Do site Caminho pra Casa:
Vive-se uma situação paradoxal no Brasil. Lideranças populares com histórias profundamente ligadas à Igreja Católica foram mortas ou perseguidas sob o silêncio cúmplice da cúpula da Igreja, enquanto um segmento estridente de integristas aplaude os algozes. Marielle Franco foi martirizada numa execução brutal; Lula, vítima de uma perseguição sem tréguas até a prisão, assim como o padre José Amaro Lopes de Souza.
Em tornos deles, a Igreja brasileira dividiu-se entre uma postura de solidariedade e oração de segmentos vinculados à Teologia da Libertação; uma hostilidade agressiva dos tradicionalistas; e um distanciamento acovardado da cúpula. Incrivelmente, as mesmas reações foram observadas diante da prisão de um integrante do clero, o padre José Amaro Lopes de Souza, considerado sucessor de irmã Dorothy Stang em Anapu (PA), e detido desde 27 de abril numa articulação entre latifundiários e a polícia do Pará.
Como em raros momentos, a Igreja mostra sua fratura à sociedade à luz do dia e, mais grave, apresenta-se como instituição que não acolhe os seus. Ao mesmo tempo, o Papa acaba de lançar uma Exortação Apostólica dizendo que o único caminho da santidade cristã é a vida com os pobres contra as injustiças.
Por Mauro Lopes
Marielle Franco foi catequista e participou da Pastoral da Juventude na favela da Maré, na adolescência; mesmo depois de adulta, quando se afastou da Igreja por ser lésbica e militante de esquerda numa Arquidiocese dominada por integristas, não abdicou da fé. Criada numa família católica, manteve-se às margens, aproximou-se da religiosidade de matriz afro-brasileira e continuou a frequentar igrejas, especialmente ao lado da irmã, Anielle.
Luis Inácio Lula da Silva também foi criado numa família católica. Sua mulher, Marisa Letícia, católica desde a infância –seu avô, Giovanni, ergueu uma capela em homenagem a Santo Antônio, no sítio da família, em São Bernardo do Campo, que está de pé até hoje. A aproximação maior de Lula com o catolicismo deu-se no processo das lutas sindicais no final dos anos 1970 e a seguir na fundação do PT, quando teve apoio das bases da Igreja, especialmente as Comunidades Eclesiais e Base teólogos e teólogas vinculados à Teologia da Libertação.
Padre José Amaro é um homem da Igreja há décadas. Uma nota da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) resume bem a trajetória do sacerdote: “Milhares de trilhas iniciadas por irmã Dorothy Stang, continuam abertas depois de seu martírio em 12 de fevereiro de 2005, no município de Anapu, Estado do Pará. Trilhas estas continuadas pelo padre Amaro Lopes, conhecido, amado e respeitado por sua incansável luta em defesa dos direitos humanos, especialmente dos camponeses, pequenos agricultores da região de Anapu. Gente simples e de grande valor na defesa da Amazônia e da ecologia integral. Dando continuidade ao trabalho de irmã Dorothy, padre Amaro atua no município de Anapu (PA), na Paróquia Santa Luzia, como líder comunitário e coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região.”
Marielle foi executada; Lula e padre Amaro, presos injustamente. Seria razoável esperar que a Igreja no Brasil se levantasse em solidariedade e compaixão, em apoio e oração a duas lideranças historicamente ligadas a catolicismo e a um de seus membros. No entanto, não foi o que aconteceu. Houve apoio apenas dos segmentos vinculados à teologia latino-americana e à opção pelos pobres. Os segmentos vinculados aos tradicionalistas, no clero e no laicato, abriram campanha contra a memória de Marielle e, ao estilo do que ocorreu depois do martírio de dom Oscar Romero, em El Salvador, nos anos 1980, desencadearam uma campanha de difamação e calúnias. Quanto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os segmentos ”moderados” do catolicismo, mantiveram silêncio, mesmo depois de o próprio Papa Francisco ter telefonado à mãe de Marielle, três dias depois do assassinato. No caso de Lula, a CNBB e os “moderados” mantiveram o mesmo silêncio. O clero, teólogos e teólogas, leigos e leigas vinculados à tradição da Igreja brasileira dos tempos de dom Paulo Evaristo Arns, entre outros, cerraram fileiras ao lado do líder encarcerado. Quanto aos integristas, celebraram a prisão, xingaram o metalúrgico e ex-presidente católico, regozijaram-se com a injustiça e saudaram os algozes. As reações não foram distintas no caso da prisão do padre José Amaro.
