“O ódio que você semeia” é o livro de estreia da escritora negra Angie Thomas. Best Seller, foi adaptado para o cinema com sucesso de crítica e bilheteria
Imagem: Cena do filme “O ódio que você semeia” (2018), baseado no livro homônimo de Angie Thomas.
Por Marco Aurélio da Conceição Correa, no Justificando
Quando acontece
“Faça o que mandarem você fazer […]. Mantenha as mãos à vista. Não faça movimentos repentinos. Só fale quando falarem com você” (THOMAS, 2017, p. 27) [1]. Estas são algumas das recomendações a serem seguidas por qualquer jovem negro caso passe por alguma abordagem policial. E são também os passos presentes na conversa que Starr teve com seu pai logo no início do romance estadunidense O ódio que você semeia (2017) da autora Angie Thomas. Starr, a protagonista, é uma jovem negra de um típico gueto dos Estados Unidos. O que a torna sua vida diferente é estar no local errado na hora certa.
O ódio que você semeia é o livro de estreia da escritora e foi um sucesso em seu lançamento, por sua pertinência em lidar com a questão da violência dos policiais a partir do ponto de vista de uma adolescente negra, questionando toda a brutalidade policial no contexto da atual tensão racial vivida nos Estados Unidos. O livro alcançou o primeiro lugar na lista do New York Times e foi adaptado para o cinema rendendo aclamação da crítica e sucesso nas bilheterias dos Estados Unidos.
A trama da narrativa se desenrola após a súbita morte de Khalil Harris, ao ser alvejado injustamente por um policial em serviço após uma descabida abordagem de transito. Khalil, amigo de infância da protagonista, dava carona para Starr após uma festa quando foi parado pelo policial que, ao exceder a sua autoridade por desconfiança, dispara três tiros mortais no jovem negro. Khalil foi abatido por causa do medo do policial Um-Quinze, foi morto por não seguir o protocolo esperado de jovens como ele, foi assassinado porque o policial confundiu uma escova de cabelos em seu carro como uma arma. Khalil foi morto por causa do “medo, da surpresa e da violenta emoção”.
Assim como Khalil, milhares de jovens negros dos Estados Unidos morrem todos os anos, como Michael Brown dos protestos de Ferguson, Eric Garner do estrangulamento na luz do dia de Nova Iorque e Oscar Grant, alvejado na virada do ano na Fruitvale Station em Oakland, dentre muitos outros que só recebem atenção devido a comoções públicas como o movimento #BlackLivesMatter.
No contexto brasileiro, apesar das devidas diferenças culturais e sociais, a violência policial causa inúmeras mortes injustas diariamente, como nos casos do pedreiro Amarildo, da auxiliar Cláudia, do dançarino DG, dos meninos de Costa Barros, todos casos que ganharam repercussão pela inocência das vítimas e da impunidade dos policiais irresponsáveis.
O Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro traz uma série de alterações nas leis penais como forma de tornar mais “eficaz” os processos judiciais. Dentre o conjunto de alterações que foi amplamente analisado e criticado, o item que mais alerta os especialistas e ativistas dos direitos humanos é justamente o que se relaciona com as abordagens policiais, o risco de morte e o direito de legítima defesa, através do acréscimo da arbitrária expressão “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” para caso de vítimas de agentes de segurança pública no exercício da legítima defesa.
Não podemos, é claro, generalizar estas críticas às tentativas de otimização do código penal e acreditar que caibam a toda a instituição de segurança pública ou jurídica – como a polícia militar – já que os próprios policiais sofrem com o descaso público, a má remuneração, o risco de vida e desvalorização social – assim como muitas outras profissões sofrem atualmente, como os professores. Talvez, se estes profissionais recebessem o devido retorno pelo seu arriscado trabalho, casos de mortes desnecessárias como a morte do personagem Khalil por confundir uma arma com uma escova, ou então casos similares ao confundir um guarda chuva, ou uma furadeira ou peça de moto com uma arma, não ocorressem.
Porém, ao invés de servir e proteger sua população, a polícia brasileira funciona como um aparato estatal para defender os lucros e as propriedades de uma elite. Grupo que através de outros aparelhos de controle consegue disseminar suas ideias entre os segmentos populares da sociedade. Estas concepções são a manipulação consciente de um populismo penal em benefício das atuais elites dominantes e, sobretudo, das elites jurídicas que o formularam – deixando evidente a distância entre uma elite jurídica e o povo que ela deveria servir.
