O cara
Publicado no Unisinos e no Diário do Centro do Mundo
A criação, a queda e a salvação. A Europa, a África e a América do Sul. A modernidade e as suas contradições. A religião e as suas relações com as pessoas seculares. A política e a moral. Na Semana Santa, Bergoglio dialoga de modo abrangente com o fundador do jornal La Repubblica, Eugenio Scalfari. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esta é a semana da Paixão, segundo a história cristã, que atinge seu auge com a Última Ceia, a traição de Judas, a prisão de Jesus, o colóquio com Pilatos e, depois, a crucificação, a morte e o som pleno dos sinos em todas as igrejas do mundo onde se festeja o “ressurrexit”. Assim se concluiu a história de três anos de pregação do filho de Maria e de José da tribo de Davi, que, em três anos, fundou uma religião que, de algum modo, continua a religião judaica da Bíblia, mas com novos princípios que, naqueles três anos, lançaram a semente de uma revolução religiosa, mas também social e política no bem e no mal, no pecado e no perdão, nos delitos e na misericórdia.
Na terça-feira, 27, à tarde, encontrei-me com o Papa Francisco, a seu convite, no andar térreo do Palácio de Santa Marta, no Vaticano, onde o papa vive e recebe os amigos. Eu tenho o privilégio de ser seu amigo. Encontramo-nos cinco vezes: em uma delas, eu estava com toda a minha família. Nas outras quatro, falamos sobre tudo. Um não crente e do papa, bispo de Roma no sólio de Pedro, e inspirado principalmente pelas cartas de Paulo, que transformou o cristianismo em uma religião destinada a ser a mais seguida, junto com a muçulmana, com a qual Francisco buscou e ainda busca a fraternidade em nome de um Deus Único no qual todas as religiões devem se inspirar.
Muitas vezes nós nos telefonamos, o papa e eu, para trocar notícias um sobre o outro, mas, às vezes, nos encontramos de novo juntos e conversamos longamente. Sobre religião e sobre política.
Esta, eu dizia, é a semana chamada da “Paixão”. Jesus e os seus 12 apóstolos chegam a Jerusalém acolhidos por uma multidão festiva, a mesma que, depois do interrogatório com Pilatos, será chamada a dizer quem merece ser libertado entre Cristo e Barrabás, que já está nas galerias romanas de Jerusalém.
Jesus ainda não foi preso e decide dirigir-se ao jardim chamado de Getsêmani, seguido pelos apóstolos, ele os para e lhes diz que esperem por ele. Avança naquele jardim, onde, em certo ponto, está completamente sozinho, volta-se para o Pai e diz: “Se quiseres e puderes, não me faças beber este cálice amargo, mas, se não quiseres, beberei até o fim”. Ele não recebe resposta algum e compreende que o Pai não o salvará.
Enquanto isso, guiados por Judas, chegam os guardas e os legionários enviados pelos sumos sacerdotes que pegam Jesus e o levam ao tribunal. De lá, depois de ter ouvido também o parecer dos máximos sacerdotes de Jerusalém, a sentença da crucificação é definitiva e ocorre, como sabemos, na colina do Gólgota.
Tudo isso, pergunto ao Papa Francisco, deriva da expulsão de Adão e Eva do Paraíso terrestre, de seu exílio sobre a terra, onde vivemos desde então? Então, a criação não é aquela esplendidamente pintada por Michelangelo no teto da Capela Sistina, mas ocorre quando Deus vê que Adão e Eva tinham cedido às seduções de um diabo serpente e romperam a única proibição que lhes havia sido posta. A verdadeira criação, portanto, está na sua expulsão do Paraíso terrestre, é essa a criação?
Francisco ouve essa minha pergunta e depois me responde de modo completamente diferente do que se costuma contar. “A criação – ele me diz – não se cumpre desse modo descrito. O Criador, isto é, o Deus no alto dos céus, criou o universo interno e, acima de tudo, a energia, que é o instrumento com o qual nosso Senhor criou a terra, as montanhas, o mar, as estrelas, as galáxias e as naturezas vivas e até mesmo as partículas e os átomos e as diversas espécies que a natureza divina trouxe à vida. Cada espécie dura milhares ou talvez bilhões de anos, mas depois desaparece. A energia fez explodir o universo que se modifica de tempos em tempos. Novas espécies substituem aquelas que desapareceram, e é o Deus criador quem regula essa alternância.”