Sobre a morte de Marielle e como a Igreja Católica a ela reagiu houve nada menos que sete artigos em Caminho Pra Casa, desde as primeiras reações até toda a história do telefonema do Papa à mãe da vereadora assassinada, numa articulação que passou ao largo da CNBB e da Arquidiocese do Rio de Janeiro. No caso de padre José Amaro, você pode ler sobre a ofensiva dos latifundiários (que se dizem católicos) contra ele, contra o bispo emérito do Xingu, dom Erwin Kräutler e a memória de Dorothy Stang em artigo de Caminho Pra Casa clicando aqui.
O que aconteceu com a prisão de Lula não foi muito diferente –o que mudou foi o caráter ainda mais explícito do ódio dos integristas católicos brasileiros e sua campanha barulhenta contra os segmentos do clero que estiveram ao lado do ex-presidente no momento de sua prisão.
O protesto contra a prisão de Lula
As pastorais sociais da Igreja, tradicionalmente vinculadas ao sofrimento dos mais pobres do país, saíram a público para protestar contra a prisão de Lula.
O CIMI (Conselho Indigenista Missionário) divulgou nota na sexta (6), um dia depois o decreto de prisão do juiz Sérgio Moro, afirmando “que tal decisão é parte da estratégia dos grandes conglomerados empresariais, de capital nacional e transnacional, que buscam dar sequência ao processo neocolonialista de rapinagem dos direitos do povo brasileiro e dos bens naturais de nosso país.” Ao final do texto, o CIMI advertiu: “Hoje é o Lula, amanhã poderá ser qualquer um de nós.”
No mesmo espírito, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) denunciou no sábado (7) que a prisão foi “o auge de uma trama de assalto ao poder do Estado e dizimação da frágil democracia brasileira para consolidar a submissão nacional aos interesses ilimitados do capital global”. A CPT afirmou ainda que “de costas para os interesses populares, o que este complexo empresarial-financeiro-midiático faz, com apoio militar velado ou explícito, é nutrir, estrategicamente, o ódio, a intolerância e o preconceito, expressões do fascismo social, em que só vale o indivíduo com seus interesses privados, não mais a sociedade e a partilha coletiva de bens comuns e públicos. O avanço da violência impune no campo e na cidade é sua face mais cruel.” A comissão qualificou a prisão de Lula como “consumação do fascismo neoliberal no Brasil” e indicou que defender a liberdade do ex-presidente “independentemente de ser ou não ser petista ou lulista, tornou-se obrigação de todo verdadeiro democrata e promotor da Justiça, dos direitos humanos e de um outro mundo possível, política, social e ambientalmente sustentado.”
A Prelazia de São Felix do Araguaia, em nota assinada conjuntamente pelo bispo dom Adriano Ciocca Vasino, pelo bispo emérito dom Pedro Casaldáliga e agentes de pastoral (leigas e leigos, religiosas e religiosos), assinalou que a prisão de Lula é a “culminância deste processo de violência por parte da mídia, parlamentares e judiciário brasileiro”. No texto, fez-se questão de vincular o encarceramento à dimensão da política econômica: “Nestes tempos temerosos, em que os servidores do sistema neoliberal buscam assombrar o povo por meio da pedagogia do MEDO, lembramos as palavras do Papa Francisco: ‘Esta economia mata!’”
Um momento importante da solidariedade eclesial foi a visita de frei Betto a Lula no Sindicato –ele estiveram com o então líder metalúrgico quando ele foi preso pela ditadura militar em 1980. Durante a visita, Lula gravou uma mensagem ao Grupo Emaús, de teólogos e teólogas brasileiros vinculados à teologia latino-americana e que se reuniu no último fim de semana:
Os franciscanos mais uma vez fizeram-se presentes, com uma manifestação do Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe) no domingo: “Mais uma vez denunciamos o agravamento do Estado de Exceção com o aprofundamento do golpe de 2016, a serviço do grande capital internacional, que quer que o Brasil volte a ser sua senzala.”
Um momento marcante da solidariedade a Lula foi a celebração acontecida diante do Sindicato dos Metalúrgicos no sábado, horas antes de sua prisão. O que era para ser uma missa em memória de Marisa Letícia transformou-se num culto ecumênico, presidido pelo bispo emérito dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo auxiliar de dom Paulo Evaristo Arns em 1975, amigo de Lula e ligado historicamente à tradição do Vaticano II e da Conferência de Medellín, momento culminante da teologia latino-americana. Vários padres acorreram à celebração.
