Hipácia, 370-415 d.C.
“Proteja seu próprio direito de pensar. Mesmo pensar erroneamente é melhor do que não pensar”
Hipácia de Alexandria
Texto de Carlos Antonio Fragoso Guimarães
A cidade de Alexandria, no Egito, fundada por Alexandre Magno, sempre foi retratada, com justiça, como o farol intelectual do mundo antigo por haver, por séculos, patrocinado a maior biblioteca e centro de pesquisas em ciências da antiguidade.
Mesmo nos primeiros séculos a era Cristã, Alexandria, apesar dos ataques contra sua fabulosa biblioteca nos períodos de Cleópatra e do Império Romano, ainda era um marco da intelectualidade até finalmente, em inícios do século VI, ser totalmente vilipendiada por fanáticos do movimento crescente do cristianismo, segundo a doutrina dos pais da Igreja atrelados ao bispado de Roma.
Foi exatamente nesse período que brilhou a última e mais bela luz da sabedoria grega clássica encarnado em corpo de mulher: Hipácia (ou Hipátia, 371 – 415) que era a filha do diretor da biblioteca de Alexandria, o matemático e também filósofo, Têon.
Este esclarecido diretor estabeleceu um lar saudável, com forte ênsfase no desenvolvimento intelectual, não esquecendo o ideal de que a uma mente sã é mantida e equilibrada em um corpo igualmente sadio. Assim, Têon, muito ligado à filha, que igualmente o idolatrava, não poupou esforços para bem educar a bela menina, que cresceu em graça, inteligência e encanto.
Hipácia nasceu em 370 exatamente no melhor lugar do mundom, à época, para desenvolver os dotes intelectuais, mas provavelmente no tempo errado, já que a cidade estava se tornando o foco de batalha entre intelectuais, muitos espiritualizados, que seguiam, como Hipácia, o Neoplatonismo de Plotino e Jâmblico, e “cristãos” que, estimulados pelo Imperador Teodósio, jugavam ser seu dever esmagar todo e qualquer traço de filosofias entendiadas como nocivas – embora viessem a adotar muitos dos conceitos neoplatônicos posteriormente. O ódio dos “convertidos” mais se exaltavam diante das discussões racionais dos filósofos tradicionais que apontavam furos na teologia ortodoxa, estranha em vários pontos à mensagem original de Cristo, e que estava se formando, misturando o judaísmo do antigo testamento com elementos da própria tradição pagã para formar o ritual e a interpretação salvífica cristã, que alguns pagãoes mais ilustrados diziam não encontrar mesmo nos que se expressava nos evangelhos. Infelizmente, o fundamentalismo evangélico e da corrente mais tradicionalista da Igreja Católica parece estar se repetindo nos dias de hoje em muitas "novas" seitas...
Todos os registros sobreviventes falam do grande carisma e extraordinária inteligência de Hipácia, mas seus escritos foram caçados pela Igreja nascente, que não via com bons olhos o fato de uma mulher ser culta, instruída e, acima de tudo, crítica de uma teologia que se afastava a olhos vistos dos ideais espirituais de seu fundador. Têon, seu pai, não pareceu se destacar no âmbito filosófico, mas era um bom matemático e elaborou um estudo dos trabalhos em geometria de Euclides que serviu de base para as edições posteriores dos seus “Elementos”, até os dias de hoje.
Também Hipácia tinha brilho intelectual próprio, provavelmente ainda mais que seu pai, já que ao lado de seu talento matemático ela possuia extraorinários dotes filosóficos. Já vimos que todos os seus escritos foram brutalmente destruídos, embora, séculos depois, tenha sido encontrada na Biblioteca do Vaticano uma cópia de seu comentário sobre o matemático Diofanto, e vários comentários de seus alunos -muitos deles cristãos, sendo alguns posterioremente bispos e teólogos de roneme - são enfáticos em destacar o brilho da jovem mestra.
Hipácia era uma cientista. Tinha grande talento para o estudo da física, além da matemática, tendo escrito, segundo fragmentos de seus alunos, como Sirenius e Hesíquio, e historiadores como cristãos, Sócrates Escolástico, livros sobre questões de geometria e do movimento dos corpos. Ela possivelmente foi a responsável por melhorias técnicas em instrumentos de medição, como o astrolábio e diferentes modalidades de hidrômetros. Ciente de sua singularidade intelectual – e de sua beleza cobiçada por muitos -, Hipácia tinha plena consciência de que vivia em um tempo difícil, onde a sabedoria pagã antiga estava sendo cercada por uma interpretação infantil baseada, não na liberdade responsável da ética cristã, mas na mitologia pueral do antigo testamento dos hebreus afetadas por elementos do paganismo romano. Receosa de que uma vida doméstica comum a impedisse de dar sua própria contribuição à preservação dos tesouros da sabedoria acumulada na Biblioteca e Museu de Alexandria, ela resolveu permanecer solteira, casada apenas com a ciência. Suas aulas eram concorridas e sua competência como filósofa e professora ficam claras nessa passagem de um autor cristão, Sócrates Escolástico:
“Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipátia, filha do filósofo Têon, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos de seu tempo. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe para receber seus ensinamentos.”
