A Performance de Sílvio Almeida impediu que Girão alcançasse seu objetivo, “mitar” na internet. Silvio desarmou o troll.
O feto de Girão e a Performance como procedimento da extrema direita
por Cristian Reichert
Segundo a fórmula de Oscar Wilde, a modernidade é o momento em que “não é a arte que imita a vida, e sim a vida que imita a arte”
Nicolas Bourriaud
O Senador da República, Eduardo Girão (Novo – CE), em uma audiência pública com o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, pretendeu realizar uma Performance: tentou mobilizar o signo da extrema direita sobre o aborto, o feto de plástico, com objetivo de causar uma comoção artificial nas redes sociais e de tumultuar ao sequestrar a pauta da audiência pública. A Performance como arte tem a possibilidade de criar fissuras, desvios, aberturas no real, mas o que Girão conseguiu foi o feito inverso, uma anti-Performance. Silvio Almeida prontamente, e, astutamente, percebeu o momento do desvio anti-Performativo, ou seja, não uma abertura, mas um sequestro, tomou para si a ressignificação do que estava prestes a acontecer. Mudou as peças de mão. Performou o pai, indignado e sério, que às vésperas do nascimento de um filho, é exposto ao signo do feto abortado, a ação de Girão perdeu o sentido diante da vida nova prestes a nascer. Silvio Almeida declarou: “Isso, para mim, é uma performance que eu repudio profundamente” – reportagem publicada no UOL: “Silvio Almeida é aplaudido após rejeitar ‘feto’ de Girão: ‘Um escárnio‘”. A Performance de Sílvio impediu que Girão alcançasse seu objetivo, “mitar” na internet. Silvio desarmou o troll.
Quando digo que Silvio Almeida performou não estou dizendo que simulou, fingiu, falseou, a Performance como dispositivo artístico e político da Arte Contemporânea não admite a fraude ou o sequestro das subjetividades. Quem com esse intuito se vale deste dispositivo não faz nada mais do que uma anti-Performance, uma manipulação histriônica da realidade sem a criação de aberturas, ou a produção de presença, pelo contrário, há o sequestro do presente. Tania Alice, performer e professora, nos ajuda a entender essa característica da Performance como produção de presença, conceito de Hans Gumbrecht, na Arte Contemporânea:
“Se a performance e as intervenções urbanas, por vezes, apresentam-se como algo um pouco misterioso para os espectadores acostumados a uma arte representativa e promovida pelos meios de comunicação tradicionais (cinema comercial ou TV) é talvez porque, como escreve o teórico da literatura alemão Gumbrecht, essas linguagens se apresentem como uma produção de presença, muito mais do que como uma produção de sentido. Segundo Gumbrecht, toda obra artística opera uma oscilação entre efeitos de presença e efeitos de sentido. O crítico alemão constata que, se a modernidade deu uma preponderância grande à produção de sentido da obra, a arte contemporânea opta por (re)criar presença, intensidade de afetos e encontros, privilegiando e operando uma produção de presença”. (ALICE, 2016, p. 28)
Manipulando a produção de presença que se pretende, a extrema direita tem no dispositivo da Performance sua ferramenta para criar novos campos de realidade, cooptar os signos e propor novas formas de subjetividade artificializada. Isso demonstra o quanto os modos de fazer política tem sido cooptados por uma forma performativa, seja na criação de objetos disruptivos como a “mamadeira de piroca”, seja na atuação transfake de deputado na Câmara, seja na mobilização artificial dos símbolos, ou na atuação violenta, também artificial e histriônica. O intuito sempre será o de sequestrar o presente, cooptar a subjetividade e manipular a opinião pública por meio de virais na internet.
Sobre a relação entre arte e política, Rancière vai nos dizer que:
“A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE, 2009, p. 17).
Rancière não está endossando uma pretensa cooptação da arte pela política, numa espécie de “‘estetização da política’ própria à ‘era das massas’, de que fala Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte. Insistindo na analogia, pode-se entendê-la num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). Para essa discussão sobre arte e política que estamos propondo, destacamos quando Rancière diz que: “A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto” e também “o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir”. Ocupar-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto nos aproxima de uma ideia de política como criação de presença, ou de política como manipulação de presença, o que entendemos ser uma das principais características da Performance art, “como um sistema que determina o que se dá a sentir”.