Santidade, no nosso encontro anterior, o senhor me disse que a nossa espécie desaparecerá em certo ponto, e Deus, sempre a partir de sua semente criativa, criará outras espécies. O senhor nunca me falou sobre almas que morreram no pecado e vão para o inferno para descontá-lo eternamente. O senhor, em vez disso, me falou sobre almas boas e admitidas à contemplação de Deus. Mas e as almas más? Onde são punidas?
Não são punidas. Aquelas que se arrependem obtêm o perdão de Deus e vão entre as fileiras das almas que o contemplam, mas aquelas que não se arrependem e, portanto, não podem ser perdoadas, desaparecem. Não existe um inferno, existe o desaparecimento das almas pecadoras.
Santidade, o senhor, papa ou bispo de Roma – como prefere se chamar – também se ocupa de política?
O senhor se refere a política religiosa?
Santidade, a política é política, ocupa-se do gênero humano. Para um papa, ela sempre tem um caráter religioso, mas não apenas. Aliás, o senhor sempre me disse que, em uma Igreja que busca se encontrar com a modernidade – e o senhor assumiu essa tarefa – como o Concílio Vaticano II prescreveu, a política é, ao mesmo tempo, religiosa e secular. O senhor, desde quando segue com atenção os seus deveres, reconhece a modernidade como uma meta a ser alcançada. De onde parte esse esclarecimento?
Historicamente, eu diria que a modernidade parte de um ponto de vista ateu e cultural de Michel de Montaigne. Uma leitura quase necessária. O início do Iluminismo é Montaigne. Depois, continua até Kant, através de uma série de passagens que, naturalmente, não param nele. Mas a fronteira da modernidade, que eu levo em consideração, não cabe a mim investigá-la, no entanto, é bom conhecê-la. O representante da cristandade deve prestar atenção em outros problemas.
Por exemplo, a educação dos jovens. Em certos casos, eles procuram trabalhar e fazem-no bem, mas trabalhar não é suficiente, o trabalho deve ser encorajado, mas, junto com ele, há outro sentimento igualmente necessário e talvez até mais importante: o sentimento de amor pelo próximo, pela própria família, pela própria cidade. Insisto sobretudo no amor pelo próximo. A Igreja se estende a uma santidade civil e cristã no sentido mais amplo. A religião, para mim, é de grande importância, mas estou ciente de que é possível ter o senso religioso em casa, mesmo sem praticá-lo. Ou se pratica uma religião, mas apenas nos seus rituais, e não com o coração e com a alma.
Se tivesse que dizer onde hoje a religiosidade é mais forte, eu indicaria as massas de povos da América do Sul, das planícies da América do Norte, da Oceania e da faixa da África de leste a oeste. A África é um continente agitado e conturbado, deve ser muito ajudado. É de lá que partiram as massas de escravos com seu fardo de sofrimento.
E a Europa, Santidade?
A Europa deve se fortalecer, política e moralmente. Aqui também há muitos pobres e muitos imigrantes. Dissemos que queremos conhecer a modernidade também nas suas quedas. A Europa é um continente que, durante séculos, travou guerras, revoluções, rivalidades e ódio, até mesmo na Igreja. Mas também foi uma terra onde a religiosidade atingiu o seu máximo, e, justamente por isso, eu assumi o nome de Francisco: este é um dos grandes exemplos da Igreja que deve ser compreendido e imitado.
O senhor, Santidade, deve se lembrar que eu, muitas vezes, quando escrevo sobre o senhor, chamo-o de revolucionário.
Sim, eu sei, e é uma palavra que me honra no sentido em que o senhor a diz. O senhor, pelo que eu sei, faz aniversário em poucos dias. Desejo-lhe muitas felicidades, e nos vemos novamente em breve.
*****
Ele me acompanhou até o portão, nós nos abraçamos na frente de dois guardas suíços enrijecidos em sua posição e, depois, ele esperou que o carro partisse, lançando-me um beijo com os dedos, ao qual respondi do mesmo modo.
Voltando para casa, vieram à minha mente inconscientemente as frases de Salvini, Berlusconi, Renzi e Di Maio e tive uma sensação de profunda tristeza. No sábado, terei que me ocupar deles, mas o dobrar dos sinos me fará pensar no homem Jesus de Nazaré. Um homem e não mais do que um homem. Existe alguém, na sociedade dos nossos tempos, que pensa nele e se assemelha a ele. A política, infelizmente, se reduz ao caso. Sinto saudades dos tempos de Platão. Se fôssemos como ele… Mas, infelizmente, não há esperança.
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