As premissas que “bandido bom é bandido morto” e que a polícia deveria ter “carta branca” para agir permeiam o senso comum de parte da população e, sendo reforçada de maneira enfática, repetidas vezes, acabam proporcionando a consolidação de políticas que ao invés de diminuir a criminalidade focam-se em aumentar as condenações. O que é uma controvérsia já que “a própria eficácia do processo penal, quando medida por sua capacidade de condenar, já é uma asserção equivocada de uma elite jurídica. Essa ânsia pela punição e não pela solução cria um intolerante estado de terror e medo no Brasil contemporâneo.
Capa do livro “O ódio que você semeia” (2017), de Angie Thomas.
O medo das diferenças causa o ódio ao outro
“Pac disse que Thug Life, “vida bandida”, queria dizer The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody, ou “o ódio que você passa pras criancinhas fode com todo mundo” (THOMAS, 2017, p. 23). Este é um trecho do diálogo entre Khalil e Starr antes dele ser baleado por suspeita do policial Um-Quinze. Este alegou “escusável medo, surpresa” para justificar a sua legitima defesa e inocência. Starr era a única testemunha do assassinato de seu jovem amigo, era ela que podia gritar por justiça, porém o medo das consequências de ser a voz que denuncia a violência urbana a estremeceu e congelou. O medo e o terror da vida urbana fazem mal a todo mundo.
A atual e agravante situação de crises, desempregos, inflações e incertezas proporcionam que cada vez mais as desigualdades sociais se acentuem nos fazendo viver em um constante estado de exceção. Nestes tempos de cólera, cada vez mais as tensões sociais são agravadas criando um estado de intolerância, onde qualquer forma de diferença pode ser vista como uma ameaça a própria integridade.
É impossível se pensar neste crescimento do terror moderno sem abrir as chagas do racismo brasileiro. A desumanização do lucro com o trabalho forçado dos africanos escravizados criou nas sociedades descendentes do colonialismo atlântico um estado de terror, no qual para o grupo dominante manter a sua segurança era preciso decidir quem morreria.
Esta política das mortes baseadas na tecnologia do racismo é fundamentada no conceito de necropolítica do filósofo Achille Mbembe. A necropolítica seria a forma em que os Estados tardo modernos – junto às elites – atuam para manter o controle social através da execução do poder de morte daqueles que representam uma ameaça à seguridade do estado. Ou seja, criando aparatos legais, midiáticos e sociais para justificar o genocídio da parcela preta, pobre e periférica da população. Em tempos de neoconservadorismo, vemos não só uma aclamação popular pela morte, como políticas de institucionalização do necropoder, como no caso da discussão da Lei Anticrime.
O ódio e a morte do outro seriam assim a forma de garantir a segurança da existência de uns, junto com suas concepções morais, epistemológicas e culturais. Como afirma Mbembe:
“Na lógica da sobrevivência, ‘cada homem é inimigo de todos os outros’. Mais radicalmente, o horror experimentado sob a visão da morte se transforma em satisfação quando ela ocorre com o outro. É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente” (2015, p. 141) [2].
A irracionalidade deste estado de sobrevivência, onde até o porte de armas é visto como uma segurança apesar de inúmeras pesquisas garantirem o contrário, cria um estado de trauma que afeta tanto o oprimido quanto o opressor. Configurando assim um ciclo onde o oprimido traumatizado pela violência do opressor age na lógica da sobrevivência tendo que apelar a crimes para subsistir, enquanto estes delitos traumatizam o opressor que cada vez mais intensifica sua opressão com os outros marginalizados. O ódio que é semeado ferra com a vida de todo mundo. Exemplo deste trauma é o filme Praça Paris (2017) que deixa evidente o quanto o trauma pode ser nocivo para as classes populares como para as classes privilegiadas.
A grande questão deste ciclo é que, por deter os aparelhos tecnológicos e de poder que influenciam o senso comum e a opinião pública, as elites econômicas e políticas brasileiras conseguem disseminar este medo ao diferente para o restante da população desde o período colonial. No exercício de seu poder, subvertem quem seria o oprimido na contemporaneidade:
“No mundo conceitual branco, o sujeito Negro é identificado como o objeto ‘ruim’, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformando em tabu, isto é, agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inquietude que sua história causa” (KILOMBA, 2010, p. 174) [3].
