quarta-feira, 22 de maio de 2024

Delírios de poder dos militares, enchentes, erisipela mental e outras falas, por Armando Coelho Neto

 

É muita ingenuidade pensar que os temas militares como sendo apenas de defesa nacional, pois o que querem é controlar a sociedade civil.

Rafael Carvalho – Divulgação

Jornal GGN:

O Projeto de Nação* – O Brasil em 2035, foi lançado em maio de 2022 pelo Instituto General Villas Bôas e não em maio desse ano, acidentalmente registrado no texto passado. A citação se deu num contexto de ironia por meio da expressão “erisipela mental” (alusão ao inelegível), espírito que estaria norteando a onda de descaso e mentiras na tragédia do Rio Grande do Sul, hoje um paradoxo nacional.

De qualquer modo, vale a pena voltar ao projeto militar, que a título de cenário prospectivo, tem como foco um hipotético ano de 2035, no qual ações tomadas no presente nele desaguariam. Na prática, porém, ficam nítidos contraditórios delírios militares e seus postulados ultradireitistas. Mas, não se “trata de uma vã tentativa de adivinhar o futuro”, destacam os autores. Sim, mas tudo se passa em 2035.

A peça é um tanto infantilizada e tem redação precária, entre outras inconsistências, o que “teria levado parte da mídia a não dar muita importância”, consta do site jornalístico Marco Zero. Já para o Le Monde Diplomatic, além de insuficiências metodológicas, vem embutida de uma visão autoritária, calcada na continuidade de uma ideologia de segurança nacional (da Escola Superior de Guerra -ESG)*.

Lançado às vésperas das eleições presidenciais de 2022, pode-se deduzir que serviria no mínimo inspiração para ex-capitão defenestrado nas urnas, caso não tivesse levado a rasteira popular. Tomando como referência o ano de 2035, é de se presumir no mínimo mais três mandatos presidenciais, para quem dizia que “pelo voto não se muda nada” e passou quatro anos defendendo golpe de estado…

Na obra “República de Segurança Nacional: militares e política no Brasil”, do professor e cientista político Rodrigo Lentz, o autor destaca que como protagonistas ou como coadjuvantes, as Forças Armadas somam dois séculos de participação e politização. Portanto, é muita ingenuidade pensar que os temas militares como sendo apenas de defesa nacional, pois o que querem é controlar a sociedade civil.

Sim, os militares brasileiros nunca assimilaram a ideia de que o poder militar deriva do civil e não o contrário. Aliás, como diz o ministro do STF Flávio Dino, não existe, no nosso regime constitucional, um ‘poder militar’. O poder é apenas civil. Fosse a minuta da tentativa de golpe mais detalhada, o projeto Brasil 2035 cairia bem no conteúdo, por serem primos irmãos. Os mantras do ex-capitão ficam claros na peça.

O tema ativismo judicial, por exemplo, está presente tanto na minuta quanto no projeto. Expressões como cisão social, ideologias radicais (de direita e esquerda?), utópicas, liberticidas, ideologia nas escolas…. Mesmo assim, a peça se declara apartidária, com serventia para o (des)governo passado e os futuros, tudo “em conformidade com o perfil predominante do povo brasileiro”. Que perfil, cara pálida?

Em 2035, não se sabe por qual razão, os regimes democráticos seriam a convergência de conservadores com liberais. Tem a marca do trabalho voluntário X coletivismo involuntário; individualismo econômico, competição, meritocracia, desestatização; propriedade privada essencial para a liberdade. E, claro, meios para fortalecer o sentimento de Pátria (Não, não consta Deus, Pátria Família!).

Mantras como globalismo, combate à corrupção, civismo, valores morais, éticos, convertem-se em profanação, quando se conhece o ideário por trás de quem os defende. Basta lembrar a corrupção do governo passado, a continência à bandeira dos EUA sob gritos USA (Iu-es-sei!), as agressões morais e éticas no chiqueirinho da esbórnia presidencial na gestão passada. Contraditório, não?

Ao defender maior autonomia das Polícias Militares e o estreitamento de suas relações com o Exército, há um mimo especial, com críticas ao suposto preconceito contra a ocupação de determinados postos por oficiais militares. Também aqui, não há como sustentar a pretensão dos autores do projeto, no que tange a isenção, apartidarismo, sem matiz ideológica. É forte o militaresco cheiro ultradireitista.

E, para reforçar a festa da Faria Lima, a peça futurista prevê e preconiza a redução de impostos; desestatização; universidade pública e SUS pagos, restrições à legislação indígena e ambiental, portos e aeroportos privatizados. Nem uma linha sobre seguridade social, previdência, aposentadoria, racismo. A palavra inclusão só aparece duas vezes, mas na expressão inclusão digital.

As questões ambientais passam praticamente ao largo, quando muito associadas ao globalismo e este por sua vez, seria a reconfiguração do marxismo(!). Projeto na mão, a erisipela ataca o ex-capitão e as águas o Rio Grande do Sul, estado que deu larga vitória ao ex-presidente. Lula vai socorrer sem um muito obrigado. Eis o paradoxo. Dor, devastação, mentiras, a tragédia anunciada estava consumada.

Sem que sequer se estabeleça ligação entre a tragédia e o negacionismo, visão de futuro, a isso tudo dei de chamar erisipela mental…

* https://drive.google.com/file/d/1YqJRZTTxsuFmAasq8vp3PBoMoqL5n-40/view
** https://marcozero.org/livro-reune-textos-criticos-aos-delirios-de-poder-dos-militares/

***https://diplomatique.org.br/desprojetos-de-brasil/

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

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