terça-feira, 7 de maio de 2024

Os religiosos da falsa neutralidade política, por Dora Incontri

 

Eu tenho criticado a mistura maléfica entre política e religião, quando religiosos se apossam do Estado para impor seu conservadorismo


Do Jornal GGN:

Depositphotos

Os religiosos da neutralidade política

por Dora Incontri

Desde que comecei a escrever essa coluna e feito as lives Conexões – Espiritualidade Crítica, com os mesmos temas da semana nos canais da ABPE e Paz e Bem, tenho recebido diversas críticas – algumas raivosas, como é comum nas redes. Geralmente não respondo aos que gostam de fazer patrulhamento ideológico e lacração, mas é bom trazer alguma luz para o debate, de maneira mais ampla, quem sabe para provocar reflexões com um pouco mais de consistência do que se costuma fazer nas redes sociais.

Uma das principais objeções que ouço é:  você mistura política e religião… você mistura espiritismo e religião… Ora, eu tenho justamente criticado a mistura maléfica entre política e religião, quando religiosos se apossam do Estado para impor seu conservadorismo; quando se pretende doutrinar as massas dentro de uma visão fundamentalista com projetos políticos de dominação; quando querem fazer leis com os valores de uma religião específica, ainda que fosse majoritária, impondo à sociedade suas regras de conduta; quando se expulsam pessoas dos templos e dos centros espíritas, porque não fazem arminha; quando lideranças religiosas conhecidas apoiam golpistas e fascistas e outras tantas calamidades.

Ora, tais pessoas que criticam minhas posições não fazem o mesmo em relação a essa promiscuidade incômoda entre religião e poder. Só o fazem quando procuramos alguma ligação entre a espiritualidade e posições de esquerda – do ponto de vista teórico, filosófico e não como intenção de domínio. Política de direita pode misturar à vontade com religião, visões de esquerda não.

Outra aberração, própria do analfabetismo político, é achar que é possível termos uma neutralidade política, mantendo um distanciamento de “pureza espiritual”, como se comprometer-se com uma posição política (claro, de esquerda, porque em geral, tal neutralidade indica posições à direita) fosse algo sujo, menor e, para alguns, uma espécie de blasfêmia. Já dizia Bertold Brecht:

“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.”  

Ora, o silêncio indica falta de consciência, má leitura do mundo ou ainda conivência – ou tudo isso junto. Como não se indignar com os PMs matando e agredindo sem parar os negros da periferia, numa perpetuação dos moldes racistas e escravocratas da nossa sociedade? Como não criticar no mundo os números absurdos da fome, da desigualdade (com meia dúzia de famílias possuindo a quase totalidade das riquezas do planeta)? Como não se preocupar e atuar de alguma forma contra a matança dos indígenas, contra a depredação das matas, contra os agrotóxicos cancerígenos que envenenam crianças e adultos, para maior lucro do agronegócio? Como não chorar de tristeza e raiva diante do massacre que o governo de Netanayhu está promovendo de crianças, mulheres, civis – e destruindo hospitais, universidades, escolas em Gaza? Estou citando aqui aleatoriamente algumas das inúmeras tragédias que nos assolam e que dependem de militâncias políticas, de novas formas de organização social e econômica, de revoluções profundas, para emergirmos desse caldeirão de injustiças, dores e mortes.

É verdade que há aqueles que se indignam e sofrem por dentro, mas lhes falta coragem e até às vezes suficiente saúde psíquica para uma posição mais firme, mais ostensiva de combate e militância. Há aqueles outros que se sentem presos por empregos, por familiares, por instituições, para falarem abertamente o que pensam – e isso faz parte do próprio sistema que amarra as pessoas pelo medo e pela opressão.

Mas há que se buscar forças, há se que tratar da mente e das emoções e, sim, também podemos nos ancorar na própria espiritualidade bem vivida, para nos habilitarmos a trabalhar com afinco pela mudança do mundo. E isso envolve política. Não necessariamente partidária – como anarquista, nem acredito nesse sistema, mas para quem acredita, também é um caminho válido. Mas educar, conscientizar, agir de maneira fora do sistema, negar-se a colaborar com as forças do capital; participar de comunidades, atuar junto a pessoas que estão em estado de vulnerabilidade (mas não de forma paternalista, assistencialista, mantendo-as na inconsciência de seus direitos) e tantas outras possibilidades de atuação.

Enfim, aqueles que de fato estão alinhados com os valores essenciais das tradições religiosas, valores como solidariedade, compaixão, fraternidade, igualdade, necessariamente precisam ter uma leitura crítica desse mundo e trabalhar sem descanso para mudá-lo!

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.


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