Agora, trazendo a nossa contribuição, de artistas performers, sobre o que está sendo conhecido como a Performance de Girão, é necessário elencar alguns aspectos dos estudos sobre Performance, que são amplamente desenvolvidos por pesquisadores tanto das Artes quanto das Ciências Sociais. Segundo Richard Schechner, um dos grandes pesquisadores desse tema:
“Realizar performance também pode ser entendida em relação a: sendo, fazendo, mostrar fazendo, explicar ‘mostrar fazendo’. ‘Sendo’ é a existência por ela mesma. ‘Fazendo’ é a atividade de todos que existem, dos quarks até seres conscientes e cordas supergaláticas. ‘Mostrar fazendo’ é desempenhar: apontar, sobrelinhar, e exibir fazendo. ‘Explicar ‘mostrar fazendo’’ são os estudos performáticos” (SCHECHNER, 2006, p 28). Para Schechner ‘sendo’ é uma categoria filosófica paralela às teorias da presença; ‘fazendo’ e ‘mostrar fazendo’ são as ações sempre em fluxo em mudança, o rio de Heráclito; ‘explicar ‘mostrar fazendo’’ é uma ação reflexiva para conceber o universo da performance e a existência como performance.
Cabe, também, contextualizarmos o que vem a ser, ou o que está sendo, a Performance art, ou simplesmente Performance. Uma arte que passou por um longo período de desenvolvimento no século XX a partir do Futurismo – vanguarda artística que foi pioneira na ideia de criar espaços expandidos na arte – e da geração de artistas contraculturais dos anos 1960. Roselee Goldberg destaca que “A performance garantia o desconcerto de um público acomodado. Dava aos seus praticantes a liberdade de serem, ao mesmo tempo, “criadores” implantando um novo tipo de teatro artístico, e “objetos de arte”, uma vez que não faziam nenhuma separação entre a sua arte como poetas, pintores ou performers” (GOLDBERG, 2007, p. 20). Esse movimento surgiu primeiro nas Artes Visuais com artistas desenvolvendo seus trabalhos diante do público e com sua participação efetiva nos Happenings – uma forma de arte coletiva. Na Arte Contemporânea, a Performance é uma importante manifestação artística que é objeto de estudos transversais nos campos das Artes Visuais, Artes Cênicas, Música, Dança, Arte educação etc. Marcado pelo hibridismo, refuta a cisão entre arte e vida e considera a arte como parte do cotidiano, possibilitando o surgimento da live art, da arte cidade, da body art, da errância etc. Refuta a ideia de obra de arte que analisa apenas elementos estéticos, ligados ao belo, para a ideia de acontecimento artístico relacional, com elementos éticos. Um exemplo disso é a performance “Rhythm 0” feita por Marina Abramovic no Studio Morra, em 1974, na cidade de Nápoles na Itália. A artista basicamente se propunha a ficar em pé por 6 horas enquanto o público era convidado a fazer o que quisesse com ela usando um dos 72 objetos que ela colocou sobre a mesa.
As instruções para o público eram:
“Existem 72 objetos na mesa no qual vocês poderão utilizar em mim.
Eu sou um objeto.
Me responsabilizo por todos os atos cometidos envolvendo a minha pessoa durante a performance.
Duração: 6 horas (das 20:00 às 2:00)”
Marina foi perfurada por espinhos de rosa, humilhada, cuspida, suas roupas foram rasgadas, e, no “auge” da Performance, um homem pega a arma carregada sobre a mesa e aponta para a cabeça da artista. Imediatamente se impôs o limite do desvio proposto pela artista, ocorrendo a suspensão da ação. Acontece, aqui, uma mudança de foco da arte, sobrepujando questões éticas às questões estéticas.
Também, nessa contextualização, não podemos deixar de mencionar aspectos políticos da Performance como tática de ação por parte de artivistas, ativistas e cidadãos politicamente engajados. Ileana Caballero, uma pesquisadora mexicana sobre arte e política define o termo performance cidadã, para quando pessoas politicamente engajadas se utilizam de procedimentos performativos para se manifestarem. As fronteiras entre arte e política, assim como outras fronteiras em relação à arte, estão se tornando indistintas. O artista é um ser político, o cidadão é um ser artístico. Não que o artista não seja cidadão, mas o cidadão que não é artista pode se colocar artisticamente ao se posicionar politicamente. Segundo Ileana Caballero, esse cruzamento entre arte e política ocorre de forma singular na América Latina.
