sábado, 22 de setembro de 2018

Ciência (e Política) Jurídica: os riscos do ocultamento fácil e da infiltração sutil, por Eliseu Venturi




"Habitualmente nos empenhamos em alcançar, ante todas as situações e acontecimentos da vida, 'uma' atitude mental, 'uma' maneira de ver as coisas – sobretudo a isto se chama ter espírito filosófico. Para enriquecer o conhecimento, no entanto, pode ser de mais valor não se uniformizar desse modo, mas escutar a voz suave das diferentes situações da vida; elas trazem consigo suas próprias maneiras de ver. Assim participamos atentamente da vida e da natureza de muitos, não tratando de nós mesmos como um indivíduo fixo, constante, único" (NIETZSCHE, Friedrich).²

Outro dia, assistindo uma banca de tese, uma situação inusitada chama a atenção.
A partir de um certo aporte teorético de base marxista – obviamente contemporizado por fatos históricos entremeios, o chamado “Século XX” – o candidato utiliza o termo “opressão” para se referir a uma parcela vulnerável da população, hoje abrangida por uma categoria específica de direitos humanos.
Um dos integrantes da banca, evidentemente desconhecendo a referida teoria (que estava, contudo, esmiuçada no documento que ele supostamente teria lido) e colocando-se a toda evidência em um ponto claro espectro político sem o fazê-lo com o menor compromisso de clareza, critica veementemente o uso da expressão “opressão”.
Compreende, quase em tom acusatório, o avaliador, um “uso panfletário” do termo e que, assim, melhor se analisasse o problema sob outras ópticas, tal como a da “liberdade”, como que promovendo uma higiene do discurso. Em tom de conselho, indica caminhos que seriam mais sensatos. Afinal, ele encarna a sensatez de um homem elevado.
Do alto de sua crueldade epistêmica e social, adorna a fala com uma tresloucada referência de personagem literário, em sua explicação aristocrata-burguesa, repleta de pompas e traquejos que vão desde entonação de voz até às gesticulações num estilo rococó anacrônico. Um certo tipo de Direito tradicional codificado em signos cafonas não só consome o corpo como a alma e a língua. Acham-se e chamam-se guerreiros corajosos, gênios simples, sábios humildes e generosos: é comovente.
Parece que este membro (caricato) da banca, tipo de figura não rara nos circuitos acadêmicos sob diferentes personagens quase de “commedia dell'arte” (giuridica!) e que se criam em discípulos que crescem tal qual a reprodução dos cogumelos – e que depois se emulam nos Poderes da República com a mesma performance grotesca – não enxergava muito mais longe do que o candidato já então prostrado diante de si, ou a plateia mais atrás, consternada igualmente.
Parece que o avaliador-soberano achava que exclusão social, privação de direitos e invisibilidade social não pudesse propriamente configurar “opressão”, preferindo, então, sugerir enfocar as liberdades do indivíduo, “algo mais asséptico”, deve ter pensado.
O discurso do Professor, assim, além de incongruente com o aporte teórico proposto, foi pouco sensível à realidade social da referida população. Para ele o confinamento pouco importava, sendo que apenas uma situação visível e pública de violência é que seria questionável. Na verdade, na sina público e privado, os direitos pouco importavam.
O avaliando, educadamente, responde, sobre o famigerado “uso panfletário”, que se trata da terminologia da teoria que, documentadamente, fundamenta os pressupostos do modo como o Direito normatiza a questão social naquele específico. Direitos envolvem, pois, teorias sociológicas também, há fundamentação empírica, luta política (não apenas metafísica).
Não se trataria, portanto, de uso panfletário enquanto termo depreciativo, nem tampouco de pura postura política exclusivamente. Era, sim, uma terminologia científico-jurídica que aponta diferentes práticas sociais e resultados que podem ser desvalorados e sobre os quais se deve, inclusive, por obrigação moral e jurídica [3], questionar, intervir e mudar, em nome da efetividade de outros direitos envolvidos.
