sábado, 6 de junho de 2020

Uma análise jurídica sobre a tentativa de Bolsonaro e Mourão de transformar Antifascistas em terroristas no Brasil. Por André Malczewski



Recentemente, foi a vez de rotular os movimentos antifascistas, representados por segmentos que participaram das manifestações sociais nos Estados Unidos – como consequência, em parte, do assassinato de George Floyd –, e agora no Brasil, com destaque para as manifestações nas cidades de São Paulo/SP (31/05) e Curitiba/PR (01/06), dentre outras.


Uma análise jurídica sobre a tentativa de transformar Antifascistas como terrorista no Brasil

Uma análise jurídica sobre a tentativa de transformar Antifascistas como terrorista no Brasil

Imagem: KSTP – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando

Por André Malczewski

A palavra ‘terrorismo’ tornou-se habitual na linguagem popular. Desde a utilização em discursos políticos-ideológicos até o uso excessivo por parte dos veículos de comunicação, a constante repetição do termo indica sua vulgarização enquanto fenômeno social, o que retira a gravidade implícita que é rotular algo, ou alguém, como terrorista


Recentemente, foi a vez dos movimentos antifascistas, representados por segmentos que participaram das manifestações sociais nos Estados Unidos – como consequência, em parte, do assassinato de George Floyd –, e agora no Brasil, com destaque para as manifestações nas cidades de São Paulo/SP (31/05) e Curitiba/PR (01/06), dentre outras. 

Diante das repercussões dos protestos, os quais foram amplamente reprimidos pelas forças policiais brasileiras e norte-americanas, o populismo político adotou uma resposta rápida e, ao mesmo tempo, vazia: classificar referidos grupos como terroristas, para afastar qualquer legitimidade das ações populares e classificá-los como algo a ser neutralizado. 

No último domingo (31), o presidente americano Donald Trump se manifestou por meio da plataforma Twitter informando que, de maneira unilateral, os Estados Unidos designarão o grupo Antifa – abreviatura popular do termo anti-fascism, na língua inglesa – como organização terrorista. Após, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro replicar o referido pronunciamento de Trump em seu perfil pessoal da mesma plataforma. 

Neste breve artigo, especificamente, não se busca adentrar na constitucionalidade da intenção do presidente norte americano, ou, até certo ponto, discutir a legitimidade e a pauta do movimento antifascismo, mas sim contestar: no Brasil, podemos classificar o movimento antifascismo como organização terrorista? 

Para melhor responder esse questionamento, há que se apontar, inicialmente, algumas breves considerações sobre o tema proposto. 

A interpretação acerca do fenômeno terrorismo é incerta e inconstante, pois sofre modificações em sua definição conforme o cenário político, legal ou geográfico onde está inserido. Ainda, deve-se levar em consideração o fator temporal que envolve essa classificação, vez que a interpretação sobre determinado movimento social pode variar conforme o momento histórico utilizado como parâmetro. 

Exemplo clássico dessa variação, especificamente, é a denominação atribuída aos mujahidins do Afeganistão. Durante a Guerra Afegã-Soviética (1979-1989), as forças contrárias aos regimes socialistas eram consideradas aliadas às nações do ocidente, as quais contribuíam indiretamente para o conflito apoiando a resistência armada. Posteriormente, ao término do conflito e com a queda da União Soviética, as nações que outrora auxiliavam esses grupos agora os classificam como organizações de cunho terrorista, valendo-se da retórica política para tanto. 

Similar é a divergência no âmbito jurídico-doutrinário. A literatura internacional penal dispõe de diversas categorizações das espécies de terrorismo, cada uma com critérios próprios e específicos[1]. Isso, por sua vez, ocorre mesmo com nações classificadas na história contemporânea como aliadas: a legislação antiterrorista norte-americana não se assemelha às normas inglesas, alemãs ou francesas sobre o tema. 

No Brasil, essa classificação jurídica é recente. Popularmente conhecida como legislação antiterror – ou antiterrorista – a Lei 13.260/2016, publicada em 16 de março de 2016, tipificou o crime de terrorismo e deu cumprimento aos mandados de criminalização contidos no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição da República.[2]

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Aprovada em regime de urgência pelo Congresso Nacional, a definição escolhida pelo legislador está prevista em seu artigo 2º, com a seguinte redação:  

O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.[3]

Segundo o professor Marcelo Rodrigues da Silva, “para que reste caracterizado o crime de terrorismo, a lei exige a satisfação cumulativa de 5 elementos[4], nomeando-os como: elemento subjetivo; elemento objetivo; elemento causal; elemento finalístico; e, por fim, elemento de atuação ou instrumental.[5]

Para responder à pergunta anteriormente proposta, podemos focar em um único elemento indispensável à consumação do delito de terrorismo: o elemento causal. 

De modo a assegurar esse requisito do tipo penal, a conduta praticada exige que a motivação do agente seja realizada por razões de xenofobia, discriminação, preconceito de raça, cor, etnia ou religião. Nesse segmento, o legislador propôs um rol taxativo, e não exemplificativo, em que aponta as únicas hipóteses onde a legislação antiterror será aplicada. 

Nota-se, pois, manifesta omissão no que diz respeito à motivação política como possível elementar do delito nas condutas tidas como terroristas. 