“A passeata ritual e os lenços brancos foram estratégias simbólicas nos momentos em que a ação política não podia desenvolver-se abertamente. O procedimento silencioso – que nunca foi um pacto com a restrição imposta da palavra – era o contraponto expressivo de um corpo que delatava e falava através de gestos e imagens: o silêncio se converteu em discurso. Através da apropriação de recursos icônicos, as Mães da Praça de Maio atribuíram um novo valor semântico às suas próprias presenças; ao pendurar sobre a roupa ou levar em cartazes as fotos dos filhos desaparecidos, transformaram seus corpos em ‘arquivos vivos’” (CABALLERO, 2011, p. 124).
O exemplo das Performances argentinas das Madres de la Plaza de Mayo, que Caballero chamou de Performance cidadã, retrata como os não artistas usam estratégias artísticas para se expressarem, mais precisamente para criar um evento de linguagem. Outro movimento que podemos entender como uma forma de Performance cidadã foi que se convencionou chamar de Primavera Secundarista de 2016. As ações do Movimento Secundarista foram permeadas por estratégias artísticas e políticas, performativas e disruptivas. Os estudantes criaram formas de Intervenções Urbanas, ao levarem a sala de aula para o meio da rua, criando espetáculos teatrais e manifestos, teatralizando o seu protesto, como menciona Caballero.
Fonte:feminismosemdemagogia.wordpress.com, 2018.
A luta pela existência em uma sociedade permeada por tensões sociais como a latino-americana, seja por pessoas da diáspora africana, seja por povos sitiados como os indígenas, seja pelas classes trabalhadoras mais pobres vítimas dos processos de gentrificação da cidade, criou-se um ambiente em que o jogo de existir tornou-se a necessidade de criar acontecimentos políticos estéticos, na luta constante pela visibilidade, na produção constante de presença.
“… a presença é um ethos que assume a sua fisicidade, mas também o fato ético do ato, e as derivações da sua intervenção. A condição de “performer”, tal e como se tem entendido na arte contemporânea, enfatiza uma política da presença ao implicar uma participação ética, um risco nas suas ações sem que as histórias e as personagens dramáticas sirvam de pretexto para encobrir seus atos” (CABALLERO, 2011, p. 44).
Ailton Krenak, ativista indígena do povo Krenak, que foram sitiados em suas terras no Vale do Rio Doce – MG por interesses das mineradoras, realizou uma ação política estética performativa na constituinte de 1988, fez uma performance de luto na ocasião de sua fala no Congresso, criou, como diz Caballero, um acontecimento de linguagem, uma Performance cidadã.
Performance cidadã de Ailton Krenak
Fonte: IndioCidadão?, 2020.
Krenak utilizou taticamente do dispositivo da Performance para se tornar o sujeito de um evento que traz os povos tradicionais para o debate público, não como um mero debatedor, mas como um ativista de seu povo. Krenak performa uma ação no Congresso que, mesmo depois de 30 anos ainda é lembrada, ainda ecoa como produção de presença por ser um tema ainda muito presente. A anti-Performance de Girão e sua tentativa de sequestrar o debate público fracassou, resumindo-se à fraude e à chacota que lhe é de direito.
Cristian Reichert (Doutorando em Educação FE/USP, Mestre em Artes IA/UNESP, pesquisador no grupo de pesquisa Cnpq Performatividades e Pedagogias IA/UNESP)
REFERÊNCIAS
ARTRIANON. OBRA DE ARTE DA SEMANA: Performance “Ritmo 0” de Marina Abramovich. Disponível em: https://artrianon.com/2017/10/10/obra-de-arte-da-semana-performance-ritmo-0-de-marina-abramovic/
ALICE, Tânia. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Ed. Annablume, 2016.
CABALLERO, Ileana D. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia, MG: EDUFU, 2011.
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance: do Futurismo ao Presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Ed. 34, 2009.
POLÍTICA UOL, Silvio Almeida é aplaudido após rejeitar ‘feto’ de Girão: ‘Um escárnio’. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/27/silvio-almeida-e-aplaudido-apos-rejeitar-feto-de-girao-um-escarnio.htm
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. London: Routledge, 2006
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