terça-feira, 16 de junho de 2020

Lembremo-nos (das truculências dos militares) de 1977, por Plínio Gentil


“Em Universidades a Polícia só pode entrar pelo vestibular”. É o que diz, logo após a conhecida invasão do campus da PUC de S. Paulo, o então cardeal arcebispo da Capital, D. Paulo Evaristo Arns




do Coletivo Transforma Ministério Público

Lembremo-nos de 1977 

por Plínio Gentil

Por vezes violenta, por outras inexplicavelmente complacente, a polícia militar recebe freqüentes críticas, dos mais variados setores. No momento atual, em que alguns governantes, explícita ou implicitamente, incitam os excessos e a ruptura institucional, é sempre bom alimentar o espírito dos democratas com a recordação de passagens representativas da resistência ao abuso e de afirmação da cidadania, notadamente de um tempo em que a sociedade clamava por respeito à vida e, no jargão da época, pelas liberdades democráticas. Melhor ainda quando salpicadas de traços pitorescos de um lado, heroicos de outro. Para quem tem este gosto caipira por contar e ouvir causos, aí vai:
“Em Universidades a Polícia só pode entrar pelo vestibular”. É o que diz, logo após a conhecida invasão do campus da PUC de S. Paulo, o então cardeal arcebispo da Capital, D. Paulo Evaristo Arns, grão-chanceler da universidade e presidente de sua fundação mantenedora. A invasão por tropas da Polícia Militar ocorreu porque havia a notícia de que ali se preparava um novo congresso de estudantes, o III Encontro Nacional. Corriam os anos de chumbo, mais precisamente 1977, e a Pontifícia Universidade Católica não despertava nenhuma simpatia por parte do regime militar. Ela já se tornara, fazia anos, uma conhecida trincheira de resistência aos abusos dos porões da ditadura, aparatos à margem dos governos militares, mas que por longo tempo atuaram com sua complacência. Estavam acostumados a agir sem controle e já tinham feito incontáveis vítimas, tidas como praticantes de suicídiomortas em confronto com a polícia, ou simplesmente desaparecidas. Para agravar a ira da ditadura, a universidade teve o desplante de acolher em seu corpo docente professores sumariamente demitidos, ou aposentados pelas universidades estatais, por suas convicções políticas progressistas.
A força policial era comandada pelo coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança Pública do Estado, posto no cargo pelo segmento mais reacionário do governo federal, que tinha seu expoente no ministro do Exército, Sylvio Frota; este, menos de um mês depois, seria demitido pelo presidente da república Ernesto Geisel, pois era um obstáculo à distensão política “lenta, gradual e segura” do presidente. A demissão de Frota foi um acontecimento, pois até então, na história da ditadura brasileira, era o Exército quem dava ordens ao presidente e não o contrário; foi a partir daí que a abertura política avançou, culminando com a revogação do AI-5, a suspensão da censura e, mais tarde, a lei da anistia. Foi nesse contexto que D. Paulo, sua equipe e a universidade que dirigiam escreveram belas páginas de resistência ao arbítrio e à violência do regime, que por isso mesmo lhes demonstrava solene e explícita má vontade, do que a invasão é uma expressão eloqüente. A enorme vantagem da PUC nessa resistência é que ela não devia explicações aos governos, municipal, estadual, ou federal, tendo como chefe supremo ninguém menos do que o Papa – então Paulo VI -, líder de uma instituição milenar, contra a qual quase nenhum governo se anima a brigar. Mesmo tendo em massa abraçado a Teologia da Libertação, havia uma posição de certo conforto no enfrentamento do regime, por vezes colorida com passagens dramáticas, como uma, que se deu na própria noite da invasão, e atualmente é contada pelo padre Edênio Valle, na época vice-reitor da universidade. É mais ou menos a seguinte:
Naquele início de noite havia no campus alguns acadêmicos de outras universidades e cidades, que ali se reuniriam com o objetivo de preparar o famigerado encontro de estudantes, proibido pelo governo. Sendo “de fora” da PUC, não teriam desculpas para explicar sua presença ali, caso fossem apanhados, e possivelmente seriam submetidos às costumeiras sevícias da máquina da repressão. Foram, então, se esconder na torre da capela, que faz parte do “prédio velho” da Rua Monte Alegre e cujas grossas portas de madeira foram trancadas por dentro, dando abrigo aos “fugitivos”. Enquanto isso, a violência da invasão seguia o manual: policiais arrombando portas, soltando bombas de gás, pondo fogo em dependências do campus, destruindo livros; alunos e funcionários lesionados; filas de estudantes sendo detidos num estacionamento em frente à entrada principal… enfim o caos. Alguém noticiou ao coronel Erasmo a presença de estudantes suspeitos na torre da Igreja do Imaculado Coração de Maria, na verdade a conhecida capela da universidade. Ele chamou o padre Edênio e ordenou que abrisse a igreja. Este argumentou que, segundo as normas eclesiais, somente o pároco da capela, como o responsável direto, poderia autorizar essa medida. Erasmo então foi ao pároco – ficarei devendo seu nome – e deu-lhe a mesma ordem. O altivo pároco simplesmente respondeu: “eu não abro, não posso fazer isto, o senhor, se quiser, que arrombe a porta e faça o que bem entender, é sua responsabilidade”. Erasmo, que esperava tudo, menos por isto, vacilou… Nunca aquelas portas de madeira talhada, que subitamente se agigantavam diante dele, poderiam lhe ter parecido tão pesadas. Pensou, fingiu conversar com alguém, coçou a cabeça, disfarçou… e decidiu ir fazer outra coisa. Os estudantes, abrigados na torre, sobreviveram incólumes e as espessas portas da capela permaneceram trancadas, guardando a vida dos que ali pediram abrigo.
Por mais forte que seja, o poder do arbítrio pensa mil vezes antes de violar o espaço sagrado, notadamente de uma instituição que só deve satisfações ao Vaticano… Pois bem, sem D. Paulo Evaristo, sua universidade e os bravos guerreiros que a defenderam, sem o compromisso de todos eles com a salvação dos perseguidos e a libertação dos explorados, algumas dessas páginas de heroísmo, que tanto ânimo nos dão, jamais teriam sido possíveis e, além disso, muito mais vidas teriam se perdido naqueles anos cinzentos. Ocorre que no tempo presente repete-se a necessidade de luta por justiça social e por legalidade democrática. E, por fim, se na PUC só se entra pelo vestibular, por aquelas portas da sua capela só devem passar pessoas de boa vontade. Também os noivos, que se forem alunos têm desconto, reza a lenda, na cerimônia de seu casamento. Mas isto já é um outro causo.
Plínio Gentil – Procurador de Justiça em S. Paulo. Associado fundador do Coletivo MP Transforma. Professor da PUC-SP.

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