Há, portanto, um universo de critérios, significados, interpretações e valorações muito mais amplo do que o mero voluntarismo do avaliador, suas preferências, suas incoerências e sua presença como autoridade parecem querer sugerir e impor. Devemos estar sempre atentos a este brilhantismo e genialidade, que geralmente é mais poder e perversidade, gozo do sádico.
Tal pequeno e pontual caso, que passaria desapercebido no entorpecente ambiente acadêmico de bajulações e festividades, de rituais antigos e esclerosados de formalidades estapafúrdias em pleno 2018, ou que mesmo seria avaliado sob a óptica invertida dos valores ideológicos como um cenário de crítica positiva, se emula aos milhares na vida (ou morte) acadêmica mundo afora, cotidianamente.
A situação revela, como é visível no mero relato acima e algumas valorações, vários pontos interessantes sobre modos de “fazer ciência” hoje ou, mais propriamente, de preservar e reproduzir toda a rede de política que subjaz esta atividade social. São ocultações e infiltrações.
Uma das conjunções que engendra essa sistemática é a relação complicada entre Direito, Ciência e Política.
Complicada, destaque-se, por uma simples razão preliminar: preconceito acadêmico, linguístico, somado a um desconhecimento mesmo de qualquer referência metodológica um pouco mais sofisticada e alinhada com uma Filosofia da Ciência, preferencialmente de ordem crítica. Complicada, portanto, no sentido de que a complicação é produzida, ela “é” feita complicada, não “é complicada” por si. E o é assim por uma razão de jogo de forças.
Não que não haja uma enorme e legítima discussão histórica e contemporânea em torno dessas relações complexas entre Direito, Ciência e Política. Mas, seu uso simplista é fruto de um mero preconceito, somado a interesses mais escusos e profundos que remontam ao conservadorismo de posições de classe, etnia, gênero e demais demarcadores sociais excludentes. Também se incluem aí os conservadorismos mascarados em progressismos, espécie hipócrita muito presente no meio, que fatia pleitos para criar alianças, consensos, apoios, não oposições.
O Direito juridiciza e internaliza pleitos, interesses e demandas por direitos. Científico e Político, assim, ganham tonações. Mas, na mesma medida em que assumem foros de facticidade, veracidade, legitimidade e autenticidade, também podem ser violados nestas mesmas dimensões.
É quando entram em cena tramas de valores científicos (já muito questionados) de neutralidade, objetividade, pureza e mesmo eficiência (em um sentido mais tecnológico) [4]. É quando o olhar crítico deve ser exaltado ao máximo, porque o complicado se complexifica.
Bem, da Política e Ciência para os argumentos de autoridade e posse da verdade é um deslize apenas. Interessante é notar que ditos pesquisadores, que assumem a postura arrogante e prepotente tal qual daquele avaliador, no geral costumam ser pouco críticos em relação aos seus contextos de produção e às distorções jurídico-científicas que são capazes de produzir.
E isto é óbvio, postos os benefícios sociais que recebem de suas posições, o que vai desde vantagens acadêmicas até profissionais. Por isso se organizam em hordas que vão desde relações familiares até amizades e cultivo de orientandos.
Morte ao conhecimento, campo aberto da disputa política pela verdade. Nada mais deletério a uma cultura que se pretenda, primeiro, de direitos e, segundo, científica em torno ao Direito, do que os perversos “inputs” e “outputs” destas imiscuidades do poder, dinheiro e conhecimento.
O atual cenário judicial brasileiro, em que pesquisadores de ontem são os julgadores de hoje, é retrato claro desta triste realidade e desta profunda advertência da velocidade em que o sistema de dinheiro e poder pode cooptar (e consumir) o campo discursivo, comunicacional e científico.
E é retrato de em que medida tais cooptações demandam um olhar crítico profundo da Filosofia do Direito e da Ciência – se isto ainda interessar como prática de resistência e se ainda se valorarem outras práticas, possibilidades e dimensões sociais.
Ora, em um trabalho acadêmico importa seguir alguns critérios de cientificidade [5].
Havendo um objeto reconhecível em si e definido, bem como reconhecível pelos pares (frise-se: com um mínimo de boa vontade e disposição científica), atende-se a um critério. Ainda: dizendo-se no trabalho algo não dito ou que redimensione o que já foi dito, cumpre-se outro.