Muitos padres, freiras, leigos e leigas acorreram ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo, que se tornou palco da resistência democrática do país por dois dias. Padre Júlio Lancellotti, vigário da Pastoral do Povo da Rua e padre Paulo Sérgio Bezerra, líder do movimento Igreja Povo de Deus em Movimento (IPDM) lã foram.
A reação integrista
Imediatamente, os integristas iniciaram mobilização com ofensas e xingamentos sem limites a dom Angélico, enquanto celebravam efusivamente a prisão de Lula. São centenas de exemplos, mas o registro de dois é suficiente. O site Fratres in Unum, porta-voz de um segmento integrista histórico, escreveu em tom editorial: “Chegou a hora de nos levantarmos e de extirparmos da nossa Igreja o câncer do socialismo, de retomarmos a nossa religião, de darmos voz aos verdadeiros pastores, de hastearmos nossas bandeiras católicas, de devolvermos à nossa Igreja a glória que um dia lhe pertenceu. Não basta colocarmos Lula na cadeia, precisamos expulsar os seus progenitores dos intestinos das nossas sacristias!”
Curiosamente, os mesmos que acusam a Teologia da Libertação de ser “política” e esquecer as “coisas do alto” são dos mais estridentes e agressivos na campanha (política) contra Lula. Ao mesmo tempo, posam de defensores da “moral e dos bons costumes” enquanto perpetram ofensas de tom sexual, homofóbico, como um jovem que se tornou uma “estrela” integrista, que comemorou: “Pau no cool dos vermelhos” –veja a seguir:
O arcebispo conservador de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, resolveu sair a público para criticar dom Angélico, apesar de a celebração ter ocorrido em outra diocese. O cardeal divulgou uma nota no Facebook na qual condenou o culto ecumênico, por “instrumentalização política” –veja abaixo.
No entanto, dom Odilo tem horror à convergência entre política e religião apenas quando se trata da esquerda. Ele frequenta as mansões e palácios dos ricos com desenvoltura, foi a Brasília abençoar Michel Temer depois do golpe, é apoiador de primeira hora de João Doria, íntimo de Geraldo Alckmin e manifestou-se mais de uma vez a favor das contrarreformas do governo golpista.
A defesa de dom Angélico
Os ataques a dom Angélico tiveram resposta de outro bispo emérito, dom Mauro Morelli, outro que foi auxiliar de dom Paulo, antes de assumir a diocese de Duque de Caxias, no Rio, onde teve uma passagem histórica. Ele escreveu sobre os ataques a dom Angélico: “Dom Angélico, meu colega de seminário em Viamão e companheiro de ordenação episcopal com auxiliares de dom Paulo Evaristo Arns, por 25 anos da Pastoral Operária na Arquidiocese de São Paulo, não coloca sua vida a serviço de ideologias, mas da radicalidade do testemunho do Evangelho”.
O IPDM (Igreja Povo de Deus em Movimento), saiu a público em defesa de dom Angélico. É uma organização da zona leste de São Paulo surgida exatamente na região onde por anos atuou dom Angélico, a então região episcopal de São Miguel Paulista –desmembrada em 1989 da Arquidiocese de São Paulo por iniciativa de João Paulo II com o objetivo de enfraquecer dom Paulo Evaristo Arns. “Dom Angélico está do lado certo da História, como esteve Dom Paulo Evaristo Arns na celebração ecumênica, em 1975, pelo assassinato de Vladimir Herzog na Catedral de São Paulo e, nos anos 80 acionando a mídia contra a prisão de Lula”, afirmou o IPDM em sua nota.
De fato, pelo teor das manifestações e ações públicas de dom Odilo, fosse ele o arcebispo de São Paulo à época do assassinato de Vladimir Herzog, não teria ocorrido o culto ecumênico na Catedral da Sé que mudou a história do Brasil.
Permanece o silêncio da CNBB
Com a Igreja claramente dividida no país, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), controlada pelos bispos “moderados”, fechou-se em copas. Não se manifestou na morte de Marielle e permanece muda depois da prisão de Lula –apesar de todos os vínculos de ambos com a Igreja Católica. Ainda mais marcante é o silêncio da direção nacional da entidade em relação à prisão de padre Amaro –várias organizações ligadas à CNBB protestaram, mas a direção sequer emitiu uma nota.