“Enquanto o sujeito Negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano” (KILOMBA, 2010, p. 173-174).
Cria-se, assim, uma suposta ideia de que a pequena elite seria tiranizada pelos direitos humanos das massas minoritárias, idéia que se presta a deslegitimar décadas de lutas e avanços nas causas sociais. É aqui onde entra a importância de uma narrativa como O ódio que você semeia, pois além de denunciar todo este aparato social que justifica a violência policial, a trajetória de Starr nos evidencia como a vida é mais plural e potente do que simples polarizações e falsas dicotomias, afirmando que a voz é o artefato que pode reverter este cenário de desigualdades.
Cena do filme “O ódio que você semeia” (2018), baseado no livro homônimo de Angie Thomas.
A voz que não se cala
“Esse é o problema. Nós deixamos as pessoas dizerem coisas, e elas dizem tanto que se torna uma coisa natural para elas e normal para nós. Qual é o sentido de ter voz se você vai ficar em silêncio nos momentos que não deveria?” (THOMAS, 2017, p. 253). Apesar de todo o trauma vivido pela protagonista Starr ela decide falar. Mesmo com a pressão das gangues locais, com as quais Khalil supostamente tinha um envolvimento, mesmo com a preocupação de seus familiares, mesmo com a desaprovação de seus colegas brancos da escola particular, mesmo com o medo da própria violência policial que ela busca criticar. Starr fala.
É o mesmo que faz a autora Angie Thomas, ela fala, conta e narra em O ódio que você semeia seus próprios traumas e inquietações. Indignada pelos assassinatos de jovens negros que compuseram a insurgência do movimento #BlackLivesMatter, a autora, que tem uma história de vida nos guetos parecida com a sua protagonista, não se cala e dá um grito contra o racismo. Como aponta Fanon: “existe na posse da linguagem uma extraordinária potência” (2008, p. 34) [4].
A auto inscrição de autoras e autores negros sobre suas vidas, sobre suas experiências, é uma forma de criar uma outra narrativa, uma outra história para as populações negras da diáspora africana. O campo estético das narrativas, sejam literárias ou cinematográficas, é um espaço de disputa de poderes. Denunciar estas estereotipações que contribuem com o racismo é uma forma de combatê-lo. Não ser reconhecido como digno é a própria morte e a necropolítica age não só na morte física mas na morte simbólica, no epistemicídio. Lutar por uma outra representação estética é gritar contra o injustificável.
Cena do filme “O ódio que você semeia” (2018), baseado no livro homônimo de Angie Thomas.
“Para além da evidência das fraturas e da difração, a experiência dos escravos africanos no Novo Mundo reflete uma plenitude de identidade mais ou menos comparável, mesmo que as formas de sua expressão difiram, e mesmo que não haja nenhum livro. Tal como os judeus no mundo europeu, eles têm que “narrar a si mesmos” e “narrar o mundo”, e lidar com este mundo a partir de uma posição na qual suas vidas, seu trabalho e seu modo de falar (langage) são parcamente legíveis, pois estão envolvidos em embalagens fantasmagóricas. Eles têm que inventar uma arte de existir em meio à espoliação, mesmo que agora seja quase impossível invocar o passado e lançar sobre ele algum encantamento, exceto talvez nos termos sincopados de um corpo que constantemente é transformado de ser em aparência” (MBEMBE, 2001, p. 189-190) [5].
Em tempos de cólera e de intolerância é preciso celebrar a vida, criar uma poética insubmissa da existência ao contrário da lógica fascista da sobrevivência. Ao invés de dividir para se consolidar as diferenças em hierarquia é preciso denunciar este esfacelamento e semear a comunhão e as diferenças em harmonia. As narrativas negras como O ódio que você semeia seguem este movimento de se pensar uma outra prática civilizatória.
Marco Aurélio da Conceição Correa é graduado em pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Notas:
[1] THOMAS, Angie. O ódio que você semeia. Galera Record. 2017.
[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Temáticas, n º 32, 2015.
[3] KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição. Traduzido por Jessica Oliveira de Jesus. 2010.
[4] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
[5] MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Estud. afro-asiáticos, vol.23, n.1, pp.171-209. 2001.
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