No mesmo sentido, sendo a pesquisa útil em algum aspecto relevante do tema e, ainda, fornecendo elementos de verificação ou contestação, têm-se atendidos os tais critérios mínimos, que se coligam a um mapeamento do estado da arte do objeto para tanto.
Devidamente inserido e justificado em seu contexto de pesquisa (área de concentração e linha de pesquisa), parece definido o campo do debate legítimo sob uma perspectiva do problema da pesquisa, sua metodologia e desenho – é verdade, não tão intensa quanto já fora na rigidez científica de base mais positivista – mas, mesmo assim, não com menos seriedade e produtividade, consideração e respeitabilidade acadêmicas.
Infelizmente, grande parte da pesquisa contemporânea está mais afeta às relações e jogos de micropolíticas institucionais – que, frise-se, correm “pari passu” em um regramento implícito e costumeiro, velado e pouco acessível – do que aos ditos critérios de cientificidade.
É dever e responsabilidade de cada pesquisador velar por estes limites, o que nem sempre acontece, porque as forças se estabelecem em redes, nas quais correm os benefícios pelos quais tudo se entrega. O seu amigo de hoje lhe avaliará em uma banca amanhã.
Evidência do que se disse é que hoje, no mais das vezes, a ciência jurídica se tornou ocultamento fácil ou infiltração sutil. Aí há, conjuntamente, um projeto político maior e mais perverso, retrógrado e de retrocesso.
Normatividade em Direito é um conceito muito forte. Um conceito que, nestas práticas pseudocientíficas e politizadas negativamente, se pretende abater por vazios retóricos. Idealismo, metafísica, utopia, generalidade, universalidade, abstração. Palavras valiosas de desqualificação imediata.
Porém, nossa ciência jurídica sempre foi e será uma ciência das normatividades. O que se pretendem com os vazios criados? Esta é a primeira pergunta de enfrentamento que deve sempre ser feita diante de tais esvaziamentos.
Normatividade, pode-se deduzir, abatida porque perigosa: ameaçadora porque declara direitos, enuncia vozes, gera pretensões e atritos, tensiona.
A ciência jurídica é, ainda, ciência de elite, que se camufla em fantasias ornamentadas, mas que consegue ser desumana em seus padrões, repetições e agentes. Abram-se as portas da inclusividade, da qual tiraremos nossa mão-de-obra jurídica precarizada e nossos votos para iludir sistemas de eleição.
Muito do que o Direito é, ou muito de seus usos, relaciona-se a preservar seus castelos do mundo que tudo consome. Precisa garantir seus partidos, líderes, poderes e toda a regalia de que apenas os escolhidos tomarão conhecimento, seja aqui, seja viajando bastante.
Publicidade, impessoalidade e imparcialidade são princípios mortos, e suas regras nunca serão interpretadas segundo princípios. As notícias de verba chegarão depois de gasto o dinheiro, veja só; e a trama de relações pessoais desvelada depois da preclusão. É um pouco assim que tem funcionado para quem olha de fora. Por dentro, decerto ainda mais o que se ver.
O Direito agoniza, esquecido. Justiça, cuidado e prudência são reféns tornadas utopias. Ou idealizados. Ou retórica a alimentar a consciência perturbada dos grandes senhores e senhoras que distribuirão migalhas para mascarar seu parasitismo como forma de vida. E se chamarão de grandes, brilhantes e se citarão, equiparando-se aos mestres do passado.
Na ala dos ocultamentos, aqueles objetos remotos de investigação, sem a menor pretensão de se justificar. E justificados que são por sua afirmação política em alguma das gangues que dividem os programas segundo os gostos e as irresoluções psicanalíticas, sem qualquer critério da ordem do conhecimento científico ou filosófico.
O que não se deseja pesquisar é tão relevante quanto o que se deseja. O vácuo de discussão sobre a complexa Assembleia Nacional Constituinte é um exemplo. O vácuo sobre construções teóricas brasileiras em detrimento das importações europeias ou norte-americanas obsessivas é outro. E há tantos outros.
