Podemos dizer que quando o espiritismo surgiu, primeiro nos Estados Unidos, a partir do famoso fenômeno das irmãs Fox e depois desenvolveu-se na França sob a liderança do educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, chamado de Allan Kardec, era uma ideia à esquerda, progressista, aliada a outras ideias de vanguarda na época. Estava em diálogo com socialistas utópicos – muitos dos quais, como Charles Fourier ou Jean Reynaud eram reencarnacionistas – era representado por mulheres feministas (já no primeiro momento nos EUA), era republicano, a favor da educação pública, laica, universal… ou seja, os primeiros espíritas não eram monarquistas, tradicionalistas, a favor dos privilégios aristocratas ou burgueses.
O próprio Kardec, para focar mais nessa personalidade que sintetiza o espiritismo trazido ao Brasil e cultivado entre nós, por aqueles que se dizem seus seguidores, era um homem que trabalhou durante anos pela educação das classes populares, pelo direito da mulher à educação (tendo se casado com uma mulher 9 anos mais velha do que ele, também intelectual e educadora), pela transformação da sociedade. Sabe-se hoje, por exemplo, que antes de se dedicar ao estudo dos fenômenos espíritas, Rivail manteve uma sociedade com Maurice Lachâtre, editor anarquista, num banco popular, que pretendia disponibilizar créditos para pessoas de baixa renda, favorecendo inclusive trocas de crédito, mercadorias e serviços. Uma ideia que poucos anos mais tarde seria conhecida como Banco do Povo, proposta pelo anarquista Proudhon.
Quando o espiritismo chega ao Brasil, encontra um solo predominantemente conservador, com uma tradição monarquista, jesuítica, distante das heranças pedagógicas que Kardec havia recebido, pelas mãos de seu mestre Pestalozzi, que por sua vez fora influenciado por Rousseau.
Aqui no Brasil, o espiritismo se enraizou, cresceu e nos tornamos o maior país espírita do mundo. Desde sempre, tivemos espíritas progressistas, como Eurípedes Barsanulfo, que em 1907, fundou uma escola em Sacramento, Minas Gerais, com tantos avanços pedagógicos para a época que o educador José Pacheco, da Escola da Ponte, o considera um dos maiores educadores do século XX. Tivemos Anália Franco, que esse ano completa o centenário de morte, abolicionista, republicana e feminista, que criou mais de 100 escolas-creches no Estado de São Paulo, profissionalizando e emancipando mães solteiras – que na época eram um escândalo na sociedade. Tivemos Maria Lacerda de Moura, espírita, anarquista e feminista, que militou pela educação e pelos movimentos sociais. Tivemos Herculano Pires, jornalista, escritor, filósofo, morto em 1979, que foi presidente do sindicato dos jornalistas em São Paulo, homem combativo, engajado em ideias sociais, em propostas pedagógicas e em diálogo com o existencialismo do seu tempo.
Mas, grande contingente de espíritas brasileiros, ainda afeitos ao catolicismo tradicional (não aquele da teologia de libertação), em sua maioria provindos da classe média, aferrou-se a um estilo religioso, conservador, à direita, de entender o espiritismo.
E como todos os movimentos de ideias, religiosas, filosóficas, políticas, há maneiras conservadoras e progressistas de se ler o espiritismo. Diríamos que a progressista tem mais a cara de seu fundador e de seus pioneiros, mas que a conversadora encontra respaldos em trechos do próprio Kardec, quando ele mesmo, dentro de seu contexto, reflete as limitações culturais da época. Nesse sentido, não consideramos Kardec uma espécie de bíblia sagrada do espiritismo. Embora ele seja a referência fundamental para os que se declaram seus seguidores, pode ser lido de maneira histórica, como ele mesmo propunha.
Em pleno século XXI, observa-se que os espíritas brasileiros, em sua maioria, criaram aqui uma nova tradição religiosa, sob a tutela de instituições, e se mantêm arraigados a ideias conservadoras.
Mas existe também, e de modo crescente, um grande contingente – não saberíamos agora quantificar, porque nenhuma pesquisa foi feita sobre o assunto – de espíritas progressistas, no sentido atual do termo.
Espíritas que têm uma posição crítica diante da sociedade em que vivemos, com suas injustiças, desigualdades, que estão dispostos a dialogar com setores progressistas de outras religiões e filosofias, que estão engajados em defender os direitos dos mais excluídos e discriminados.
É claro que espíritas conservadores e progressistas partilham dos mesmos princípios básicos do espiritismo: a existência de Deus, a reencarnação, a comunicação com os espíritos…
Mas a leitura de cada um desses princípios pode ganhar nuanças diversas: Deus pode ser visto como presente e imanente em todos nós, e ao mesmo tempo, presente em todo o universo, como inteligência amorosa, que nos dignifica a todas e todos, Deus pai e mãe, infinito no finito ou pode ser visto predominantemente como um Pai justiceiro, que castiga, um legislador inflexível e distante. A reencarnação pode ser interpretada como uma ideia emancipatória pela qual entendemos que cada espírito se faz a si mesmo, em interação com a coletividade, num projeto existencial através de múltiplas vidas, em liberdade e sem ideia de castigo ou tragédia, num entendimento de que mesmo o mal é um caminho de aprendizado e será superado. Mas a mesma ideia pode ser carregada de sentidos punitivos e a reencarnação vista como expiação cármica, como determinismo de sofrimento. A comunicação com os Espíritos, dentro de uma visão que segue a proposta de Kardec é vista como algo natural, desierarquizado, dessacralizado, em que encarnados e desencarnados aprendem mutuamente na convivência mediúnica e os médiuns não são seres privilegiados, a serem ouvidos como oráculos, mas seres humanos comuns. Já os setores conservadores – e infelizmente hegemônicos – voltam aos atavismos religiosos milenares de submissão a gurus, sacerdotes e intermediários do sagrado – propiciando aliás, as tragédias que temos visto na mídia, de abusos, violências e má fé.
É claro que não podemos passar uma régua no movimento espírita e categorizar rigidamente progressistas e conservadores e criarmos um divisionismo insuperável entre aqueles que deveriam se considerar irmãos em ideias. Há nuanças de ambos os lados, as divisas não são precisas, há progressistas com aspectos conservadores, há conservadores com aberturas progressistas. Tudo é dialético e o ser humano é naturalmente contraditório. A nossa intenção – de espíritas assumidamente progressistas – é de chamar atenção mesmo para os que são conservadores e às vezes nem sabem que são, para a necessidade de deixarmos as visões estagnadas, retrógradas e dogmáticas e caminharmos dentro de um espírito mais libertário, crítico e que possa contribuir para as mudanças urgentes e necessárias desse mundo em convulsão.
Nessa coluna, que hoje inauguramos, de Espiritismo progressista, com minha particular visão libertária, nossas pautas serão essas – as das críticas, das mudanças, das revoluções (não armadas), das propostas engajadas. Escreverei eu e convidarei eventualmente companheiros na mesma sintonia.
Dora Incontri é escritora, doutora em Educação pela USP e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
Fonte do texto: Espiritismo Progressista
Fonte do texto: Espiritismo Progressista
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