Vale lembrar que Hipácia havia concluído seus estudos em Atenas, onde também chamara a atenção dos membros remascentes da antiga Academia de Platão, do Liceu de Aristóteles e dos celebrantes dos mistérios órficos e pitagóricos. Com toda essa bagagem, antes mesmo dos trinta anos Hipacia já era a nova – e infelizmente, a última – diretora da Grande Biblioteca de Alexandria. Hipácia se tornou célebre tanto por sua inteligência quanto por sua beleza. Precisamos destacar que Hipácia era tolerante para com a corrente religiosa crescente do cristianismo. Entre seus alunos estavam pagãos e cristãos, alguns destes últimos renomados, como Sinesius de Cirene, que se tornou bispo e teólogo conhecido, entre outros que sempre, em suas cartas, expressaram grande admiração por sua jovem professora.
As inevitáveis disputas religiosas e conflitos políticos entre lideranças de Alexandria, especialmente entre o pagão neoplatônico e amigo de Hipácia, Orestes, e o novo e fanático bispo de Alexandria, Cirilo, acabariam por envolver Hipácia involuntariamente. Por ser sábia, mulher e pagã, sua luz inflamou a ira de Cirilo e de seus seguidores mais fanáticos, à semelhança com o que aconteceria séculos depois na Renascença, em Florença, onde o fanatismo de um Savonarola iria levar à destruição pública de livros e quadros dos lumiares do renascimento italiano.
Por fim, o discurso venenoso de Cirilo levou a insuflar e estimular um ataque fatal e cruel contra Hipácia. Os registros dizem que em uma manhã, no período da quarema do ano 415 – onde teoricamente os cristãos deveriam manter-se longe do pecado – um grupo de exaltados seguidores de Cirilo cercaram a liteira de Hipácia, que vinha vindo da Biblioteca em direção à sua casa.
A multidão enfurecida arrancou-lhe os cabelos e a roupa, esfolou a sua pele com carapaças de ostras, arrancaram-lhe os seus braços e pernas, e queimaram o que restou do seu corpo. Atitude de um verdadeiro furor bárbaro. Logo depois, a própria Biblioteca seria o alvo dos ataques ensandecidos dos seguidores de Cirilo. Este, como recompensa, foi declarado santo pouco depois de sua morte pelos maiorais da Igreja de Roma.
Em 2009, o diretor espanhol Alejandro Amenábar dirigiu um filme maravilhoso chamado Ágora. O papel de Hipácia foi desempenhado pela bela atriz inglesa Rachel Weisz. Sobre este filme, escreve lucidamente Frei Betto:
Difícil arte de ser mulher
Frei Betto
Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi “Ágora”, direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em “O jardineiro fiel”, dirigido por Fernando Meirelles.
Em “Ágora” ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro.
Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.
Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.
O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina.
Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes.
Onde há oferta de produtos – TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em telenovelas – o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado. É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.
Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, “Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem”. Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.
Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: “gata”, “vaca”, “avião”, “melancia” etc.
Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos).
Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a mulher-objeto (de consumo).
Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher.
No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.
Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade?
Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjetividade.
Bibliografia
Dzielska, Maria. Hipatia de Alexandria. Editora Siruela, Madrid, 2009.
Miranda, Herminio Correia. Guerrilheiros da Intolerância. Hipácia, Giordano Bruno e Annie Besant. Publicações Lachatre, Niterói, 1999.
Verbete Hipátia, da Wikipédia: pt.wikipedia.org/wiki/Hipátia
Entrevista do Diretor Alejandro Amenábar sobre o filme Ágora, no Youtube em http://www.youtube.com/watch?v=6tYfRWN1fJA
e em http://www.youtube.com/watch?v=mBokDBqU1Vk&NR=1
João Pessoa, 08/01/2010
Já tive a oportunidade de ler relatos sobre essa epoca obscura e deploravel da nossa 'civilização' ocidental,porisso me tornei adepto ao ateissmo,acho que a roma de Constantino adulterou e fojou a Bíblia à sua maneira mais adequada para governar,sob a égide da hipocrisia,criando esses mostros chamados 'cristãos'como os papas e fundamentalistas em geral.Acho que esse tipo de relgião com o tempo vai acabar,como se ver nos meios academicos europeus!!
ResponderExcluirQuando eu me casei em 95, eu continuei com o mesmo nome de solteira. o juiz, afirmou três vezes e perguntou ao meu marido, ele falou?
ResponderExcluir- O nome ´e dela , ela é dona do proprio nariz
ai ele parou de perguntar quase mandei ele tomar naquele lugar, e ainda tive que aguentar a bronca que recebi tanto de minha mãe como de minha sogra.