacionamentos e não aquilo que é.” (p. 95).
A consciência
é inferida por uma série de coisas das quais temos experiência direta e
subjetiva: ela tem ciência dos sentimentos, das ideias, das reflexões, até
mesmo das intuições que são seus elementos observáveis mais comuns, mas não se
reduz a estes. Indagações do tipo “o que
é” quando apenas conseguimos inferir observáveis podem induzir a um
círculo-vicioso, em especial quando se quer entender suas características
próprias com conceitos próprios de um outro nível ou dimensão da realidade.
Explicar “o que é a energia” geralmente deixa os físicos em maus lençóis e até
hoje não se conseguiu criar-se uma fórmula ou conceito convincente do que é que
é a vida e tudo o que se diz a respeito sempre se resumirá a expor descrições
de relações de coisas e ações, nunca sobre o
que é aquilo que promove tais relações.
Se a ciência,
reflete LeShan, não indaga, na prática, o que é energia, o que é a vida, por
que perguntamos constantemente “o que é a
consciência” ou “O que é a
paranormalidade”? Isso ocorre porque, intuitivamente, sabemos que ambas
apontam para algo bem diferente daquilo que constitui o mundo dito objetivo, o
que relativiza nossas certezas. Mas isso
não implica abandonar os métodos da ciência, mas perceber quais os apropriados
ou não para auxiliar na compreensão destas realidades. Contudo, estamos tão encharcados
de um modelo, transferido pela educação em geral e pela cultura pragmática da
sociedade industrial, que “aceitamos” a falsa ideia de que tudo o que existe
segue as mesmas linhas do modelo reducionista que transforma o mundo em uma
grande máquina semelhante às feitas pelo próprio homem. E mais: esta grande
máquina do mundo é fruto totalmente do acaso, sem setido, sem objetivo, apenas
seguindo as regras das leis da física e da química, o que inclui, em seu
percurso acidental, a vida e a
consciência.
Nas palavras críticas
do psicólogo, engenheiro e pesquisador
Psi, Dr. Charles T. Tart:
“Em um período relativamente breve, comparado com a história do nosso
uni verso –centenas de milhões de anos, como os materialistas gostam de
enfatizar - , ocorreram eventos físicos e químicos específicos ao qual nos
referimos como vida e biologia. Os materialistas rejeitam a
ideia de que haja algo de especial na vida, alguma coisa tão real quanto a
matéria, mas de natureza distinta, uma “força vital” ou vitalismo. Por ser um tipo de dualismo, o vitalismo não pode” – dentro do escopo filosófico mecanicista – “estar
correto; não existe nada além da realidade material. A vida significa apenas
que, obtidas as combinações físico-químicas certas, os resultados serão as
ações autossustentáveis e
autorreprodutivas que constituem a vida do modo como a conhecemos.
“Por fim, essa reação eletroquímica vital torna-se complexa a ponto de
permitir que falemos sobre cérebros e, em seguida, sobre o cérebro humano. Ainda
é basicamente controlada e limitada pelas leis da matéria, e há inúmeras
influências diretas sobre seu funcionamento (...). Curiosamente – e esse é um enigma para os
materialistas, embora eles costumem ignorá-lo -, esse cérebro humano desenvolve
a consciência, uma mente ou uma capacidade de discriminação perceptiva para as
quais ele não se restringe às dimensões materiais da vida. Acredita-se que a
consciência seja uma consequência exclusiva das propriedades sistêmicas do
cérebro. Embora o materialismo acredita cegamente que algum dia a ciência descubra
exatamente como a consciência surge da estrutura e do funcionamento físicos do
cérebro – o que a explicaria de modo ‘definitivo’ -, até o momento não temos
nenhuma teoria científica que sequer se aproxime de tal proeza. Esse é o motivo
pelo qual o surgimento da consciência a partir de processos cerebrais
exclusivamente físicos é conhecido como problema
difícil entre os pesquisadores contemporâneos. Quando não há nada de concreto a dizer, a
crença na solução futura desse problema costuma ser expressa pela afirmação de
que sabemos que o cérebro é
responsável pela consciência. Em ternos de ciência pura, sem dúvida sabemos que
o cérebro tem uma participação importante na consciência, da maneira como ela
se manifesta em nosso dia a dia, mas isso é bem diferente de saber se o cérebro
cria a consciência.” (Charles T.