Os integristas atacam a CNBB sem cessar e de maneira violenta, sem precedentes. O ódio que devotam a todos que não comungam de sua visão é tão cego a ponto de desejarem a morte do secretário-geral da CNBB, dom Leonardo Ulrich Steiner, que sofreu um infarto há pouco mais de uma semana. O teólogo Fernando Altemeyer da PUC-SP, registrou em seu perfil no Facebook: “Recentemente li em site de grupo reacionário na Internet em que estes pediam explicitamente a MORTE do bispo secretário da CNBB, dom Leonardo Ulrich Steiner, que acabara de ter um infarto no miocárdio. Em nome de uma fé mortal propunham a aniquilação dos que pensam com lucidez e de acordo com o Evangelho de Cristo. Fiquei pasmo com tamanha imoralidade, indecência e ódio descarado. (…) Cristianismo é outra coisa. Isso é doença.”
A direção da CNBB está acuada diante dos ataques dos integristas, amedrontada e silente. Ele esteve na última sexta-feira (6) com o Papa Francisco, em Roma e, à saída, concedeu uma entrevista ao Vatican News, órgão do sistema de comunicação do Vaticano.
Espreme-se, espreme-se a entrevista e há apenas declarações genéricas, feitas sob medida para não incomodar ninguém, para evitar críticas. Sobre o momento da Igreja no país, o presidente da CNBB reconhece a profunda divisão, a fazer quase que um clamor pela “unidade” –que até as pedras do calçamento da Praça São Pedro sabem ser impossível. “O Brasil hoje precisa que a Igreja dê esse testemunho de comunhão, de unidade fraterna, de comunhão fraterna. Porque nós queremos superar a violência, a agressividade, a intolerância e queremos fazer isso dando testemunho. Lembremos sempre que a unidade, que a comunhão é uma exigência da evangelização. Jesus disse para estarmos unidos, para que o mundo creia. Quando Jesus reza ao Pai pedindo a unidade dos creem é justamente para que o mundo creia” –foram as palavras de dom Sérgio.
Nenhuma palavra sobre a situação do país, sobre os assassinatos, prisões, sobre a miséria que se espraia. No ano da Campanha da Fraternidade sobre a violência do país, a CNBB emudeceu e não fala no assunto.
Os integristas associam-se à tradição nazista e queimam livros de teologia no país –e a CNBB permanece quieta.
O presidente da CNBB, dom Sergio da Rocha, arcebispo de Brasília, lamuria-se em privado pela divisão da Igreja no país, queixa-se a interlocutores dos ataques violentos dos tradicionalistas, mas nada faz. É a mesma postura de boa parte dos bispos “moderados” do país.
Uma posição que contrasta em tudo com a do Papa. Francisco governa uma Igreja dividida, sob ataques cada vez mais agressivos dos tradicionalistas. Mas não se intimida. Fala abertamente pelos pobres, recusou-se e recusa-se a visitar o Brasil depois do golpe de Estado, acolhe os perseguidos, os migrantes, critica os ricos e os integristas. Telefonou para a mãe de Marielle, está presente. A CNBB ausentou-se e não acolhe os seus.
O Papa e o caminho da santidade
Nesta segunda-feira (9), Francisco lançou sua Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (Alegrai-vos e Exultai), sobre o caminho rumo à santidade, que deveria animar todos os cristãos, mesmo sabendo que esta é uma condição da jornada da vida e não um objetivo que se alcance.
O texto é impressionante, porque marca, em definitivo, o papado de Francisco como o reencontro da vocação original da Igreja com os pobres de todo o planeta, contra a injustiça, a miséria e a falta de solidariedade. Segundo o Papa, a “grande regra de comportamento” para este caminho está no capítulo 25 do Evangelho de Mateus (vv 31-46): “Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados: ‘Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo’ (25, 35-36).” (95)
Contrariando todo o arcabouço teológico-ideológico dos conservadores, o Papa afirma peremptoriamente: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo em que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente.” (101)
Para Francisco, o caminho do cristão é na “contracorrente”, “a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam”. (65)
Nos próximos dias, veremos os integristas atacando o Papa ou buscando desvirtuar por completo o sentido do texto (o reino da pós-verdade) e os moderados a acrescentar água e açúcar a ponto de deixa-lo inofensivo. Mas Francisco foi claro: a tradição da Igreja a partir de Jesus é de caminhada com os pobres contra a miséria e a injustiça.
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