Em obediência ao mandamento da legalidade que rege o processo de criminalização de condutas, não caberia aos juízes ou promotores de justiça suprir essa lacuna legislativa. Não se trata, ainda, de questão interpretativa e passível de subjetividade jurídica, pois os elementos causais descritos na conduta são claros e exemplificados. 

Excluído o fator político, ações contrárias a governos ou determinados líderes não poderão ser interpretadas como condutas terroristas, assim como atos motivados pelo intuito de oposição direta em face de eventual governo estabelecido, hipóteses estas que, certamente, englobariam os movimentos denominados antifascistas. 

Há uma razão, no entanto, para essa omissão legislativa – que, pelos moldes legais da legislação antiterrorista brasileira, deixaria de fora grupos como o Pátria Basca e Liberdade, que lutava pela formação de um Estado independente, e o Exército Republicano Irlandês, movimento de insurgência contrário ao governo do Reino Unido.

Convém ressaltar, nesse aspecto, o período em que a Lei Antiterror foi introduzida ao debate político. Diversos protestos sociais eram deflagrados em território brasileiro em razão da crise política e econômica existente à época do governo de Dilma Rousseff. Confrontos entre manifestantes e agentes de segurança pública resultaram em danos consideráveis aos patrimônios público e privado, amplamente reportados pela mídia nacional e internacional, o que dividiu opiniões quanto à legitimidade dos movimentos em razão dos atos isolados de vandalismo e insurgência. 

Consequentemente, até a aprovação em definitivo do Projeto de Lei que originou essa legislação, a criminalização dos movimentos sociais e demais entidades era um cenário possível por intermédio dos efeitos da Lei Antiterror, eis que a resposta penal – isto é, criação de novas condutas criminais ou aumento de penas – costuma ser a praxe estatal quando em confronto às crises sociais complexas. 

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Diante da pressão popular de diversas organizações não governamentais, após a proposta de substitutivo ao Projeto de Lei 101/2015 pelo Senado Federal, a Câmara dos Deputados rejeitou as modificações recomendadas e enviou à sanção da Presidente a redação original da Lei Antiterror, com previsão de uma hipótese de exclusão da criminalização proposta.

Assim, estabeleceu-se no artigo 2º, § 2º, da Lei 13.260/2016: 

  • 2o O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.[6]

Com base nessa disposição, é possível concluir que o livre exercício de manifestação, em regra, não implicará na aplicação das sanções previstas na Lei antiterrorismo, evitando-se, razoavelmente, a associação entre movimentos sociais e organizações terroristas. 

Há, portanto, uma dupla barreira que impede eventual classificação dos movimentos antifascistas como organizações terroristas, seja pela ausência do elemento causal – motivação política – ou, também, pela vedação proposta no § 2º do artigo que descreve o tipo penal. 

Em matéria de proporcionalidade, por fim, eventuais comparativos entre organizações terroristas e os movimentos antifascistas ultrapassariam qualquer âmbito da racionalidade, vez que estaríamos assimilando referidos movimentos sociais a grupos que, de fato, merecem uma classificação mais enérgica, como Al-QaedaTalibanEstado IslâmicoFARCAbu Sayyafdentre outros. 

Essa banalização do conceito – e equiparação forçosa –, por seu turno, resultaria em mitigações de garantias constitucionais, pois em uma perspectiva de combate ao terrorismo, os fins certamente justificariam os meios pela ótica do imaginativo popular, dando forma à aberrações jurídicas como o Patriot Act americano, legislação amplamente controversa que concede poderes extraordinários às forças de segurança norte-americana, aprovada em regime de urgência após os atentados de setembro de 2001. 

Podemos aprender com a experiência do país de Trump, pois o resultado certamente foi catastrófico: alguns meses depois, iniciou-se discussão nos Estados Unidos sobre a legitimidade da tortura em interrogatórios de supostos terroristas[7]. É, de fato, um caminho sem volta.   

Ora, a finalidade das manifestações sociais encontra respaldo na Constituição Federal, onde as liberdades de pensamento e manifestação promovem a solidificação de um Estado Democrático de Direito. Ademais, por mais que se demonstre violenta e certo grau de medo seja disseminado, a finalidade principal das manifestações sociais diverge dessas consequências, o que exclui o núcleo primordial do fenômeno terrorista e, como resultado, eventual tentativa de atribuir erroneamente aos movimentos antifascistas esse rótulo já vulgarizado. 


André Malczewski é pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC. Pós-graduado em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Advogado criminalista em Curitiba/PR.

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Notas:
[1] ALMEIDA, Débora de Souza de et al. Terrorismo: comentários, artigo por artigo, à Lei 13.260/2016 e aspectos criminológicos e políticos criminais. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 22.
[2] Artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem […]”. In: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Vide Emenda Constitucional n. 91, de 2016. 
[3] BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. 
[4] SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações terroristas: intersecções e diálogos entre as leis 12.850/2013 e 13.260/2016. In: HABIB (Coord.), 2017, p. 198.
[5] SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações terroristas: intersecções e diálogos entre as leis 12.850/2013 e 13.260/2016. In: HABIB (Coord.), loc. cit.
[6] BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. 
[7] Para conferir os denominados “memoriais da tortura”: https://www.theatlantic.com/national/archive/2012/02/the-torture-memos-10-years-later/252439/.  

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