Tart, O Fim do Materialismo, ed. Cultrix, pp. 90-91).
Pouca gente,
hoje, sabendo da íntima relação entre o aparelho físico de televisão e sua
imagem, iria dizer que é este aparelho quem cria a imagem....
Onde se localiza a consciência? Em
relação a esta questão, a ciência convencional parece iludir-se. É quase aceito
por um consenso um tanto frouxo que a biologia e fisiologia teriam chegado à conclusão (que não é
unânime) de que a consciência se localiza
no cérebro. No entanto, ao presumir tal fato, implicitamente está presente
a ideia de que a consciência existe no espaço, é quase um objeto, e que se
encontra no mesmo tipo de espaço que o crânio. Só que hoje é sabido que
conceitos de espaço, tempo, causalidade e mesmo objeto são dramaticamente
transformados, possuindo significados muito diferentes, em diferentes domínios
ou dimensões da realidade. O que tem um sentido X em um determinado campo ou
não faz sentido ou terá um sentido bem diferente em outro campo da realidade.
Outra idéia
comum dentro da visão atualmente dominante é a de que a consciência é um
subproduto das funções cerebrais mas, neste caso, como este subproduto consegue
apresentar características que escapam à matéria, incluindo a capacidade de
possuir consciência e, algumas vezes, transcender espaço e tempo?
As entidades
físicas acessíveis aos sentidos (e percebidas pela mente) existem no
meso-espaço do domínio sensorial e, quando separadas nesse espaço, constituem
aparentemente entidades separadas. É assim que percebemos qualidades
geométricas no espaço das dimensões médias. A consciência, no entanto, não
existe no espaço físico. Ela não tem qualidades materiais. O espaço no qual a
consciência existe tem qualidades completamente diferentes da do espaço físico.
Quando falamos
de mente “localizada” o fazemos por analogia aos objetos físicos e pensamos que
a consciência também tem tamanho, forma, contornos, limites e ocupa um espaço.
Esses não são aspectos daquilo que conseguimos sentir existir na consciência.
Ideia tem forma? Desejo possui um contorno? Falar de centímetros cúbicos de
consciência é o mesmo que dizer que dizer que o número sete tem uma cor dourada
o que um conceito coletivamente aceito pesa uma tonelada.
“Ninguém tem o direito de atribuir posições, tamanhos, formatos ou
cores a coisas que, devido à sua própria natureza, não podem sustentar tais
qualidades. Seria o mesmo que atribuir
um cheiro a um facho de luz.” H. Margenau.
Os fatores
observáveis nos elementos da consciência, como amor, reflexão, alegria, não
ocupam espaço pois nenhum deles possuem comprimento, largura ou altura. Não
estão a centímetros um do outro ou formam ângulos restos. Mas podem ter
intensidade. O espaço geométrico da realidade sensorial não se aplica. Os
modelos mecanicistas sobre a mente não tiveram muito sucesso, e os atuais são
cada vez mais sistêmicos que mecânicos. Vários pesquisadores (Wilder Penfield,
David Bohm, Carl Jung) não pensam que a mente/consciência seja redutível ao
sistema nervoso, embora este seja um instrumento de ligação entre aqueles e a
realidade sensorial que vivenciamos enquanto seres-no-mundo.
Para ler:
Lawrence
LeShan: De Newton à Percepção
Extra-Sensorial, Summus Editorial, São Paulo, 1996.
Charles T.
Tart: O Fim do Materialismo. Editora
Cultrix, São Paulo, 2012.
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