Já no setor dos infiltrados, aqueles pesquisadores que tomam os direitos humanos das formas mais estapafúrdias e descompromissadas possíveis. Dada a abrangência da linguagem dos direitos humanos, sua função infiltrada é justamente a de despotencializar, des-historicizar e implodir os direitos humanos pela via teórica, que logo se conjuga à via educativa, em um plano coerente e eficaz. Incontáveis estudos assumem essa silenciosa missão.
No mais, da voz destes profetas, levas de alunos são seduzidos pela facilidade de criticar o que sequer se conheceu, ou desconstruir aquilo que jamais se tentou compreender. Daí, então, ao vácuo das profissões jurídicas, é questão de semestres com uma linguagem que sobreviverá décadas. As orquestras funcionam bem ou a água circula bem nos encanamentos planejados.
Direitos humanos sequestrados por diversas apreensões, formalizados, cindidos da política, afundados em narrativas cristãs, polemizados em velhas questões de jusnaturalismo e juspositivismo, ignorando-se historicidade e insistindo-se em metafísica. Lançados de modos artificiais em obras de risíveis correlações literárias.
Faz-se, pois, de um tudo num jogo de ilusionismo – até mesmo quando da adesão aos “direitos humanos como luta”, expressão chave que dá uma boa impressão e apaga toda a positividade, lançando o pleito apenas no sistema de forças sociais, então, desjuridicizando o positivado.
Ou, quem sabe, o recurso à autonomia e voluntariedade para encobrir práticas totalitárias e violentas, sob o manto da diferença cultural, ou simplesmente ignorando que dominação e ideologia inserem a vítima como maior agente da própria atrocidade que a consome.
Chega a ser comovente o esforço de alguns de nossos “intelectuais em esvaziar categorias obstinadamente. Fazem-no, aliás, muto bem assessorados por pesquisadores iniciantes servis e acríticos que lhes realizam o trabalho (já então cativos porque interessados em benefícios futuros).
Direitos condenados à morte nas confrarias das instituições. Ou seja, direitos humanos domados, civilizados, domesticados, enlatados, reduzidos em fórmulas e poções pretensamente críticas, pretensamente de luta.
Disposições sem pudor de sacrificar direito dos animais no palco do especismo, de se transmutar em diversas maquinações tudo em nome de interesses pessoais, privados, costurados no público e aplaudidos pela massa acadêmica acrítica, colonizada e igualmente cultivada como bactérias em um meio.
Equívocos sobre equívocos devidamente maquiados com argumentos de autoridade em carrancas jurídicas, ou talvez em abotoaduras e vernizes, saltos, as roupas de sempre com os mesmos cortes, referências norte-americanas, formatações do corpo e da mente. Feminismos brancos e burgueses sem qualquer interseccionalidade. Alguma tolerância e discussão de gênero para mascarar domínios religiosos e econômicos mais profundos e conter possíveis resistências.
O mosaico é grande, a mensagem é clara. O perigo é ainda maior e a rede ainda mais perversa.
Há um sem número de demônios e demônias a serem enfrentados.
Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.
SURH, Dominique. “Scholar Sharpening His Quill.” In The Leiden Collection Catalogue. Edited by Arthur K. Wheelock Jr. New York. Disponível em: <https://www.theleidencollection.com/artwork/a-scholar-sharpening-his-quill>. Acesso em: 22 set. 2018.
 
2 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 261.
 
Vale aqui mencionar a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html> que recomenda que as pesquisas em ciências humanas e sociais que envolvam seres humanos tenham a responsabilidade socioambiental de levantar problemas dos contextos investigados e proporcionar benefícios e proteção de riscos que resultem em mudanças efetivas na vida dos indivíduos e comunidades participantes da pesquisa. Trata-se de um dever legal, portanto.
 
VENTURI, Eliseu Raphael. Aproximações do modelo de interação entre atividades científicas e valores (Hugh Lacey) à pesquisa jurídica e à valoração moral do Direito (Carlos Santiago Nino). Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 36, p. 111-129, ago. 2017. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/revfacdir/article/view/73436/43555>. Acesso em: 22 set. 2018.
 
5 ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 25. ed. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 27.
 
 

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