No Brasil, temos a tentativa de Estado laico e consequente escola laica desde a República, que nunca se realizou, nunca se completou.
Tenho aqui discutido o fundamentalismo que nos assalta no mundo contemporâneo, tentando impor valores e ideologias à sociedade, por grupos ultraconservadores. Caminhos diversos são percorridos para tomar a consciência (ou antes o inconsciente) das massas e fazê-las dóceis às manipulações políticas e aos interesses econômicos das classes dominantes.
Neste artigo, quero tratar de um tema que me é caro, a que tenho dedicado livros, congressos, artigos científicos e uma militância ativa: que é a relação entre religiões e educação. O histórico é longo, porque em muitas culturas, a figura do mestre (talvez com a maior exceção da Grécia e de Roma) está muitas vezes conectada à figura do sacerdote – desde o pajé dos povos originários aos monges cristãos ou budistas, dos reformadores protestantes aos jesuítas e seu projeto de Contrarreforma.
É a partir da Revolução Francesa e seus ideais liberais, entre os quais se incluía a libertação da tutela das igrejas, que nasce a ideia de Estado laico e de educação laica – como lugares de vivência e convivência, em que todos poderiam ser crentes de qualquer tendência ou descrentes de qualquer maneira e nem o Estado e nem a escola poderiam ser veículos de doutrinação, confessionalidade e descriminação. Na própria França, onde essa proposta tentou ser implementada no período revolucionário, apenas 100 anos depois, depois de 1870, é que a escola pública sem religião toma formato mais sólido. Sem mencionar o fato de que escolas religiosas sempre continuaram a existir, embora sem a subvenção do Estado. Hoje, uma das grandes discussões nas escolas francesas é sobre a permissão ou não (e recentemente ganhou a proibição) de alunas muçulmanas, e há muitas na França, usarem o hijab (o véu cobrindo a cabeça). Alguns consideram que essa proibição é um atentado à liberdade religiosa e outros consideram que o seu uso é um ato de proselitismo num ambiente em que nenhuma religião deve ser exercida publicamente.
No Brasil, temos uma tentativa de Estado laico e consequente escola laica, desde o advento da República, que nunca se realizou, nunca se completou. Minha professora orientadora de doutorado na USP, Roseli Fischmann, desenvolveu uma pesquisa no início deste século, em escolas públicas de alguns Estados brasileiros, em que diversos pesquisadores permaneceram em observação para ver como se davam as relações entre essas escolas e a questão religiosa. Na maioria dos casos, de laico não havia nada. Havia símbolos religiosos (claro, cristãos – católicos ou protestantes), havia orações coletivas, lideradas por professores, dentro de uma tradição específica, e narrativas religiosas perpassando o ensino, supostamente plural, de alguns professores.
Com o avanço das igrejas neopentecostais, bastante ativistas em suas imposições proselitistas, isso tende a piorar cada vez mais.
Mas será que basta simplesmente proibir falar de religião na escola, para torná-la um lugar de respeito à diversidade e de liberdade de crença?
A resposta passa por diversas nuanças. A primeira delas é que a maioria das pessoas, incluindo profissionais da educação, não sabem o significado de Estado laico, não têm consciência do que é fazer doutrinação de uma determinada religião e consideram natural fazer uma oração cristã numa escola, como se todos fossem naturalmente cristãos.
Por isso mesmo, tudo passa por uma formação política e filosófica dos educadores, que precisam ter melhor compreensão dessas delicadezas do pluralismo.
Mas não considero que a simples proibição de se falar em religião é o caminho. Porque a religião está entranhada na história, na sociedade e no íntimo das pessoas. É um fenômeno cultural, social e espiritual que não pode simplesmente ser amputado da educação. Por isso mesmo, o que temos trabalhado (e tenho junto com Alessandro Cesar Bigheto as obras didáticas Todos os Jeitos de Crer, pela Editora Ática e inúmeros artigos e capítulos em livros) a proposição de um ensino inter-religioso, em que os alunos tenham acesso, de maneira imparcial, profunda e histórica às diversas formas de crença e descrença (porque também a crítica às religiões deve ser contemplada).
Ora, não existe antídoto melhor contra a intolerância, o preconceito e o fanatismo do que conhecer o outro, para respeitá-lo, identificando as riquezas espirituais, éticas, estéticas e sociais, presentes em todas as tradições. Conhecer para aprender, admirar, achar pontos em comum e considerar divergências como acréscimos e não como maldição.
Não há como desentranhar do mundo o aspecto religioso, por mais que isso desgoste os que assim consideram imprescindível, mas podemos tratá-lo de forma plural, crítica e histórica, considerando aquilo que de melhor pode oferecer aos indivíduos e aos povos: sentido existencial, lugar de pertencimento, possibilidade de transcendência e, sobretudo, esperança ativa de um mundo melhor!
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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